O termômetro registrava 32°C e não havia uma nuvem no céu no começo da tarde de sábado, 5 de dezembro, quando o casal paulista decidiu relaxar no bar molhado do Hotel Ala Sol, uma das três unidades do complexo Costa do Sauípe Resorts, no litoral da Bahia. O bar, uma estrutura de alvenaria instalada dentro da piscina, é um lugar agradável. Proporciona sombra, água fresca e, como o resort é do tipo all inclusive, as bebidas podem ser consumidas à vontade: cerveja, gim, uísque, tequila e vinhos branco e tinto. O casal, a gerente financeira Nathalia Maris, de 29 anos, e o agente de viagens Bruno Barsotti, de 36, estava no terceiro dos quatro dias de viagem, cujo pacote entre passagem e hospedagem saiu por 4 mil reais.
No balcão do bar molhado, Maris e Barsotti conheceram um grupo de turistas, também de São Paulo. Eram cerca de uma dúzia de pessoas, entre homens e mulheres. Beberam juntos, riram e falaram sobre trabalho, pandemia e férias. A certa altura, Maris saiu da piscina para servir-se no bufê de feijoada, montado a poucos metros dali. Ao retornar para o bar, sugeriu ao marido que provasse o bufê. “A comida estava muito boa”, lembra ela. Barsotti acolheu a sugestão, almoçou e decidiu tirar um cochilo em uma das espreguiçadeiras ao redor da piscina. Pouco depois, sua mulher resolveu chamá-lo para voltar ao bar. Ela caminhou até ele por dentro da piscina e, no trajeto, cruzou com um dos turistas paulistas com quem ela e o marido estavam conversando no balcão do bar.
Foi o começo de seu pesadelo.
“Ele me puxou em direção ao seu corpo segurando o meu maiô, exatamente na altura da cava perto das partes íntimas. Eu empurrei o braço dele imediatamente. Ele então colocou a mão na minha vagina por cima do maiô. Eu só conseguia falar: ‘Você tá louco?’”
Maris desvencilhou-se dele e foi em direção ao marido, que estava deitado com fone nos ouvidos. Na borda da piscina, ela conseguiu se fazer ouvir. Seu marido pulou dentro da piscina, e ela começou a relatar o que acontecera. Estava tremendo. Barsotti pediu para a mulher apontar quem era o agressor. O casal então, ainda dentro da água, andou em direção ao grupo de amigos paulistas, que continuava no bar. “Fui até o bar para mostrar ao meu marido quem era o assediador. Afinal, tínhamos conhecido aquela turma havia pouco tempo, mas eu não tinha dúvidas de quem era: o homem que me tocou era o único a usar chapéu”, conta Maris, ao rememorar o episódio, durante uma de suas três entrevistas à piauí.
O homem de chapéu era o empresário Luís Carlos da Silva, 46 anos. Maris lembra que houve um tumulto, foi chamada de louca, ouviu que sua acusação não tinha cabimento. “O grupo de amigos ameaçou agredir o meu marido”, disse ela. Não houve contato físico.
Incrédula com o que estava acontecendo, Maris saiu da piscina para queixar-se à equipe do resort. Abordou um funcionário que atende a área da piscina, que chamou um colega da recepção, a quem Maris pediu que ligasse para polícia porque queria registrar um boletim de ocorrência. “Mas a equipe do lugar insistia para eu me acalmar e resolver tudo de forma amigável, sem envolver nenhuma autoridade. Fiquei frustrada. Peguei meu celular e eu mesma disquei 190.” A polícia atendeu e, quando lhe perguntaram se se sentia segura onde estava, Maris chorou pela primeira vez. Estava com vergonha, com raiva e, naquele momento, percebeu que não sabia se estava segura ou não, porque não se sentia acolhida pela equipe do resort.
Enquanto aguardavam a chegada da polícia, Barsotti, o marido de Maris, conta que uma gerente do hotel – uma mulher cujo nome ele não lembra – quis saber quem era o agressor. “Foi quando o Luís me pediu desculpas e falou que tudo era um mal-entendido”, lembrou Barsotti. Depois de cerca de 15 minutos de espera, chegaram três policiais militares – todos homens. “Mas os policiais não vieram até nós. Nós tivemos que pegar uma van do hotel para ir encontrá-los numa sala”, disse o marido. “Chegando lá, não me deixaram entrar. Eram três PMs homens e outro gerente do hotel, também homem. A Nathalia usou a minha camiseta e bermuda para não ficar de maiô na frente dos caras.”
A sala onde encontraram a polícia fica a uns 3 km do hotel, ao lado de um terminal rodoviário, que atende boa parte dos cerca de 2 mil funcionários do complexo hoteleiro que moram nas cidades vizinhas. Enfim, Maris e Barsotti estavam longe dos olhos de outros hóspedes, sem risco de um escândalo público. “O hotel tentou colocar panos quentes, nos isolou dos outros hóspedes, só prestaram atendimento porque exigimos”, disse Barsotti. A certa altura, um PM pediu aos colegas que trouxessem à sua presença o homem acusado de assédio. Silva chegou acompanhado de sua esposa.
