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    Tião no zoo do Rio, como se fosse “um homem injustamente encarcerado.” FOTO: AMÉRICO VERMELHO_FOLHAPRESS

questões ambientais

O candidato enjaulado

Há três décadas, um macaco disputou eleições em um Brasil conflagrado – poderia ser hoje

Roberto Kaz | 04 out 2017_17h07
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Em 1988, logo após o fim da contagem de votos que elegeria o pedetista Marcello Alencar como prefeito do Rio de Janeiro, um fato incomum chamou atenção: os votos nulos chegaram em quarto lugar no pleito – derrotando nomes como Roberto Jefferson e Artur da Távola. O resultado, mais do que um sinal de protesto eleitoral, iluminava uma predileção à fanfarra. Naquele ano, um macaco fora lançado pelos humoristas dos jornais satíricos Casseta Popular e Planeta Diário como candidato extraoficial à Prefeitura.

Os votos para Tião, o animal então com 25 anos nascido no Zoológico Municipal, teriam chegado a 300 mil, cerca de 10% do total, quando somados aos nulos (não há como separar as duas categorias, porque todo voto em Tião era automaticamente anulado). “Espero que a ascensão da candidatura do Tião sirva de lição aos candidatos que obtiveram menos votos que um macaco”, declarou, à época, o humorista Cláudio Besserman Vianna, o “Bussunda”, um dos integrantes do Casseta Popular.

A história pública de Tião, no entanto, ligada à farra midiática promovida pela ideia de colocar um macaco no lugar de um Homo sapiens, esconde um prontuário com número considerável de fugas e rebeliões provocadas pelo animal, como se Tião fosse “um homem injustamente encarcerado”.

No ano passado, o repórter da piauí Roberto Kaz publicou O Livro dos Bichos pela Companhia das Letras. A obra retrata a história de animais e de seus universos particulares, seus humores e suas tristezas. Tião está lá, logo na abertura do livro. Um símbolo de um país sem rumo, governado por um vice-presidente do PMDB (José Sarney, que assumiu após a morte de Tancredo Neves), num momento em que grande parte da classe política estava desacreditada. Faz quase trinta anos. Poderia ser hoje.

Leia abaixo sua história, publicada hoje em homenagem ao Dia Mundial dos Animais.

Olhando de longe, o Brasil, em 1988, vivia um período de relativa euforia política. Decorriam quatro anos do movimento “Diretas Já”, que culminara, após duas décadas de ditadura, na eleição do primeiro civil à presidência. Decorriam também três anos desde que os prefeitos, antes nomeados pelo estado, voltavam a ser eleitos pelo voto popular. Por fim, o país ganhara uma nova constituição.

Mas a verdade é que o Brasil, naquele ano de 1988, continuava mergulhado num mar de descrença. O primeiro civil na presidência era José Sarney, notório colaborador do regime militar. No Rio de Janeiro, o prefeito eleito, Saturnino Braga, acabara de decretar a falência do município. A inflação passara de mil por cento ao ano.

– Era um tempo de muita esperança no retorno da vida política – explicou-me a historiadora Marly Motta, da Fundação Getúlio Vargas. – Mas o namoro com o Sarney, que existira com o começo do Plano Cruzado, havia virado uma profunda decepção. E o Saturnino, que era um homem honesto e respeitado, havia quebrado a prefeitura do Rio. As pessoas perceberam que nem todos os males vinham da ditadura.

A uma semana das eleições municipais de 1988, o “Jornal do Brasil” mostrava, a partir de uma pesquisa, que os jovens entre 16 e 18 anos pensavam com “unanimidade quanto à incompetência do governo do presidente José Sarney”. Consideravam o direito ao voto “banal”, “desinteressante”, “discutível”, “inútil” e “dispensável”. O terreno era propício para que surgisse, na miríade de candidatos, um elemento surpresa em busca do voto.

Este elemento era um macaco.

 

Tião nasceu em 16 de janeiro de 1963, no Zoológico do Rio, de um romance entre os chimpanzés Babá e Lulu. Foi batizado em homenagem a São Sebastião, padroeiro da cidade, e adotado, desde pequeno, pelo chefe dos tratadores, Pacífico Soares – com quem passeava de mãos dadas, diante dos animais enjaulados. De dia, frequentava a sede administrativa, onde fingia atender ao telefone e digitar numa máquina. De noite, não raro, dormia em Olaria, na casa de Soares (a viagem era feita de carro, no banco do carona). A relação paternal persistiu até o dia em que o chimpanzé, já adolescente, subiu numa árvore – ou segundo outra versão, quebrou uma mesa –, ignorando o tratador. Seguiu dali para a jaula. A solidão foi remediada com uma bola, um balanço e um urso de pelúcia.

Talvez por isso, quase não há anotações, no zoológico, sobre o primeiro decênio do animal. A ficha técnica de Tião começa de fato a ser preenchida no dia 7 de julho de 1975, quando, aos 12 anos, o macaco “quebrou a porta externa do alojamento”. O comportamento inconformado voltaria a aflorar em novembro daquele ano, numa tarde chuvosa, em que recusou-se a entrar na parte coberta da jaula. “Assim sendo”, dizia o relatório, “molhou-se a valer, em que pese ter entrado logo depois com a ajuda de um extintor de incêndio”.

Dali em diante, a ficha se assemelharia a de um homem injustamente encarcerado. Em janeiro de 1978, Tião “fugiu e retornou”. Em outubro, “arrebentou a porta interna de seu alojamento”. Em novembro de 1980, “levantou a tela do recinto”. Em abril de 1983, passou a tomar um comprimido do calmante Valium. Em dezembro de 1986, “tentou fugir, tendo conseguido abrir a porta da tela, sendo necessária uma reforma urgente”. Em outubro de 1995, já idoso, “fugiu e foi contido”.

A ficha também mostrava seu histórico médico. Em julho de 1976, resfriado, tomou vitamina C efervescente. Em janeiro de 1977, um complemento proteico por dez dias. Em julho de 1980 teve verme. Um ano depois, tosse. A partir dos 24 anos de idade, as mazelas respiratórias ficaram frequentes. Fez exames de sangue, urina, eletrocardiograma e radiografia do tórax. Quatro anos depois, o açúcar no sangue atingiu o dobro do admissível: diabetes.

Foi um fardo. Em agosto de 1991 o “Jornal do Brasil” contaria que Tião, “irritadíssimo, viu sua ração diária de bananas reduzida de 60 para seis, e teve de suportar a substituição das mangas, dos abacaxis e do milho verde por repolho, chicória e tomate”. O biólogo Pedro Meneses contou, na reportagem, que o macaco estava inconformado: “Ele grita por tudo. Grita se está alegre, e grita se está triste.” Já a diretora técnica do Zoológico, Sônia Prado Rodrigues, lembrava que apesar do esforço, era impossível controlá-lo: “Ele não pode ver alguém comendo que estende as mãos e faz cara triste. As crianças não resistem e acabam lhe dando pipocas e balas”.

Se não bastasse o baque alimentar, Tião, já grisalho, continuava celibatário. A aproximação com a chimpanzé Cafona, no ano em que ele chegara à maioridade, terminara frustrada (e com uma mordida no dedo do macho). Seu mais longevo tratador, Waldemiro Ramos da Silva, hoje com 88 anos, disse que o casal ficou junto por duas semanas “quando o ideal seriam seis meses”. A partir de então, Tião preferiu focar em outro tipo de primata.

– O negócio dele era loura de bota – contou. – O Tião subia no tronco para ficar seguindo quando uma loura passava.

O amor proibido fez com que o animal se rendesse, de forma obsessiva, ao prazer solitário – não raro praticado em público. Já no fim da vida, voltou a se interessar por uma chimpanzé, 23 anos mais jovem, que morava algumas jaulas ao lado. O Zoológico, temendo expô-lo a fortes emoções, foi contrário.

– Morreu solteirão – lamentou Silva.

 

Animal que mais se assemelha ao homem, o chimpanzé abraça, beija, grita, gesticula, cumprimenta, ri e reconhece a própria imagem no espelho. Sente compaixão e tem explosões de brutalidade. Aprende sinais e inventa ferramentas (usa pedra para abrir semente, graveto para tirar meleca, folha para se limpar). Cria culturas próprias. Num estudo publicado em 1999, a pesquisadora britânica Jane Goodall – autoridade máxima no assunto – apontou diferenças entre sete comunidades selvagens. Chimpanzés da Tanzania usavam folhas para espantar abelhas. Os da Costa do Marfim, galhos para pescar formigas (e comê-las sem ser picados). Todos – menos os da Guinea – dançavam debaixo de chuva.

Chimpanzés e humanos têm o mesmo ancestral, cuja população, 10 milhões de anos atrás, dividia-se em pequenos grupos na parte equatorial da África. Quando um destes grupos migrava para um local isolado, via-se forçado a adaptar-se ao novo hábitat. Por vezes, a diferença climática ou geográfica acabava por favorecer certas mutações – de início discretas, mas significativas no acúmulo das gerações. Seis milhões de anos atrás, o ancestral humano cindiu-se do macaco.

De um lado ficou uma espécie quadrúpede, sociável, capaz de caçar em bandos e de viver em árvores (que acabaria evoluindo no chimpanzé). Do outro um primata ainda similar, que levaria mais dois milhões de anos para andar sobre duas patas. Quando isso ocorresse, o ancestral do homem teria suas mãos alforriadas – e passaria a inventar ferramentas de pedra para ocupá-las.

A partir de então, a evolução humana avançou numa série de pequenos passos. O uso de ferramentas levou ao domínio da caça. O domínio da caça, a uma dieta baseada em carne. A ingestão de carne trouxe mais energia. O aumento na energia levou à expansão do cérebro (e de todo tipo de habilidade mental). Em algum momento, possivelmente 400 mil anos atrás, o homem teve o domínio do fogo. Passou a cozinhar, a se aquecer e a espantar inimigos. Em paralelo, também teve que se adaptar a mudanças climáticas – que fizeram dele um animal mais versátil.

