minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Mulheres indígenas durante uma marcha na Esplanada dos Ministérios em protesto contra o governo Bolsonaro, em 2019 Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

questões indígenas

O atraso do atraso

Um ano e meio após ordem do STF, governo ainda não entregou cestas básicas a indígenas e não apresentou resultados no combate à grilagem

Marta Salomon | 27 jan 2022_15h58
A+ A- A

Na virada do ano, o líder yanomami Davi Kopenawa divulgou uma carta na qual reclamava da falta de iniciativas do governo federal para retirar invasores de terras indígenas. “Bolsonaro não está tomando as providências para expulsar os garimpeiros. Ele não quer tirá-los de lá”, escreveu. Não falava só da Terra Yanomami, que fica na fronteira com a Venezuela e é a maior e mais invadida reserva indígena do Brasil, submetida à forte pressão do garimpo.

Desde agosto de 2020, o Supremo Tribunal Federal cobra medidas urgentes para conter os invasores “que praticam ilegalmente o desmatamento, a extração de madeira e garimpo ilegal” em terras indígenas. Naquele momento, aumentavam os casos de Covid em várias aldeias e faltavam ações do governo para deter a disseminação da doença. O STF cobrou, entre outras medidas, a retirada dos invasores, a criação de barreiras sanitárias e a distribuição de cestas de alimentos para os indígenas, além dos cuidados básicos com a saúde dessa população.

O isolamento de invasores da Terra Yanomami e de outras seis terras indígenas foi determinado inicialmente por decisão cautelar do ministro Luís Roberto Barroso, em julho de 2020. Pouco depois, a decisão foi confirmada pelo plenário do STF. Um ano e meio se passou, no entanto, e o governo pouco fez para cumprir a decisão do tribunal. A entrega das cestas básicas nas aldeias ainda não tem prazo para acontecer. Também não houve qualquer resposta clara com relação à retirada de invasores das terras indígenas.

Questionada sobre isso, a Polícia Federal respondeu por meio de nota que ainda é cedo para avaliar os resultados da operação contra os invasores. “Somente após a execução de todas as fases do plano de ações, envolvendo ações estatais não apenas repressivas, mas preventivas e de ordem sanitária e social, todas dentro de um espectro interministerial, é que será possível a avaliação da efetividade da retirada de invasores”, afirmou à piauí.

O dinheiro público destinado ao Ministério da Defesa para que apoiasse a retirada dos invasores, porém, já foi gasto. Registros do Tesouro Nacional mostram que, no mesmo mês em que foi editado um crédito extraordinário de 235,3 milhões de reais, em junho de 2021, os militares começaram a usar a parte que lhes cabia nessas verbas. Do orçamento destinado a apoiar as operações em terras indígenas, foram empenhados 97% nos seis primeiros meses – o empenho é o primeiro passo da execução do Orçamento, quando já há compromisso de gasto. O dinheiro foi reservado principalmente para a compra de peças e manutenção de aeronaves. Já foram emitidas faturas de 17 milhões de reais até agora.

Bem mais lenta foi a compra das cestas de alimentos, parte que coube ao Ministério da Cidadania. O dinheiro foi liberado pelo mesmo crédito extraordinário, em 8 de junho de 2021. Ao autorizar o gasto para o enfrentamento da Covid em comunidades indígenas, o governo constatou que a situação era urgente “diante do agravamento da crise sanitária” e que era preciso entregar as cestas básicas até o final do ano. Para adquirir os alimentos, a medida provisória destinou 173,3 milhões de reais, mas o dinheiro ficou parado até o final de dezembro. Só então o Ministério da Cidadania empenhou os recursos junto à Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), responsável pelos alimentos.

Por ora, a Funai diz não ter prazo para completar a entrega das cestas básicas. “A Funai esclarece que depende da disponibilização das cestas de alimentos pela Conab para que possa iniciar o procedimento de logística objetivando a entrega final aos indígenas”, justificou a fundação, por meio de nota. Segundo o órgão, “não é possível precisar o prazo para entrega das cestas às comunidades indígenas, pois além de depender da Conab e seus fornecedores, a entrega de cestas de alimentos está sujeita às especificidades de cada região, tendo em vista a enorme diversidade de condições e modais de transporte envolvidos na logística”.

 

No dia 5 de agosto de 2020, quando o plenário do STF ratificou a decisão do ministro Barroso e cobrou medidas urgentes para o enfrentamento da pandemia entre os povos originários, trezentos indígenas haviam morrido de Covid, segundo o Ministério da Saúde.

Passados 524 dias da decisão do STF e registradas mais 563 mortes de indígenas pela doença, o governo criou, neste começo de ano, o Comitê Gestor dos Planos de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas. O grupo é coordenado pelo Ministério da Justiça. Questionada, a pasta informou que foram entregues 27 mil toneladas de alimentos aos indígenas desde o começo da pandemia – o que não explica o atraso das cestas que deveriam ter sido entregues com o dinheiro liberado em junho do ano passado. A pasta também alegou que o governo vem adotando medidas para deter os invasores de terra. “Importante destacar que essas ações são contínuas e visam a segurança e qualidade de vida dos povos indígenas, cujo escopo é interministerial e interfederativo”, afirmou o ministério por meio de nota.