Ali, naquela sala, deu-se uma conversa entre a polícia, as partes envolvidas e a gerência do hotel. Durante uma hora, discutiu-se uma solução que não envolvesse o registro de um B.O., mas Maris insistiu em fazê-lo. A polícia então informou que a denunciante e o denunciado deveriam embarcar na viatura policial e seguirem juntos até a delegacia. Maris, coberta pelas roupas do marido, voltou a chorar. Considerou um desrespeito ter que dividir um veículo com seu agressor. O gerente do resort, então, concordou em chamar um táxi, esclarecendo que só pagaria a corrida e nenhuma outra despesa adicional. Maris e o marido embarcaram no táxi.
Na delegacia mais próxima, a Delegacia de Proteção Ambiental da Praia do Forte, Maris prestou depoimento. O acusado, acompanhado de sua mulher, também depôs. Só depois de encerrada essa etapa burocrática, Maris foi informada que não poderia registrar um B.O. naquela delegacia porque, como era sábado, não havia delegado de plantão. “Então me disseram que, se eu quisesse mesmo formalizar a denúncia, teria que ir a Salvador. Eu parecia estar vivendo uma prova de obstáculos”, disse Maris. Mais uma vez, ela teria que ir ao lado do agressor dentro da viatura policial. Ela e o marido decidiram então pegar um Uber para percorrer os 80 km que separam a Costa do Sauípe da capital baiana. Pagaram 250 reais pela corrida. O acusado se deslocou no carro da polícia.
Depois da viagem, enfim, Maris conseguiu registrar o B.O. Sob o número 20-01358, a 27ª Delegacia Territorial de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador, lavrou um documento no qual consta resumidamente a denúncia de “importunação ofensiva ao pudor”. O crime de importunação sexual equivale ao “ato de praticar contra alguém ato libidinoso para satisfazer seu próprio prazer” e tem pena de um a cinco anos de reclusão.
“Naquela delegacia, onde fui ouvida por uma escrivã mulher, me senti acolhida pela primeira vez”, relembrou Maris. Registrado o B.O., ela e o marido pegaram um novo Uber e voltaram ao resort – dessa vez, a conta deu 200 reais. Chegaram às três da manhã, exatamente doze horas depois que Maris discou 190 naquela tarde ensolarada de sábado.
Na recepção, o casal topou com uma nova surpresa: a gerência decidiu tirar o casal da Ala Sol e transferi-lo para outro hotel do complexo. Queriam evitar que Maris e o marido encontrassem o acusado pelos corredores. “Mais uma vez, me senti punida”, disse Maris. Depois que voltou para São Paulo, ela e o marido contrataram uma advogada. “Fizemos isso para processar o resort, que não teve nenhum acolhimento e não quis chamar a polícia para evitar um escândalo.” Assim que o caso se transformar num inquérito policial, Maris pretende processar também o agressor.
O Costa do Sauípe Resorts é um dos maiores complexos hoteleiros do Brasil. São três hotéis, de categorias e preços diferentes, que reúnem um total de 858 apartamentos. Localizado no município de Mata de São João, que tem menos de 50 mil habitantes e apenas duas delegacias, uma ambiental e outra para os demais tipos de crime, o empreendimento é um dos responsáveis por triplicar a população do local no verão, não apenas com turistas, mas também com trabalhadores temporários. Em 2020, em tempos pré-Covid, recebeu 37 500 hóspedes em janeiro e 44 210 em fevereiro.
A administração do complexo nega qualquer descaso e negligência no caso da agressão denunciada por Nathalia Maris. Em uma nota enviada à piauí, o hotel diz que Maris ligou para a polícia antes de avisar à gerência. “A polícia foi acionada inicialmente pela hóspede, que ligou de seu celular antes mesmo de nos informar o acontecido. Como a polícia já havia sido acionada, não tinha sentido ligar novamente.” A nota afirma que não transferiu o casal da Ala Sol de modo arbitrário: “Foi oferecida à hóspede a troca de ala no hotel, para evitar que ela se encontrasse com o acusado. Ela concordou prontamente sem nenhuma imposição de nossa parte.”
A nota também dá sua versão do episódio. “Em nenhum momento foi pedido para ela ficar calada. Há várias testemunhas sobre isso. Ela deu seu primeiro depoimento à polícia na sala da nossa equipe de segurança, até para garantir a privacidade dela. Essa sala fica ao lado de nosso terminal rodoviário. Demos toda assistência, disponibilizamos um veículo para fazer o Boletim de Ocorrência na delegacia da Praia do Forte. Ao chegar no local, foi orientada a fazer a queixa na Delegacia da Mulher, em Salvador, e foi para a capital sem nos informar. Soubemos depois desse fato”. Maris não fez o B.O. em uma delegacia da mulher, mas em uma unidade comum.
