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    Hebert William, aos 15 anos, antes de uma competição - FOTO: ACERVO PESSOAL

questões olímpicas

O berço dos ‘nobres guerreiros de alma leve’

Como funciona o projeto social em Salvador de onde saíram Hebert Conceição, finalista olímpico no boxe, e outros campeões

Clara Rellstab e Júlia Sarmento | 05 ago 2021_12h22
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Ladeira do Ypiranga, número 85. O bairro se chama Cidade Nova. A cidade, nem tão nova assim, é Salvador. Quem passa desapercebido pela casinha de um azul desbotado não imagina que ali começaram  a ser moldadas três medalhas olímpicas do boxe brasileiro – o bronze de Adriana Araújo, na estreia do boxe feminino em Londres 2012, o ouro de Robson Conceição, na Rio 2016, e a medalha de cor ainda indefinida que Hebert William da Conceição conquistou em Tóquio. A casa, apesar de miúda por fora, guarda a Academia Champion, templo do boxe baiano e celeiro de atletas como Acelino “Popó” Freitas, Luís Cláudio Freitas, Junior Cigano, Rodrigo Minotauro, Rogério Minotouro e, agora, Hebert William.

O peso médio de 23 anos derrotou o russo Gleb Bakshi, atual campeão mundial, na madrugada da quinta-feira, 5, e disputará o ouro com o ucraniano Oleksandr Khyzhniak na final. Mas o atleta já estava dando o que falar nas redes sociais desde a vitória sob o chinês Erbieke Tuoheta no último domingo, 29, que lhe garantiu pelo menos o bronze. Os vídeos da comemoração pelo resultado, soteropolitanos até a última gota de dendê, foram compartilhados aos montes no Twitter. Em um deles, Hebert aparece ainda no tatame bradando: “Eu sou medalhista olímpico, caralho, eu mereço pra caralho! Nós trabalhamos pra caralho, porra! Aqui é Brasil, porra! Do Oiapoque ao Chuí que eu tô aqui representando. É Brasil, é Bahia, é Salvador, porra!”; em outro, aparece cantando “Madiba”, canção do grupo Olodum em homenagem a Nelson Mandela que embalou sua entrada na Kokugikan Arena naquele dia. 

“Nobre guerreiro, negro de alma leve, nobre guerreiro, negro lutador. Que os bons ventos calmo assim te levem aonde você for”, diz a canção. Ieda Conceição, 61, mãe de Hebert, fez coro às palavras dos compositores Bida e Marquinhos Marques e acrescentou outros adjetivos ao filho caçula em entrevista à piauí: “Ele tem coragem, é raçudo. Vai longe.” Moradora do bairro de Pau da Lima, no miolo central de Salvador, a professora aposentada sempre apoiou o gosto do menino pelo esporte. Hebert fez capoeira, jogou futebol e entrou no mundo da luta pelo jiu-jitsu. Quando o filho fez 15 anos, no entanto, Ieda percebeu que era preciso que tanta energia fosse focada em uma só atividade e deu o ultimato: “Qual esporte você quer fazer, menino?”. Calhou que a resposta não estava em nenhuma das modalidades já praticadas por Hebert, mas nos ringues. Prodígio no jiu-jitsu, o menino recebeu um convite para realizar um teste na Academia Champion, comandada por Luiz Dórea.

 

 

Sede da Academia Champion, em Salvador
Sede da Academia Champion, em Salvador
Em casa: Hebert William com Nina Carvalho, amiga da família, Ieda, mãe do atleta, a noiva, Hellen Fernandes, e a irmã, Nayrã Letícia, com o filho no colo
Em casa: Hebert William com Nina Carvalho, amiga da família, Ieda, mãe do atleta, a noiva, Hellen Fernandes, e a irmã, Nayrã Letícia, com o filho no colo
O boxeador criança, na casa da mãe
O boxeador criança, na casa da mãe
Hebert William e Robson Conceição
Hebert William e Robson Conceição
Sede da Academia Champion, em Salvador
Sede da Academia Champion, em Salvador
Em casa: Hebert William com Nina Carvalho, amiga da família, Ieda, mãe do atleta, a noiva, Hellen Fernandes, e a irmã, Nayrã Letícia, com o filho no colo
Em casa: Hebert William com Nina Carvalho, amiga da família, Ieda, mãe do atleta, a noiva, Hellen Fernandes, e a irmã, Nayrã Letícia, com o filho no colo
O boxeador criança, na casa da mãe
O boxeador criança, na casa da mãe
Hebert William e Robson Conceição
Hebert William e Robson Conceição

