Numa tarde de outubro de 1934, Luzia Cardoso, uma empregada doméstica de 28 anos, foi presa na Rua Araújo Leitão, número 86, no bairro do Engenho Novo, Zona Norte do Rio de Janeiro. Era uma segunda-feira, dia de Exu Lalu – um dos orixás da umbanda. A prisão foi efetuada por um grupo de policiais chefiado pelo delegado Dulcídio Gonçalves, conhecido no Rio dos anos 1930 por perseguir praticantes de religiões afro-brasileiras e frequentadores das escolas de samba da Praça Onze.
Segundo o boletim de ocorrência, foi apreendida junto com Cardoso uma cabeça feita de argila, resina e vidro que repousava sobre um alguidar de barro – recipiente parecido com um prato – forrado com farofa amarela e pés de galinha. A cabeça representava Lalu, o orixá homenageado do dia. Cardoso foi presa em flagrante “por praticar atos que assumem a feição de baixo espiritismo” e liberada no dia seguinte mediante o pagamento de uma fiança de 50 mil réis. No inquérito, negou a prática da umbanda – que até então podia ser configurada como crime –, e o caso acabou arquivado um ano depois, em agosto de 1935.
A cabeça de Lalu, porém, nunca retornou à dona, que morreu sem reavê-la. Durante 85 anos, a peça ficou sob posse da Polícia Civil do Rio, junto com outros quinhentos objetos litúrgicos do candomblé e da umbanda apreendidos como evidências criminais entre os anos de 1889 e 1945. A história desse acervo ajuda a contar a perseguição sofrida pelos praticantes de religiões de matriz africana no Brasil.
Embora, no papel, o país seja um Estado laico desde a Constituição de 1891, o Código Penal de 1890 tipificava como crime o exercício do “baixo espiritismo”, termo racista que se referia aos cultos afro-brasileiros. Isso só mudou em 1946, quando o escritor Jorge Amado, na época deputado federal pelo PCB de São Paulo, propôs uma emenda à Constituição garantindo a liberdade de culto no Brasil. O texto foi aprovado, e com isso os terreiros passaram a ter o amparo da lei. Até então, era comum que fossem profanados pela polícia. Mães e pais de santo eram presos, acusados de praticar feitiçaria. Seus objetos litúrgicos eram confiscados.
Depois de apreendidas, essas peças ficavam sob a tutela do Serviço de Tóxicos, Entorpecentes e Mistificações, braço do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) responsável por apurar casos de charlatanismo, uso de drogas e práticas do tal “baixo espiritismo”. Até 1938, os objetos eram armazenados sem tratamento especial, como quaisquer provas de crime. Naquele ano, porém, o Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – tomou a decisão de tombar os bens confiscados de cultos de matriz africana, por entender que eram registros importantes da cultura brasileira. Foi só então que esse grupo de objetos, dispersos até aquele momento, passou a ser considerado um acervo – e a ser tratado como tal.
Intitulado “Coleção do Museu de Magia Negra”, o conjunto ficou em exposição por mais de cinquenta anos no Museu do Departamento de Segurança Pública, que existe ainda hoje no Centro do Rio, rebatizado de Museu da Polícia Civil. Em 1999, o acervo foi transferido para o Palácio da Polícia e saiu de exibição. Foi armazenado em caixas. Durante 21 anos, esses objetos ficaram inacessíveis tanto para pesquisadores quanto para o público em geral. Mas nunca foram totalmente esquecidos.
“Desde criança eu ouvia minha avó falar dessas peças. Ela falava das ‘nossas coisas que estão nas mãos da polícia’, e isso ficou marcado dentro de mim”, relembra Mãe Meninazinha de Oxum, ialorixá que comanda o terreiro Ilê Omolu Oxum, em São João de Meriti (RJ), na Baixada Fluminense. A quem visita o terreiro ela mostra, orgulhosa, um memorial criado em 1997 para homenagear sua avó, Iyá Davina. “A gente tem que guardar e cuidar das coisas porque senão acaba. Esquece.”
Mãe Meninazinha de Oxum passou mais de trinta anos lutando pela liberação do acervo. Diz ter conversado com autoridades em busca de apoio, mas os apelos foram em vão. Durante muitos anos, a defesa dessa pauta ficou restrita a algumas poucas lideranças do candomblé e da umbanda, que sempre se referiram à coleção de objetos litúrgicos como “Nosso Sagrado”. Por mais que se soubesse da existência desse acervo histórico, não havia, até então, um movimento organizado com capacidade de reivindicá-lo. A situação começou a mudar em 2017.
Naquele ano, figuras de peso do movimento negro, como a vereadora Marielle Franco, acadêmicos e lideranças religiosas lançaram, com apoio do deputado estadual Flávio Serafini (Psol-RJ), a campanha Liberte Nosso Sagrado. O movimento, que ganhou hashtags nas redes sociais e o impulso da militância, pedia que o acervo fosse realocado e pudesse ser visitado por religiosos e pesquisadores.
No embalo da campanha, a produtora independente Quiprocó Filmes lançou ainda em 2017 o documentário Nosso Sagrado. O longa-metragem une depoimentos de pais e mães de santo, museólogos e militantes que defendiam a liberação do acervo. Era uma obra engajada. “Não foi uma produção documental em que a gente só ia lá e filmava. A gente esteve junto na negociação com o Ministério Público, participando das diligências no Museu da Polícia Civil e nas reuniões de estratégia de campanha”, explica Fernando Sousa, cocriador da Quiprocó e um dos diretores do filme.
Ninguém sabia, até aquele momento, onde o acervo poderia ser alocado, caso a campanha desse certo. Depois de uma série de audiências públicas na Alerj – a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro – e reuniões com o Ministério Público Federal, concluiu-se que o lugar ideal era o Museu da República. A instituição funciona no Palácio do Catete, antiga sede da Presidência, no Rio de Janeiro. Em junho de 2018, o poeta e diretor do museu, Mário Chagas, recebeu um e-mail com o título em caixa alta: “LIBERTE NOSSO SAGRADO.” Eram os organizadores do movimento pedindo uma reunião para propor a ideia.
O encontro aconteceu poucas semanas depois. Chagas se mostrou receptivo, mas foi preciso uma negociação entre as partes. Os líderes da campanha – entre eles Mãe Nilce de Iansã, sobrinha de Mãe Meninazinha de Oxum – fizeram exigências. “A primeira condição era deixar claro que esse era um gesto de reparação do Estado, uma reparação histórica e simbólica”, relembra o diretor do museu. A história do Palácio do Catete reforça esse simbolismo. O edifício foi erguido em 1858 para servir de moradia a um comerciante de escravos português e sua família. Mais tarde, com o fim da monarquia, foi reaproveitado como residência oficial dos presidentes da República.
“Se as ordens policiais para as batidas nos terreiros de candomblé e nas casas de umbanda não partiam do Palácio, elas certamente tinham a conivência de quem estava lá”, diz Chagas. O diretor do museu, por sua vez, também impôs condições. Disse que só aceitaria abrigar o Nosso Sagrado se as lideranças do movimento se comprometessem a cuidar dele em parceria com a equipe do museu. Também ficaria por conta dos organizadores negociar a retirada dos objetos do Palácio da Polícia.
O acordo foi selado. Dali em diante, transcorreu uma longa negociação com o Ministério Público Federal para que o acervo mudasse de mãos. A burocracia se estendeu por dois anos. Finalmente, em agosto de 2020, o termo de cessão dos objetos sagrados foi assinado na sede da Polícia Civil, no Centro do Rio.
O acervo chegou ao museu numa segunda-feira, 21 de setembro de 2020. Foi preparada uma cerimônia de recepção no Palácio do Catete, que até então estava fechado devido à pandemia. Dois senhores negros, vestidos de branco e com guias no pescoço, abriram os portões externos do palácio para que o caminhão que carregava os objetos litúrgicos pudesse entrar. Ialorixás e babalorixás, todos de máscara, entraram no museu para acompanhar o trabalho. Até a ordem de abertura das caixas passou pela orientação das lideranças religiosas. “Não é só acervo. É sagrado e tem que ser tratado como tal. Ali tem a força dos orixás, e a força principal de Exu. Ele esperou anos por essa liberação, trabalhou muito”, explica Mãe Meninazinha de Oxum.
