Na penúltima semana de abril, a funcionária pública Noemi da Silva, 48, recebeu a notícia de que uma colega de trabalho havia sido internada. Na época, Sandra Aparecida Pires de Souza se queixava de uma infecção urinária e já havia procurado tratamento em um hospital na cidade de São Paulo. “Ela dizia que a imunidade dela estava muito baixa”, lembra Noemi. As duas trabalhavam na parte administrativa do serviço funerário municipal na Vila Guilherme, Zona Norte da cidade. Dali a alguns meses, depois de quase trinta anos como servidora pública, Sandra conseguiria finalmente se aposentar. “Eu não acreditei quando disseram que ela estava internada com coronavírus”, conta Noemi. “Ela vivia falando que tinha medo de pegar essa doença e morrer. Todo mundo lá tinha medo também, a gente tinha contato direto com os motoristas da funerária.” Toda dia, a diretora da unidade onde Silva trabalha dava atualizações sobre o estado de Sandra no hospital. Não demorou muito para que o caso dela se complicasse e, uma semana depois, no dia 28 de abril, Silva recebeu a notícia da morte da amiga. “Eu comecei a chorar e entrei em pânico”, conta. Ela mal havia se recuperado da primeira perda quando recebeu, na semana seguinte, dia 6 de maio, a notícia de que outro servidor de sua unidade havia morrido por Covid-19 – dessa vez, um assistente de almoxarifado. “Minha única mágoa é que a gente não podia fazer uma homenagem para eles, como os médicos e enfermeiros recebiam”, desabafa Silva, que àquela altura não sabia que testemunhava um capítulo trágico da história de São Paulo.
A história de Sandra Souza é uma peça para ajudar a contar a hecatombe da Covid-19, uma doença que acumulou recordes macabros no Brasil. Na cidade de São Paulo, primeiro epicentro da epidemia no país, os números da doença mostram que nunca se morreu tanto na capital paulista. E, na contagem nefasta provocada pela Covid-19, um dia ficará registrado na história da cidade: em 29 de abril, 363 paulistanos morreram – de acordo com a última atualização da prefeitura, 175 por Covid-19, entre confirmados e suspeitos. Foi o dia mais mortal, no outono mais letal, do ano mais fatal da história de São Paulo – segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde, o número de mortes em 29 de abril é o maior desde 1996. Até este ano, a marca pertencia ao dia 14 de junho de 2016, com 307 mortes – na véspera, a capital havia passado por um dos dias mais frios já registrados, e a temperatura na cidade chegou a 3,5ºC. Mas, além do dia 29 de abril, outros 44 dias de pandemia pulverizaram o antigo recorde de 2016. No ranking dos dias com maior número de mortes na capital paulista desde 1996, todos os quarenta primeiros estão entre abril e junho de 2020, quando a epidemia de coronavírus atingia seu ápice.
A tragédia sem precedentes na capital paulista também é visível na comparação de mortalidade dia a dia. Nunca houve um 29 de abril com tantas mortes. E muitos outros dias de 2020 também acumulam mais mortes que a mesma data em anos anteriores. Nesse tipo de comparação, o ano de 2020 já é o que tem mais dias recordistas – 110, até 4 de julho. Desses, catorze aconteceram antes do dia 16 de março, quando a primeira morte por Covid-19 foi confirmada na capital. Daí em diante, os efeitos da pandemia começaram a ficar cada vez mais visíveis na conta final da mortalidade paulistana. No pico da crise sanitária, de 28 de março até 21 de junho, todos os dias tiveram em 2020 o maior número de mortes das duas últimas décadas. Foram, ao todo, 85 dias ininterruptos de recordes, cenário que a cidade de São Paulo nunca antes havia enfrentado e que está diretamente relacionado à disseminação do novo coronavírus.
Para o médico sanitarista e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Hélio Neves, 2020 já pode ser considerado o ano mais mortal da cidade. “Até aqui foi o ano com maior número de mortes, e não acredito que a gente vá ter uma redução significativa que mude esse panorama”, diz Neves. Segundo os dados da Secretaria Municipal de Saúde, atualizados no dia de 21 de julho, a mortalidade geral na cidade de São Paulo aumentou 22,3% no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado – quase 8,6 mil mortes a mais. O aumento mais significativo aconteceu em maio, com um crescimento de quase 50% em relação ao mesmo mês de 2019. Isso porque os primeiros meses do ano não costumam apresentar um número muito alto de mortes, levando em conta a série histórica na cidade. Os óbitos, ao longo dos últimos 24 anos, são mais numerosos principalmente nos meses de inverno, entre junho e agosto.
As “mortes de inverno” estão relacionadas a complicações de doenças respiratórias, poluição e circulação sazonal de outros vírus. Nesse cenário, a parcela mais afetada da população são os idosos e pessoas mais vulneráveis, que também são o principal grupo de risco da Covid-19. A doença, além de elevar os números da mortalidade geral, trouxe um fenômeno inédito na cidade: um pico de mortes nos primeiros meses do ano. “Houve uma antecipação do pico de mortes que aconteceria no inverno na cidade”, explica Neves. É como se as pessoas mais suscetíveis a morrer no período de inverno, como os idosos, tivessem sido vítimas do momento mais crítico da epidemia de coronavírus. Mas, segundo Neves, nada garante que um próximo pico importante de mortes não vá acontecer com a chegada do inverno. “As pessoas que seriam mais suscetíveis a morrer agora no meio do ano podem ter se resguardado [durante a onda de Covid-19], então elas continuam suscetíveis”, argumenta.
“O excesso de mortes aqui no Brasil foi mais forte na faixa etária intermediária e está relacionado à Covid-19”, conta Neves. “Os adultos e jovens estão se expondo mais e isso pode piorar com o relaxamento das medidas de isolamento social.” Além disso, o cenário trágico que se desenhou na cidade de São Paulo ainda pode ter efeitos mortais a longo prazo. Em meio à crise sanitária, pessoas com doenças que precisam de tratamento precoce, como o câncer, não estão sendo diagnosticadas. “O sistema ainda vai demorar a se organizar, então ainda pode existir uma repercussão potencial de aumento da mortalidade no futuro”, diz.
Por enquanto, os dados de mortalidade geral indicam uma tendência de queda. Os quatro primeiros dias de julho – últimos dados consolidados até agora – quebraram a continuidade macabra de recordes na cidade. Para os mais céticos, como o médico Hélio Neves, essa pode ser a calmaria que vem antes da tempestade. Apesar de o inverno ter chegado mais cedo em São Paulo, ainda faltam seis meses para o ano mais mortal da cidade acabar.