Eduardo Anizelli/Folha Imagem
A música de Johnny Alf, sophisticated lady, é como uma orquídea, uma criação de um demiurgo poeta. Tão bonita e sua forma tão cheia de detalhes, de outras formas, cores, profundidades que parece ser artificial. Apesar da complexidade harmônica imensa, tudo soa como algo que não podia ser de outro modo, por isso, apesar de tão elaborada, soa natural. Gosto do amor discreto do Johnny Alf, sua sofisticada simplicidade.
Quando escutei Johnny Alf cantando Eu e a brisa, fui completamente tragada pela música e esqueci a dor de ser tão só pra ser um sonho. E quando voltei à tona, fiquei buscando algo pra exprimir aquilo, algo pra comparar com aquela sensação. E aí me lembrei do meu amigo Arismar (do Espírito Santo) tocando seu baixo, fazendo aquelas divisões e improvisações, aquelas estripulias sonoras, como um menino brincando com um brinquedo que parece não ter mais nenhum segredo pra ele – será? Alegria nos dedos e no coração. De alguma forma, ambos, Johnny e Arismar, criam um mundo semelhante e ímpar, um mundo mágico, fabricado por eles, mas que de tão bonito e fluente soam natural. Este modo de ser, este viver com liberdade criando belezas invisíveis, é o modo de ser da alma da música, ser quase só um som vibrando, Ah! Se a juventude que essa brisa canta, ficasse aqui comigo mais um pouco. Essa melodia e essa lua que chega trazida pela tarde…
Eu e a brisa – Johnny Alf e trio, 1969
Eu e a brisa – João Gilberto, 1981
A melodia de Eu e a brisa se movimenta ora em desenhos amplos – um salto de quinta, um de sexta, outro de oitava; ora caminha por graus conjuntos, como se fosse uma escala, seu tecido é cerzido de saltos e fluência. Harmonia e melodia dialogam, são quase como dois oceanos superpostos, que se tocam e se separam, movimento das ondas do mar, do vai e vem, fluidez da música, da água , do tempo.Você bem sabe eu sou um rapaz de bem/ A minha onda é do vai e vem.
Perguntei à minha amiga, a pianista Mariô Rebouças, o que ela acha da música de Johnny Alf:
“Ele foi um dos precursores da linguagem da Bossa Nova. Algumas de suas músicas compostas na década de 50, como Céu e Mar e Rapaz de Bem (ambas de 1953) chamam a atenção pela melodia e harmonia modernas e revolucionárias para a época. A melodia de Céu e Mar é composta de intervalos de quartas justas, o que não era usual, e mostra um pensamento melódico / harmônico arrojado, e uma enorme afinidade com o Jazz, que também nessa época explorava o pensamento modal e a harmonia construída em quartas (em vez da tradicional construção em terças maiores e menores). O Jazz sem dúvida influenciou muito a linguagem musical de Johnny Alf. Suas harmonias são cheias de tensão, de acordes dissonantes; o seu jeito de tocar piano tem muito “swing” e suas canções se prestam perfeitamente a arranjos instrumentais e à improvisação, pois são ricas tanto em termos melódicos como harmônicos“
Rio de Janeiro, 1954, bar do hotel Plaza, Avenida Princesa Isabel, um jovem com seu piano encantava uma moçada, aprendizes de música, conta Ruy Castro. O jovem pianista era Johnny Alf que então, com vinte e cinco anos, estava criando uma música que iria mudar a cena musical brasileira, a bossa-nova. Johnny foi o precursor da bossa-nova. Ela estava sendo gerada, naquele momento, por ele, rapaz de bem, tímido e genial compositor, pianista e cantor. A moçada que ficava à sua volta, querendo entender aquela harmonia tão diferente, era nada mais nada menos que Sylvinha Telles, Luizinho Eça, Carlinhos Lyra, Roberto Menescal, Nara leão, Luiz Carlos Vinhas. Havia também os que já eram profissionais, mas também fascinados pela música de Johnny. Iam lá para ouvir Alf: Tom Jobim, Newton Mendonça, Lucio Alves, João Donato, Billy Blanco, Dolores Duran, Claudete Soares e um garoto baiano que ficava ali, quietinho, absorto: João Gilberto. Johnny era tímido, preferia cantar composições de outros, Ary Barroso, Custódio Mesquita e gostava também de cantar canções americanas. Por pouco, não conheceríamos sua música. Mas para nossa sorte ele acabou por mostrar, cantar e tocar suas canções.