 

Luiz Carlos Dórea, 59, nasceu e cresceu no bairro de Cidade Nova, a poucas casas de onde montou o seu panteão. Uma espécie de Midas do boxe brasileiro, Dórea falou com a piauí bem longe de casa. A conversa aconteceu por telefone, de Los Angeles, nos Estados Unidos, onde o treinador está em companhia de Robson Conceição — o medalhista e prodígio de Dórea disputa, em 10 de setembro, o cinturão de superpena contra o mexicano Óscar Valdez, atual detentor do título. Atleta amador e autodidata, Dórea começou no boxe com 22 anos. Estreou nos ringues aos 24, como meio-médio-ligeiro, já vencendo o Campeonato Baiano e o Campeonato Norte e Nordeste. No boxe profissional, em 1987, levou para casa o título de Campeão Brasileiro de Boxe Profissional e, em 1988, foi Campeão Mundial de Boxe Profissional Júnior. A maior realização da sua carreira, no entanto, chegou dois anos depois, com a fundação da Academia Champions e o projeto Campeões da Vida, em 1990.

A Champion foi construída em um terreno onde a mãe de Dórea tinha uma escola nos anos 1980, para que o próprio Dórea pudesse treinar. “Quando me dei conta, já tinha virado treinador de lá (risos)”, brinca. Primeiro, ensinava os fundamentos do boxe apenas para as crianças da vizinhança, mas não demorou para que rebentos de outros bairros e cidades da Bahia aparecessem atrás da fórmula mágica de Dórea. Desde a repaginada no espaço de sala de aula da mãe para academia de boxe, mais de 8 mil jovens já passaram pelas mãos e olhos atentos do treinador. “O futebol é o esporte número um do Brasil, mas com muita propriedade eu falo: na Bahia, o esporte que mais eleva o nome do estado é o boxe. E, graças a Deus, a nossa academia, o nosso projeto, é o coração do boxe no Brasil”.

As razões para o sucesso do boxe na Bahia, diz Dórea, podem ser resumidas em duas: a ginga do baiano e a metodologia “diferenciada” da Academia Champions – a qual não descreve com detalhes, por motivos óbvios. “O baiano tem aptidão natural pras artes marciais, jogo de cintura e  coordenação. Acredito muito na nossa metodologia, que hoje praticamente toda a Bahia segue. É um trabalho feito passo a passo, todo dirigido, incondicionado. A gente ama o que faz e gosta de ensinar detalhes. Estamos entre as maiores academias do mundo por causa dos resultados, o esporte de alto rendimento vive de resultado”, desconversa. O que ele revela, no entanto, são os dois pré-requisitos para que um atleta permaneça treinando na casa: é preciso manter-se na escola com bons resultados e não é permitido que o jovem brigue fora dos ringues.

Para ser aluno da Champion, é preciso que o pai ou a mãe do jovem, que precisa ter entre 12 e 18 anos, vá o local e faça a inscrição. As aulas são gratuitas e acontecem de segunda a sábado, em todos os turnos: de manhã, de tarde e à noite. Basta chegar. Depois, o compromisso é entre o treinador e o atleta. “É um caminho bem natural, começa criança, sem aquela preocupação. Hoje a Champion serve muito de exemplo, eles falam ‘quero ser como Dórea, como Robson, como Minotauro’. O pensamento. Mas a primeira coisa é ser um cidadão. Ele vai ser reeducado, orientado a respeito de disciplina, pontualidade, respeito ao próximo… São todas coisas que ele aprende na academia, dentro do projeto com a gente”, resume Dórea. O treinador, que toca a academia com os filhos Luiz Dórea Júnior e Layla Dórea, também atletas, tem sob a batuta atualmente 40 atletas. O número já chegou a 300. Nos últimos meses, a academia ficou fechada, por causa da Covid-19. A redução do número de atletas, segundo ele, é fruto da  pandemia e da falta de incentivo público ao boxe baiano. 