O papel do comitê gestor, em tese, é garantir atendimento aos indígenas no menor tempo possível. O número de indígenas mortos pela Covid chegou a 863 na última quarta-feira (26). Em contagem paralela, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) contabiliza até agora 1.259 mortos e mais de 64 mil casos confirmados da doença entre 162 povos.

O atraso na compra de cestas básicas para os indígenas se deveu, em parte, à tentativa do Ministério da Cidadania de adquirir os alimentos de empresas privadas. O edital foi publicado em 1o de setembro de 2020, estabelecendo sete modelos de cestas para atender as diferentes etnias indígenas e regiões do país. Curiosamente, todos os modelos deveriam conter rosquinhas de coco, alimento ultraprocessado. O ministério defendeu o valor nutricional e o baixo custo das rosquinhas e o leilão chegou a ser realizado, mas o resultado não foi homologado. A pasta não explicou o motivo do cancelamento da licitação.

Só em dezembro de 2021 a Cidadania assinou um acordo com a Conab para distribuir 1.165.585 cestas a cerca de 233 mil famílias indígenas. “O cronograma de execução prevê a distribuição das cestas de alimentos entre fevereiro e agosto deste ano”, informou o ministério. A Conab conseguiu um desconto de 28%, o que fez o governo economizar 48 milhões de reais em relação ao gasto autorizado para as cestas, relatou a empresa. Segundo a Conab, foram compradas 232.617 cestas prontas ainda em dezembro de 2021, mas nenhuma delas foi entregue até o final do ano. Alimentos para a montagem de mais 932.968 cestas também foram adquiridos mediante leilão realizado no mesmo mês.

Não foram apenas as cestas que atrasaram. O governo também levou mais de seis meses até empenhar verbas para a contratação temporária de funcionários pela Funai. A Fundação contrataria 776 agentes de proteção etnoambiental para atuar em barreiras sanitárias de postos de controle de acesso às terras indígenas, em cumprimento à decisão do STF. O compromisso de gasto foi registrado no Tesouro Nacional em 29 de dezembro.

Procurada pela piauí, a Sexta Câmara do Ministério Público Federal, encarregada da proteção de direitos de populações indígenas e tradicionais, informou que não havia sido oficialmente cobrada a se manifestar sobre o eventual descumprimento da decisão do Supremo e, por isso, não quis se posicionar.

 

“Não temos como aferir os dados que o governo coloca em seus relatórios de monitoramento”, reclama Antonio Oviedo, assessor do Instituto Socioambiental (ISA). “Já houve três versões do plano de ações do governo e a invasão [de terras indígenas] só aumenta”, completou. De acordo com a decisão do STF, as terras indígenas com prioridade para o isolamento e retirada dos invasores são Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá.

No início deste mês, um relatório da Polícia Federal sobre a determinação do STF relatou dificuldades na retirada dos invasores. O combate ao garimpo ilegal na terra indígena Yanomami já consumiu “praticamente uma década”, diz o relatório: “Ações de retirada de invasores demandam meses de trabalho e presença massiva do Estado, sendo necessária a atuação de diversos órgãos estatais, sendo fundamentais a Funai e sobretudo o Ministério da Defesa, considerando o contingente, a capilaridade e a logística desses últimos.”

Em apenas um dos garimpos ilegais que atuam no território Yanomami, chamado de Fofoca do Cavalo, os policiais encontraram em março de 2021 mais de 2 mil pessoas. Havia uma “infraestrutura com bares, lan house, mercado e até um local onde parecia funcionar um consultório odontológico”, relatou a PF. Três meses depois, os policiais afirmaram ter inutilizado o mesmo garimpo, onde encontraram um gerador de energia, cinco motores e 300 gramas de mercúrio. O mesmo relatório informa que, em junho, os policiais voltaram ao Fofoca do Cavalo e destruíram onze motores pequenos e cerca de 11 gramas de ouro.

A dificuldade de o Estado lidar com invasores ficou evidente em maio do ano passado, quando a casa de uma liderança indígena que se opunha ao garimpo foi incendiada em Jacareacanga. O município do Pará abriga a maior parte do território Munduruku, onde há casos relatados de garimpo ilegal. No relatório de janeiro deste ano, a Polícia Federal afirmou não ter “meios aéreos” para fazer incursões nas áreas de garimpo e que a permanência em Jacareacanga, por várias razões, “restaria inócua”. “Os garimpeiros impuseram aos comerciantes da cidade proibição de vender qualquer tipo de mantimentos ou congêneres aos policiais (o comércio da cidade foi fechado), ademais, as forças de segurança não conseguem acesso aos hotéis da cidade (o que seria inclusive muito inseguro), a única solução foi ficarmos baseados em um ginásio de esportes, local que constantemente ficava sem água.” O relatório observa ainda que o Ministério da Defesa iria garantir apoio logístico à PF, “porém tal apoio acabou retirado nas semanas anteriores à operação”. Em 29 de maio, a Justiça Federal determinou o retorno das forças federais a Jacareacanga.

Mesmo depois de liberado o dinheiro para que o Ministério da Defesa cuidasse da logística das operações nas terras indígenas, em junho de 2021, o balanço feito pela Polícia Federal registra a falta de “meios logísticos e humanos” para cumprir “de maneira eficaz” o combate aos invasores. A verba obtida pela Defesa, além de bancar peças e a manutenção de aviões, foi gasta com operações de inteligência, mostram os registros do Tesouro Nacional.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí