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    IMAGENS: ARQUIVO PESSOAL DE LUIS FERNANDO VERISSIMO/UNISINOS

anais da literatura

O baú de Verissimo

Guardados em caixas durante meio século, manuscritos, cartas e desenhos inéditos revelam a trajetória e o processo criativo de um dos maiores cronistas brasileiros

Maurício Brum | 22 nov 2017_16h48
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Por quase cinquenta anos, Luis Fernando Verissimo acumulou em pastas de plástico e caixas comuns de papelão um vasto material que dizia respeito ao seu ofício como escritor: rascunhos, originais com notas nas margens, esboços de cartuns e ilustrações nunca publicados, além de afetuosas cartas trocadas com o pai, Erico, ou com personalidades da política e das artes, satisfeitos ou não com seus textos. Verissimo nunca pensou em um destino para a papelada (boa parte inédita), e as caixas foram relegadas a um canto do escritório do casarão onde vive sua família desde os anos 40, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre.

O material ainda juntava poeira quando, dois meses atrás, veio a boa notícia: os documentos foram incorporados ao acervo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, na capital gaúcha. Assim que forem catalogados e organizados, ficarão disponíveis para o público, que pela primeira vez poderá observar as engrenagens do processo criativo e da trajetória intelectual de um dos maiores cronistas brasileiros.

Guardado em cerca de 150 caixas e pastas, o material – desenhos, roteiros, traduções e muitas crônicas, reunidos desde o primeiro trabalho de Verissimo, como redator publicitário, em 1969 – apresenta detalhes saborosos de seu percurso, e o característico humor sutil. Há correspondência familiar (como uma carta em que Erico pede ao filho, às voltas com a repressão do regime militar, que “não se deixe tomar pelo desânimo ou desesperança, haja o que houver – a não ser que a Fernanda [filha mais velha de Luis Fernando] passe a namorar um cabo da Brigada Militar”); e também um achado sobre o primeiro livro de Verissimo, O Popular, com dedicatória dele para ele próprio.

Cedidos em comodato para a Unisinos, os documentos devem ser liberados para pesquisa no primeiro semestre de 2018.

“Isso se houver interessados”, atalha Verissimo, com a verve habitual, ao receber a piauí em sua casa para falar do acervo. Ele se apressa a tratar da fugacidade da crônica. “Depois que o jornal dá o fato, vem o comentário, a imaginação do cronista, que são as anotações à margem do fato. Se você quer saber como era o Brasil nos anos 50, lê Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, e tem um retrato daquela época. Ao mesmo tempo que ela tem essa importância, a crônica é um texto efêmero, tem uma vida curta”, explica. “Ela perde o sentido muito rapidamente. Daqui a cinquenta anos, setenta anos, ninguém vai saber quem eu era ou o que eu fazia”, exagera.

Verissimo diz que se trata de uma visão “mais realista do que pessimista” – mas que reflete, sobretudo, a modéstia pela qual ele é conhecido. A pedido da piauí, o escritor comentou os destaques do acervo, depois de uma seleção feita junto com a filha, Fernanda. Ela saiu com as mãos cheias de poeira. “O pessoal da universidade vai ter trabalho…”

O PRIMEIRO LIVRO

A estreia literária de Luis Fernando Verissimo ocorreu com O Popular, em 1973, quando tinha 37 anos de idade. “Comecei a escrever tarde”, reconhece. Aos incautos, a capa anunciava que se tratavam de “crônicas ou coisa parecida”, alertando que o autor “também é culpado dos desenhos”. O título vinha dos “populares”, cidadãos muito citados pelos jornais da época (“ouvimos um popular sobre…”): “O Popular é uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo. Seu hábitat natural é à margem dos acontecimentos”, descreveu na crônica que dá título ao livro.

A primeira edição que irá para o acervo da universidade leva uma dedicatória na folha de rosto. Nela, Verissimo autografa o livro para si mesmo: “Para o autor dos meus dias e outras grandes obras… Um abraço, Luis Fernando. Porto Alegre, 11/12/73.”

ESBOÇOSUma das tarefas mais difíceis dos futuros arquivistas será catalogar os materiais avulsos. São centenas de folhas soltas e desenhos variados que não chegaram a virar cartuns – esboços que Verissimo vai fazendo enquanto encara a tela em branco do computador à procura de uma fagulha inspiradora para o próximo texto.

“Os desenhos são para passar o tempo, enquanto as ideias não vêm”explica o cronista, referindo-se às numerosas ilustrações que podem ser encontradas nas caixas. São, principalmente, rabiscos de figuras humanas. “Outra maneira de pensar sem parecer que se está pensando é jogar Paciência no computador”, graceja.

CORRESPONDÊNCIA FAMILIAR

Quando for transferido para a universidade, o acervo de Verissimo também contará com uma seção epistolar – com muito mais cartas recebidas do que enviadas. “Quem mais escrevia cartas era o escritor, meu pai”, conta Verissimo. Foram guardadas cerca de vinte missivas trocadas com familiares e com personagens notáveis da vida pública nacional (fãs e desafetos), manuscritas ou à máquina. Somadas a e-mails recebidos desde os anos 90, os registros chegam às centenas. Mas o correio eletrônico ainda não foi organizado pela família.

Nas cartas enviadas pelo pai, Luis Fernando era tratado carinhosamente como “Lico” ou “Louie”. Em junho de 1965, pouco após Erico Verissimo lançar O Senhor Embaixador, escreveu ao filho (que estava em viagem, fora da cidade) para contar sobre o alvoroço em sua casa, com visitantes e entrevistadores aparecendo quase diariamente: “O livro está vendendo como hot-cake (cacaca quente, as we say in Spanish)”, dizia. A correria era grande: Erico escrevia pouco antes de sair para uma sessão de autógrafos do novo romance, o antepenúltimo que publicaria antes de morrer em 1975.

Na época da carta, Luis Fernando e a esposa, Lucia, estavam a ponto de se assentar definitivamente na casa do bairro Petrópolis, onde ele havia crescido. Erico ofereceu um alento ao filho, para que mantivesse o ânimo diante do golpe militar de 64. “Louie, no tratado de Coexistência Pacífica que vamos assinar, só exijo uma única cláusula. Nela tu prometerás não te deixares jamais tomar de desânimo, desesperança ou qualquer sentimento dessa natureza, haja o que houver. (A não ser que a Fernanda passe a namorar um cabo da Brigada Militar.) Quanto à Lucia, não tenho cláusulas a impor”, escreveu Erico.

CARTAS PARA ILUSTRES

“Renan Calheiros e Antônio Carlos Magalhães foram dois políticos, que eu me lembre, que mandaram cartas reclamando de alguma opinião minha”, conta Luis Fernando Verissimo. A mensagem de ACM veio por fax, em 19 de abril de 2000, e respondia a uma crônica que o senador havia considerado ofensiva. Naquela semana, em meio a protestos contra os festejos dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, o cacique suruí Henrique Labaday apontou uma flecha para o rosto do político baiano. A imagem repercutiu no mundo todo.

“Um flechaço no ACM seria uma espécie de apoteose do exotismo nacional”, afirma Verissimo, ecoando, dezessete anos depois, o sentimento expressado na crônica. No texto que causou indignação ao senador, publicado em O Globo, Verissimo pontuava: “Que nada de mal lhe aconteça, longa vida para Antônio Carlos – mas pense um pouquinho. Se aquele índio tivesse trespassado o ACM com uma flecha diante das câmeras, não seria uma espécie de desenlace lógico da nossa História? A cena final que, num instante de revelação, dá sentido a toda a trama, faz as peças se encaixarem, desfaz todos os enigmas, torna tudo claro e inevitável?” No fax, o político baiano reclamava da “agressão desnecessária” que o texto fazia a ele. Para ACM, a “flechada” de Verissimo era “mais venenosa que a de qualquer índio”. “Respondi que ele não deveria se preocupar, minhas flechas tinham ponta de borracha”, relembra o cronista.

Nem todas as correspondências tiveram a mesma troca de flechaços. Em outra crônica, Verissimo elogiava os posicionamentos do senador paulista Eduardo Suplicy, mas reconhecia compreender pouco das suas falas. Após uma bem-humorada troca de mensagens, recorda Fernanda, “o pai disse para o Suplicy: não importa, senador, mesmo que eu não lhe entenda, eu concordo”.

CARTUNS

Há também versões originais dos cartuns de Verissimo, especialmente As Cobras e a Família Brasil. Segundo o escritor, há muitas lacunas: ao longo dos anos, quando estava em trânsito, muitas vezes enviava o material pelo correio e os originais nunca retornavam. “Eu nunca mais via. Tem alguma coisa aqui ainda, mas a maior parte da arte que eu fazia ficava só nos arquivos do jornal”, lamenta.

