O cancelamento do Carnaval de rua em várias cidades do país devido à disseminação da variante Ômicron frustrou os planos de muita gente, sobretudo de quem vive da festa. Na segunda metade de 2021, conforme progredia a vacinação, a agenda de ensaios, aulas de música e shows vinha se movimentando, de olho no que seria o primeiro Carnaval desde o começo da pandemia. O músico Pablo Beato, de 33 anos, que toca tuba e trombone em blocos de rua há quase duas décadas, começava a recuperar a renda que perdeu nos últimos dois anos – período em que, para sustentar a casa, teve que vender máscaras de tecido confeccionadas por sua mulher. Agora, diante de mais um Carnaval cancelado, o músico sente que está vivendo uma reprise e diz não saber como vai se virar. “Está batendo uma preocupação enorme. Eu me sinto de mãos atadas.”
Em depoimento a Marcos Amorozo
Meu envolvimento com o Carnaval começou aos 14 anos, quando o maestro da banda da qual eu participava no colégio me convidou para tocar com ele em grupinhos de Carnaval. O ano era 2002. Na época, eu morava em Magé, na Baixada Fluminense, e nunca tinha pensado em me envolver com o Carnaval, muito menos em fazer disso uma profissão. Mas eu topei o convite, e depois dessa primeira experiência acabei tomando gosto pela festa.
Eu me formei em administração de empresas e cheguei a trabalhar na área durante algum tempo. Nessa época, a música para mim era só uma forma de fazer uma renda extra. Até que em 2010, já com 22 anos, percebi que a vida de instrumentista estava me dando mais dinheiro do que meu outro trabalho. Minha agenda já não tinha mais espaço para os dois empregos. Escolhi ficar com o Carnaval e fui tocar tuba e trombone no Cordão da Bola Preta, um dos blocos de rua mais tradicionais do Rio de Janeiro.
Muitas pessoas não sabem, mas a gente que trabalha com a folia vive dela o ano inteiro. Nosso único mês de férias é março e mesmo assim não é tão tranquilo, porque é quando começamos a planejar o Carnaval seguinte. Antes da pandemia, eu me encontrava ao menos uma vez por semana com o pessoal de cada um dos quatro blocos de que eu participo, para ensaiar. Também fazia shows e apresentações aos fins de semana, além de trabalhos freelancer como compositor de arranjos musicais. Para completar, eu dava – e continuo dando – aulas particulares de música. Era uma rotina bem intensa.
Quando veio a pandemia, as atividades presenciais dos blocos foram suspensas, e todas as minhas aulas passaram a ser feitas de forma remota. Shows, ensaios e qualquer tipo de evento que envolvesse aglomeração foram descartados. Para quem estava acostumado a faturar até 6 mil reais por mês, ver a renda cair para 1,5 mil foi desesperador. Minha esposa passou a confeccionar máscaras de tecido, que eu vendia de porta em porta para ajudar no nosso sustento. O curioso é que essa necessidade de cortar gastos foi o que acelerou nosso casamento e a decisão de finalmente morarmos juntos.
Além do problema financeiro, bateu certo desânimo nessa época. Os alunos depois de um tempo começaram a enjoar das aulas online e se afastaram, a ponto de um dia eu abrir a sala de reunião virtual e não aparecer ninguém. Fiquei preocupado com o bem-estar do pessoal, além de tudo. Alguns alunos já me disseram que tocar em um bloco de Carnaval os ajudou a vencer a depressão, então sei a importância que isso tem para todos eles.
Em 2021, com o avanço da vacinação, comecei a sentir alívio. Mas foi só em novembro que voltei a respirar mesmo. Retomamos as oficinas presenciais, assim como os shows e ensaios abertos, e isso me ajudou a pagar as dívidas que acumulei. Passei a fazer planos para o futuro e a rever pessoas queridas que não encontrava havia quase dois anos. Pensei até em comprar novos instrumentos e voltar para a faculdade de música, que tranquei.
Essa retomada, depois de tanto tempo, foi frenética. Entrei numa correria de sair de casa de manhã e só parar à noite, quando sobrava um tempinho para ver minha filha de 10 anos e descansar. As turmas de alunos nos blocos estavam lotadas, e a maioria deles estava tendo o primeiro contato com o instrumento. Com o Carnaval chegando, nossa rotina ficou mais agitada do que era antes da pandemia. Comecei a reunir o pessoal duas ou três vezes por semana, enquanto meu grupo de alunos particulares também aumentava. Nos intervalos entre as aulas eu conseguia encaixar alguns shows. Mantive esse ritmo até o Réveillon.
Mas a esperança de que tudo voltaria ao normal desapareceu no último dia 4, quando o prefeito Eduardo Paes anunciou o cancelamento do Carnaval de rua devido à explosão de casos de Covid-19. Eu vi aquele roteiro se repetir: as aulas de música voltaram a ser online, e os eventos que estavam programados foram suspensos pelas próximas duas semanas.
Agora bate uma preocupação enorme, porque muitos alunos podem perder o interesse pela oficina. Se diminuir o número de inscritos, vai cair minha renda. E o problema não está só nas aulas: como músico, sei que não vai ter demanda para compor arranjos nos próximos meses, porque todo esse mercado gira em torno do Carnaval e dos blocos de rua. Como nada disso vai acontecer, me sinto de mãos atadas. É uma repetição do que já aconteceu.
Não critico a decisão do prefeito; acho muito prudente, inclusive. É impossível controlar as multidões que seguem os blocos de rua. Não dá para saber quem foi vacinado, quem está testado, quem tem sintomas. A esperança de manter o meu sustento, que vinha voltando aos patamares pré-pandemia, agora está nos eventos privados de Carnaval. É claro que nessas festas, incluindo o desfile na Sapucaí, ainda existe risco de contaminação. Mas ele tende a ser menor, já que os organizadores podem exigir carteira de vacinação e teste negativo para Covid-19 dos frequentadores, além de manter distanciamento entre as pessoas. Ainda assim, se esses eventos também forem cancelados, eu vou respeitar e entender da mesma forma. A prioridade deve ser a saúde da população, sempre.