O governador da Bahia, Rui Costa, fez post em sua conta oficial no Instagram celebrando a vitória de Hebert em Tóquio. “Na torcida por esse soteropolitano talentoso que já garantiu pelo menos a medalha de bronze na Olimpíada. O que também está garantido é a Arena de Lutas da Bahia, que terá seu belíssimo projeto apresentado em breve. Que venha ouro!”, escreveu. Nos comentários, Robson Conceição, ouro no Rio, respondeu: “De Salvador pro mundo, mesmo sem o apoio que precisamos. Vamos apoiar de verdade nosso boxe, sem promessas. Vamos apoiar a base e resgatar nossa juventude”.

“Eu queria que Robson tivesse sido até mais duro”, disse Acelino “Popó” Freitas à piauí, quando questionado sobre as mensagens entre o governador e o atleta. Também cria da Champion, juntamente com seu irmão Luís Cláudio Freitas, Popó, lutador aposentado e ex-deputado federal pela Bahia, resumiu a batalha diária por apoio em “luta por cima de batalha”. Fora dos ringues desde 2017, Popó disse que o surgimento de iniciativas como o Bolsa Pódio, Bolsa Atleta — incentivo que Hebert recebe — e FazAtleta, todas de responsabilidade do governo federal, têm aliviado a situação de quem já tem uma carreira bem sucedida no esporte, mas que a situação continua feia para quem está começando ou fora dos holofotes. “Quando o menino ganhou a medalha e ele foi lá receber, acabou, não deu mais auxílio, não deu nada. Dos atletas da Bahia, Adriana Araújo foi a segunda medalhista que o Brasil teve em Olimpíadas. Sabe o que essa menina tá fazendo? Trabalhando de motorista de Uber.  Eu nem perdia meu tempo ouvindo o outro lado, porque o que você vai ouvir do outro lado você já ouviu na mensagem que ele postou no Instagram”, afirmou. 

A indisposição de Popó com o assunto tem motivo: em 2016, após Robson Conceição trazer o ouro olímpico, o governador Rui Costa, do PT, ainda no primeiro mandato, prometeu a criação da Arena de Lutas da Bahia, em Salvador. O projeto que deveria ter sido apresentado em 2019 até hoje não saiu do campo das palavras. Em nota à piauí, o governador reiterou a promessa de implantação do centro de treinamento de boxe no estado, mas sem determinar prazos. Segundo ele, o projeto arquitetônico já está concluído e será apresentado em breve. A Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (Sudesb) informou que o projeto conceitual do equipamento, que havia sido desenvolvido pelo governo para ser implantado na Avenida Luiz Tarquínio, bairro da Cidade Baixa da capital baiana, teve parecer desfavorável do Iphan (Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional) por estar localizado em uma área vizinha a prédios tombados pelo órgão.   

Nos 31 anos de história da Academia Champions, a única vez em que o espaço contou com apoio direto do governo da Bahia ou da prefeitura foi em 2011, quando o então vice-governador de Jaques Wagner (PT) e o hoje senador Otto Alencar (PSD) tornaram a estatal Bahiagás patrocinadora do Projeto Campeões da Vida por um ano. O projeto se mantém de pé com o auxílio do setor privado. “Quando a gente ganha, é recepção em carro de bombeiros, promessa e mais promessa… É uma pena. Se não fosse o projeto, talvez esses campeões não existissem hoje, porque a grande maioria é de origem humilde e não teria como pagar pelo treinamento. Todos os campeões foram forjados na Champions porque a gente acredita no próximo. Eu acredito no ser humano, eu acredito no atleta. A gente forma homens e mulheres. Cidadãos“, afirma Dórea.

A filosofia do treinador fez com que Ieda apoiasse a entrada e a permanência do filho, hoje medalhista olímpico, no boxe. Para ela, o Hebert Conceição, atleta bem sucedido, é consequência do grande homem que ele se tornou por influência do esporte. “Digo a ele assim: ‘eu não tenho orgulho que você é atleta não, eu tenho orgulho que você é um homem, um menino homem'”. Acompanhando o atleta-cria de longe, Dórea se emociona ao mirar mais uma medalha para a academia e diz que o boxe o ajudou a formar primeiro cidadãos, depois campeões. Para quem treina na Champions, a história de Hebert é exemplo e inspiração para futuros guerreiros de alma leve.

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