Entre os materiais preservados, os leitores poderão encontrar um “boneco” da primeira edição do livro As Cobras, publicado em 1975 pela extinta editora Milha, com colagens e orientações dadas, em alguns casos, pelo próprio Verissimo sobre mudanças nas páginas antes de seguir à gráfica. O traço era muito diferente daquele que depois se tornou conhecido: “As Cobras nasceram magrinhas, muito mal desenhadas. Depois melhoraram – ou eu melhorei”, divaga Verissimo. “Quando elas acabaram, estavam saudáveis e robustas.”

PRIMEIRAS EDIÇÕES

O acervo não se restringe aos fragmentos da intimidade. Também serão levados para a Unisinos versões raras de textos de Verissimo, como a coleção completa de primeiras edições e as várias traduções de sua obra. O pesquisador que cruzar com algumas das primeiras impressões de Verissimo terá uma surpresa: na capa, aparece grafado um certo Luiz Fernando Verissimo, com Z no lugar de S.

Há alguns anos, buscando conservar melhor os exemplares mais antigos, a família encomendou uma encadernação de capa dura para proteger os títulos dos anos 70 e 80. “Eu não sei onde fizeram, mas foi um trabalho horrível. Alguns livros voltaram cortados, inclusive. E também veio o Luiz”, conta Fernanda. “A verdade é que ele tem documentos com o ‘s’ e com o ‘z’. É um mistério que só a certidão de nascimento resolveria, mas ele sempre preferiu assinar Luis. Acha mais simpático”, diz a filha. Na capa original das edições, o “s” sempre prevaleceu – em alguns livros mais antigos, o nome ganhou um acento e virou Luís.

TRADUÇÕES

Em língua estrangeira, o Verissimo romancista costuma ganhar mais versões do que o cronista. Livros como O Clube dos Anjos (1998) e Borges e os Orangotangos Eternos (2000) tiveram destaque no mercado editorial fora do país.

Ao ser publicado no exterior, ele passou a depender da confiança no tradutor – uma fé quase cega, especialmente quando se trata de idiomas indecifráveis para o próprio autor. “Saíram traduções de livros meus em várias línguas, até na Sérvia e na Coreia. Como eu só falo português e inglês, e mal, não posso julgá-las”, graceja. “Mas gostei de todas.”

Entre as traduções que Verissimo pôde avaliar, uma das suas favoritas é a versão em inglês de Borges e os Orangotangos Eternos. No mercado editorial anglo-saxão, Borges and the Eternal Orangutans passou pelas mãos da britânica Margaret Jull Costa, responsável por traduções de Fernando Pessoa e José Saramago.

O livro foi bem recebido por críticos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Em 2005, Thomas McGonigle, do Los Angeles Times, definiu a obra como “a perfect novel”. “Achei meio exagerado, mas gostei também”, comenta Verissimo.

ROTEIROS

Muitos dos roteiros completos que ajudou a desenvolver para programas da Rede Globo também estão espalhados pelas caixas no casarão. “Participei da equipe de criação de vários humorísticos para a tevê, inclusive do revolucionário TV Pirata. Escrever para a tevê é um antídoto para qualquer tipo de vaidade autoral, pois o que vai ao ar geralmente depende de variáveis que nada têm a ver com o texto. Gostei muito da série Comédias da Vida Privada, um admirável trabalho em equipe.”

PATO MACHO

“O Pato Macho não pretende ser original. Louco, sim; original não. Aliás, o que mais nos animou a seguir adiante com a idéia dêste jornal foi a reação de todo o mundo quando ouvia nossos planos. ‘Um jornal? Em Porto Alegre? Agora? Que loucura!’ Quer dizer: com tanto desencorajamento, como desistir? Mas não pretendemos criar do nada. Só Deus criou do nada e olha no que deu.” Com esse misto de editorial e manifesto de fundação estampado em sua primeira página, o jornal satírico Pato Macho apareceu nas bancas de Porto Alegre em abril de 1971, na fase de maior repressão da ditadura.

Pretendia ser um semanário irreverente, uma espécie de O Pasquim gaúcho. “Mas naqueles tempos a irreverência tinha limites”, recorda Verissimo. “Como não podia gozar o regime e os políticos, o Pato gozava a burguesia local, e a burguesia local contra-atacou, e fomos censurados. Foi uma vida divertida, mas curta.” O jornal deixou de circular no mesmo ano em que foi lançado. Verissimo foi um dos idealizadores da empreitada, que teve a colaboração de outros membros da intelectualidade porto-alegrense, como Moacyr Scliar, Ruy Carlos Ostermann, Carlos Nobre, José Antônio Pinheiro Machado e Tatata Pimentel. “As reuniões eram aqui na sala de casa”, relembra Fernanda, que tinha 6 anos à época. “Mas, evidentemente, dava muito mais bebedeira do que jornalismo.”

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