A coleção agora está sob análise da equipe de pesquisadores do Museu da República. A expectativa é de que, no ano que vem, ela vire uma exposição aberta ao público, numa parceria do museu com a Quiprocó Filmes.
A reserva técnica do Museu da República, onde estão alojadas as mais de quinhentas peças de cultos afro-brasileiros, fica fora do Palácio do Catete, num pequeno edifício anexo. Em janeiro, quando a piauí visitou o prédio, todos os itens do Nosso Sagrado estavam acomodados em arquivos deslizantes, onde são cuidadas pelos museólogos. Trata-se de uma das reservas técnicas mais bem equipadas do Rio de Janeiro.
A chegada desse material impactou a rotina do museu. “A nossa reserva técnica não era visitável, não foi concebida para isso”, diz Mário Chagas. “Hoje ela é mais frequentada que alguns museus.” Desde 2020, uma média de 150 pessoas visita o acervo por mês. Entre eles, uma maioria de historiadores, cientistas sociais, pedagogos e acadêmicos em geral, que, nos últimos anos, foram responsáveis por um boom de publicações científicas sobre o Nosso Sagrado. Há, em produção, um documentário e um livro sobre a coleção. A escola de samba Unidos da Ponte, do grupo de acesso do Carnaval do Rio, preparou para este ano um enredo com o tema “Liberte Nosso Sagrado: o legado ancestral de Mãe Meninazinha de Oxum”.
Os profissionais que organizam o acervo do museu trabalharam sob orientação de líderes do candomblé e da umbanda. Responsável pela documentação das peças, a museóloga Emanuelle Rosa criou um formulário online para que ialorixás, babalorixás e pesquisadores do tema registrassem informações sobre os objetos e como cada um deles deveria ser cuidado. Com base nas respostas, ela montou um inventário participativo do acervo, modelo inédito no Museu da República.
“Claro que a gente não vai conseguir reproduzir o contexto original dos objetos, que seria o terreiro. Mas a gente tenta respeitar as orientações”, diz Rosa. Algumas peças da coleção, como os atabaques, exigiram atenção especial. Esse instrumento de percussão nunca pode ficar deitado, em respeito à tradição. No entanto, muitos deles eram instáveis e poderiam ser danificados se não ficassem nessa posição. Foi preciso, então, bolar uma solução: a equipe do museu inventou um dispositivo que encaixa na parte oca do tambor e abre, a partir dali, um suporte. Assim o atabaque fica de pé, mas sem correr o risco de quebrar.
Rosa nunca lidou com uma situação assim em toda a sua carreira. Ela tem se referido a esse trabalho como uma “repatriação”. O termo não tem aplicação literal, já que as peças litúrgicas nunca saíram do Brasil, mas carrega uma conotação política. “Nem 1% do acervo do museu mostra a cultura dos povos negros e indígenas”, explica a museóloga. “A chegada desse material mexe com a ideia do que é o nosso país.”
Antes de ser aberto ao público, o acervo deve passar por uma análise minuciosa que permita identificar a origem, o ano e a função de cada uma das peças. Inquéritos policiais, como o da empregada doméstica Luzia Cardoso, de 1934, são uma das fontes mais úteis para esse levantamento, porque costumam informar os locais de apreensão dos itens e a que tipo de culto eram vinculados. “Ironicamente, é por causa desse tipo de documento que a gente tem conseguido descobrir a origem dos objetos”, diz Eduardo Possidonio, historiador e um dos pesquisadores do acervo. Até agora, pouco mais de trinta objetos tiveram suas casas de origem identificadas. O trabalho de pesquisa é financiado pelo Instituto Ibirapitanga.
O movimento Liberte Nosso Sagrado, embora tenha atingido seu principal objetivo, não deixou de existir. Briga agora para que, passados 85 anos, o Iphan reconheça o racismo presente no nome que deu ao acervo – “Coleção Magia Negra”. O título, de 1938, consta até hoje no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, onde ficam inscritos os bens culturais tombados no Brasil. Os organizadores do movimento querem dar ao acervo o nome que reconhecem ser correto: Nosso Sagrado.