Numa manhã de sábado, quem entrar numa livraria descolada de São Paulo ou do Rio de Janeiro ouvirá, quase invariavelmente, uma playlist de canções da Tropicália. Não há nada mais cool. A banda Bala Desejo, que se esforça para ser mais tropicalista que os tropicalistas, com seus looks estrambólicos, foi uma das sensações dos últimos anos. Nos petits comités nas casas de artistas, uma cena frequente: vestidos de branco, todos cantam baixinho as mais delicadas composições de Caetano Veloso.
O músico baiano, hoje com 81 anos, transcendeu de ídolo para divindade. “Eu acredito em Deus”, escreveu o humorista João Vicente de Castro, ao publicar no Instagram uma foto ao lado de Caetano, seu padrinho. A aura se estende a Gilberto Gil, chamado aqui e acolá de “orixá vivo”. Disse Gregorio Duvivier, nas redes sociais, depois de gravar um programa de tevê com Gil: “Não acredito em Deus, mas ontem conversei com ele.”
Essa veneração poderia ser tomada como apenas uma demonstração de apreço pelo artista, mas isso implicaria ignorar uma questão política de fundo. Caetano e Gil encarnam uma visão de país que foi resgatada e anabolizada pela nossa intelectualidade em reação à extrema direita, escreve Luigi Mazza na edição deste mês da piauí. Tornaram-se, para muita gente, o rosto do Brasil da resistência, não tanto pelo que dizem ou fazem, mas pelo que simbolizam. Contra o Brasil desagradável que emergiu em 2016 portando fuzis, Bíblias e motosserras, evocou-se a ternura de um Brasil bonito, delicado, plural. Uma imagem reconfortante para tempos desconfortáveis. Daí os elogios um tanto saturados, que traduzem, em seu exagero, um certo desamparo.
Outros artistas consagrados, como Chico, Gal, Bethânia e Milton, também são celebrados nos pequenos convescotes onde circula a intelligentsia brasileira. Os tropicalistas têm certo protagonismo talvez porque, sendo representantes de um movimento artístico que pretendeu reinventar o Brasil, penetraram de forma mais profunda na nossa autoimagem de país. Ou talvez porque se esforcem mesmo para ter esse protagonismo, dialogando com as redes sociais, com os jornais, com os jovens.
As duas hipóteses não são excludentes, mas a primeira é mais reveladora. Pode-se dizer que a Tropicália, se não inventou, ao menos sintetizou um senso de brasilidade que acabou se tornando parte da nossa cultura, da forma como nos vemos no mundo. Esse senso de brasilidade foi posto em xeque pelo bolsonarismo.
Assinantes da piauí podem ler a íntegra do ensaio neste link.