A assessoria de imprensa da Polícia Civil da Bahia, por sua vez, disse que um B.O. pode ser feito “em todas as unidades da Polícia Civil, inclusive, na Delegacia Digital” e explicou que, no caso, “a condução [foi] realizada por uma guarnição da Polícia Militar, de um suspeito de assédio e da vítima, para a Delegacia de Proteção Ambiental (DPA), localizada na Praia do Forte”. A nota completa dizendo que “a unidade especializada funciona em regime administrativo, tornando necessário o encaminhamento dos envolvidos para a 27ª Delegacia Territorial, de Itinga, no município de Lauro de Freitas, onde ambos foram ouvidos.”
Luís Carlos Silva nega todo o relato que Maris apresentou aos funcionários do hotel e à própria polícia baiana. “A acusação é inverídica, descabida e absurda. Não a toquei e jamais a tocaria. Sou casado há 29 anos e jamais, repito, jamais me comportei ou me comportaria dessa forma com ela ou qualquer outra mulher. Estou indignado, constrangido e passando por um momento vexatório, sem precedentes”, disse ele por meio de uma nota do seu advogado, Ricardo Birne. Silva promete processar a autora do B.O.
Silva diz que nunca cruzou com Maris dentro da piscina. Ele diz que, em um primeiro momento, quando chegou ao bar molhado para apontar o agressor, Maris acusou um de seus amigos, o “Claudio”, como sendo o autor do assédio. Segundo Silva, como “Claudio” negou qualquer envolvimento, só então Maris então apontou o dedo para ele, Luís Carlos Silva. Na nota, o advogado Birne escreve: “Após a reação do amigo do meu cliente em repelir a acusação, eles passaram a acusar o Luís Carlos. Sendo assim, fica refutada a afirmação da senhora Nathalia de que não teria dúvidas quanto ao autor do suposto ato. Como já dito, existem diversos depoimentos que comprovam nossas afirmações.” Os depoimentos a que se refere são as versões contadas pelos amigos de Silva, que negam qualquer tentativa de assédio.
Maris refuta a versão de ter acusado um homem e depois outro: “Em nenhum momento acusei outra pessoa.”
Em resposta às perguntas enviadas por escrito pela piauí, Silva lembrou que Maris tem histórico como vítima de crime sexual: “Alguns dos amigos que estavam presentes (no resort) acessaram o perfil do Facebook da Nathalia e constataram que, lamentavelmente, ela, em algum momento anterior, teria sofrido algum tipo de abuso e estaria em processo de cura ou tratamento. Não faço ideia dos motivos que a levaram a fazer tais acusações, todavia supomos que alguma experiência lamentavelmente vivida por ela tenha desencadeado esse comportamento.”
A psicóloga Kátia Rosa, líder nacional do projeto Justiceiras, que atende vítimas de violência doméstica e sexual, diz que não existe essa conexão. “Não há na literatura médica estudos apontando que um trauma sexual faça com que a pessoa passe a criar ou projetar inverdades relacionadas ao assunto longo da vida. Essa tese não faz sentido”, disse Rosa, que falou em tese e não sobre o caso específico, por não conhecê-lo. “Se assim fosse, uma vítima de assédio sexual não poderia jamais denunciar outro crime igual de que tenha sido alvo. Sua palavra seria automaticamente desacreditada. Não faz o menor sentido. O que precisa, como em todo caso, é que as autoridades escutem e acolham a mulher até uma investigação ser concluída.”
Nathalia Maris, de fato, tem um trauma profundo com assuntos ligados a crimes sexuais. Aos 11 anos de idade, ela começou a ser seduzida pelo marido de uma prima mais velha. Ele tinha então 31 anos. “Aos 12, fui violentada por ele dentro da casa da minha tia materna e sogra dele, que morava no mesmo quintal de sua avó materna, em Carapicuíba (SP)”, disse ela. “Ele me pegou ao lado do tanque de lavar roupa”, contou, bastante emocionada.
Sem condições de enfrentar seu agressor, que tinha mais que o dobro de sua idade, ela sofreu abusos até seus 15 anos, quando, finalmente, sua mãe descobriu a história. Começava, então, seu segundo inferno. “Minha mãe, minhas primas, minhas tias… todo mundo me culpou, como se eu, a criança, tivesse seduzido o adulto. Minha mãe me bateu muito e disse que eu não era mais bem-vinda na casa da minha família.” A sensação de solidão se agravou porque seus pais já estavam separados e Maris era filha única.
A relação entre mãe e filha nunca mais foi a mesma. As duas começaram uma reaproximação depois do nascimento do seu filho, hoje com 1 ano e quatro meses. “Depois de muitos anos de terapia, de dor e de lágrimas, eu decidi que nunca mais seria vítima de qualquer crime sexual. Por isso fiz questão de fazer o B.O.. Se a polícia vai fazer algo, não sei. Mas eu cumpri a minha parte. Da primeira vez, eu não pude prestar queixa porque era tudo dentro de casa. Agora, é diferente.”
O Costa do Sauípe informa que nunca houve uma denúncia de assédio sexual em suas dependências.