Na época em que quase toda a comunicação era feita por meio de cartas, até a década de 1970, a imensa maioria destas, quando recebidas por seus destinatários, lhes pareciam tratar apenas de assuntos banais.
O correspondente era geralmente apenas um conhecido e quem recebia a carta pouco ou nada recordava, logo depois, das platitudes ou elucubrações que havia acabado de ler nas folhas recebidas num envelope. Mas algumas dessas cartas foram inexplicavelmente conservadas e continuaram a seguir seu destino improvável, chegando às mãos de vários outros “destinatários” ao longo de décadas e, às vezes, séculos.
Os proprietários subsequentes, que o acaso trouxe para essas cartas, puderam, com o passar do tempo, adicionar significados a textos aparentemente anódinos ? aos quais os contemporâneos não dariam qualquer atenção.
É certamente o que ocorre com a carta de Paul Gauguin reproduzida nesta página, dirigida a um correspondente hoje esquecido (“Caro senhor”) por um pintor ainda iniciante, mas que já elaborava teorias megalomaníacas sobre sua própria obra.
É um milagre que essas quatro páginas não tenham sido jogadas fora logo após a primeira leitura, como acontecia com quase todas as cartas recebidas de anônimos, como certamente o era Gauguin na época.
Na carta, escrita em janeiro de 1889, o pintor pede desculpas a seu correspondente (talvez um colecionador ou crítico que Gauguin não parece conhecer mais que superficialmente) por sua mudança de planos: “Eu pretendia ficar um ano no sul (da França) para trabalhar ao lado de um amigo também pintor. Infelizmente este amigo tornou-se subitamente louco varrido e por isso tive de sofrer durante um mês todo tipo de temor de um acidente mortal ou trágico”.
O leitor contemporâneo identifica imediatamente o “amigo pintor” de Gauguin que entrou em surto, por tratar-se do protagonista de um dos episódios mais famosos da história da pintura: Vincent Van Gogh. A discussão entre os dois amigos, cujo teor nunca foi completamente esclarecido, resultou na crise de Van Gogh, que mutilou sua orelha num gesto desesperado.
O que deve ter soado para o primeiro destinatário desta carta como um incidente de pouco interesse é imediatamente compreendido pelo leitor de hoje como a evocação de uma história que lhe é familiar.
Gauguin preenche as três páginas finais com considerações quase delirantes sobre a dificuldade e as aspirações de sua carreira de pintor, e evoca, em determinado momento, Jesus Cristo ao citar “O granito acabará, mas a palavra permanecerá”. Bem mais adiante, conclui a carta dizendo que seu destino é passar de miséria em miséria, mas que sabe que “O granito acabará, mas a minha obra vai permanecer”.
Esta carta, de importância excepcional, tanto pela menção velada a Van Gogh quanto pela premonição nada modesta de sua própria grandeza, é considerada das peças mais notáveis da extensa produção epistolar do pintor, e foi objeto de desejo de muitos colecionadores desde a primeira vez em que foi vendida na década de 1930. Passou por várias coleções importantes até ser adquirida por seu atual detentor no início deste século.