Coisa mais linda – documentário de Paulo Thiago, 2005
Alfredo José da Silva, era este o seu nome, nasceu a 19 de maio de 1929 no Rio de Janeiro e morreu em São Paulo, no dia 4 de março de 2010. Com três anos ficou órfão de pai. A mãe, doméstica, não tinha recursos para a educação do menino, mas a patroa dela, vendo inclinação do menino pela música, pagou para ele aulas particulares de piano. Alf se apaixonou por Chopin, Tchaikovsky…
Seu Chopin, desculpe – Johnny Alf e Chico Buarque
Numa entrevista que deu a Paulinho da Viola, Johnny Alf conta como fez esta canção:
Johnny: Esse chorinho foi uma coisa maluca. Todo mundo quis tocar esse chorinho. E no final, A valsa do minuto, do Chopin.
Paulinho da Viola: E você pediu desculpas a ele?
Johnny Alf: É, foi o seguinte: eu fiz uma melodia e no meio da melodia tinha esta frase, que é A valsa do minuto, né? Aí, na hora de fazer a letra eu disse assim, como é que eu vou fazer, se eu cantar ou fizer uma letra que seja, o pessoal quando ouvir esta música, que ouvir esta frase, vai logo identificar como a Valsa do minuto. Então me caiu lá de cima, né, me deram um recado: Ó, faz o seguinte, você faz uma letra falando pro Chopin que você pediu emprestado um pedaço da música dele. Foi, foi justamente quando eu disse Seu Chopin, desculpe…
Johnny Alf se sentia inclinado pela música popular brasileira e americana desde menino. Em 1952 ele começou a trabalhar como músico profissional num restaurante em Copacabana, na Cantina do Cesar, e sua música atraiu muita gente: João Donato, Dolores Duran, João Gilberto. Depois, foi tocando de bar em bar – boate Monte Carlo, Mandarim, boate Posto 5, Clube de Paris (futuro beco das garrafas) e, em 1954 no bar do hotel Plaza.
Johnny era cult: os músicos o adoravam mas só as pessoas com um gosto musical mais requintado o conheciam. E, também, Alf sempre foi um rapaz discreto Em 1955 foi convidado por um empresário paulista para inaugurar uma casa em São Paulo – a Baiúca. Johnny veio para São Paulo e ficou. E quando a bossa nova inundava o Rio, Johnny estava na paulicéia, de bar em bar, fazendo a sua música e olhando de longe o desdobrar da onda daquele movimento que ele iniciou. Sem mágoa e sem rancor
No célebre concerto da bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York, em 1962, Johnny foi chamado para fazer parte da delegação. Ficou indeciso e sumiu na véspera do embarque e só apareceu depois que o show já tinha acontecido. Pois é, Johnny era original não só na sua música, mas no seu modo de ser, sua arte e sua vida de mãos dadas. Hoje em dia a gente vê tanta gente que não é artista, que não tem um trabalho, correndo atrás da fama, tá aí um grande artista que fugia da fama, dava as costas para ela. Johnny não estava preocupado com o sucesso, estava entregue à sua arte.
Quando ele mostrou informalmente Eu e a brisa para a cantora paulistana Márcia, ela ficou encantada e quis defender a canção no III Festival de MPB da Record, em 1967. Ele concordou. Foi neste festival que foram apresentadas Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, Domingo no Parque, de Gilberto Gil, Ponteio de Edu Lobo e Capinan e Roda-viva de Chico Buarque. Eu e a brisa não sensibilizou os jurados e a canção não ficou entre as finalistas, mas seguiu seu caminho, seu destino se cumpriu independente do festival e ela foi gravada pelos grandes intérpretes da MPB: além de Alf, João Gilberto, Alaíde Costa, Tim Maia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Agostinho dos Santos. Precisa mais?
Uma canção sussurra em nosso ouvido: Olha, somente um dia longe dos teus olhos, trouxe a saudade do amor tão perto, e o mundo inteiro fez-se tão tristonho. Mas embora agora eu te tenha perto, eu acho graça do meu pensamento a conduzir o nosso amor discreto. Num tempo em que o amor virou espetáculo, em que a intimidade é devastada pela mídia, num tempo em que pretensos amados e amantes circulam sem identidade e sem coração, expostos e esvaziados em jornais, revistas, TVs, redes sociais, nesse tempo de “celebridades”, há ainda uma legião de apaixonados silenciosos, cronópios sonhadores e felizes, que como Johnny Alf, que cultuam o amor discreto pela arte e pelas pessoas, e se aprazem nessa ilusão à toa.
Ilusão à toa, Johnny Alf e Alaíde Costa