Mas ainda que o Homo Sapiens tenha surgido há 200 mil anos, o divisor de águas na sua trajetória ocorreria 60 mil anos atrás. A partir de então, as ferramentas, antes rudimentares, começariam a mudar. As ambições também: o homem colonizaria a Europa, a Ásia e a Austrália. O pesquisador americano Jared Diamond atribui a reviravolta a um conjunto de mutações vocais. “É fácil pensar em como uma pequena mudança na anatomia resultaria numa enorme mudança comportamental”, escreveu num estudo publicado em 2008. “Com a língua falada, leva-se apenas alguns segundos para dizer ‘Vire à direita na quarta árvore, e faça o antílope correr até o arbusto, onde estarei escondido para matá-lo’.”

A partir do domínio da fala, o homem criaria a arte e a espiritualidade. Inventaria a agricultura, a matemática, a escrita, o dinheiro, a guerra, a política, a escravidão, a misoginia, o sadismo, a pornografia e a inquisição. Conceberia a luz elétrica, o combustível, a foto, o avião, a relatividade, a penicilina, a bomba atômica, a psicanálise, a internet e o vídeo de gatinho. Construiria cidade, pirâmide, ponte, arranha-céu, estação espacial, reator de hadron e um lugar chamado zoológico – onde aprisionaria quadrúpedes sociáveis que antes viviam em árvores.

A semelhança entre o homem e os demais primatas foi primeiro apontada pelo médico grego Galeno de Pérgamo, que escreveu, por volta do ano 200, que o macaco nos era mais próximo “nas vísceras, músculos, artérias, veias, nervos e ossos” que qualquer outro animal. (Como a dissecção humana fosse proibida, seu conhecimento vinha em grande parte da anatomia do macaco-de-gibraltar). A ideia voltaria à ata no séculos 17 – quando a anatomista britânico Edward Tyson dissecaria um chimpanzé – e no século 19, com a inauguração, em Londres, do primeiro zoológico (onde havia uma fêmea de orangotango chamada Jenny).

Em 1838, Charles Darwin conheceu Jenny. O naturalista britânico já havia retornado da viagem de cinco anos a bordo do Beagle, onde começara a conceber sua ideia de evolução. “Deixe o homem ver um orangotango domesticado, ouvir seu lamento expressivo, perceber sua inteligência quando chamado, como se entendesse cada palavra do que é dito”, escreveu sobre o encontro com Jenny, em seu diário. “O homem, na sua arrogância, pensa-se uma grande obra, como se interposta por uma divindade. Os mais humildes e eu acreditamos que ele tenha surgido dos animais.”

Duas décadas depois, Darwin publicaria “A Origem das Espécies” – onde diria que todo ser vivo era um resultado evolutivo de algo já extinto. Como a ideia já fosse por demais heterodoxa, preferiu deixar a espécie humana de fora, escrevendo apenas que o futuro “jogaria luz sobre a origem do homem e sua história”. Mas quem somasse a frase ao restante do livro entenderia o que insinuava sobre o passado da humanidade. Os biólogos, naturalistas e clérigos britânicos – quase todos partidários de que o homem fosse uma criação divina – espernearam. Jornais passaram a publicar caricaturas de Darwin no corpo de macacos.

Em 1871, o naturalista voltaria ao assunto, desta vez em detalhes. Num livro chamado “A Descendência do Homem”, definiria o chimpanzé e o gorila como as duas espécies mais próximas à nossa. Intuiria, a partir do habitat destes primatas, que o homem também surgira na África. E escreveria que “o homem ainda carrega no seu corpo o selo indelével de sua origem menor.”

Passado um século, o mapeamento genético mostraria que o homem e o chimpanzé dividem 98,7% do DNA. No que toca ao genoma, o chimpanzé está mais próximo do humano que de qualquer outro primata.

 

Tião não foi o primeiro animal a figurar entre os quadros da política nacional. Em 1959, uma fêmea de rinoceronte chamada Cacareco recebeu estimados 100 mil votos para vereadora de São Paulo. Cacareco ficara famosa um ano antes, durante a inauguração do zoológico, quando o governador Jânio Quadros a definiu, pela popularidade, como “uma forte candidata aos Campos Elíseos”.

Em 1962, houve uma campanha frustrada para eleger a cadela Laica – que acabara de ser lançada ao espaço – a deputada pelo estado da Guanabara. Em 1987, um mosquito foi eleito prefeito de Vila Velha (a Justiça Eleitoral do Espírito Santo anulou os votos, empossando o candidato Magno Pires, que ficara em segundo lugar).

A pedra inaugural da candidatura de Tião, por assim dizer, foi lançada em março de 1988, quando o Zoológico do Rio implementou um programa de adoção dos animais. A empresa interessada bancava os custos de alimentação e, em contrapartida, tinha seu nome gravado numa placa sob a jaula. O zoológico dizia, num comunicado, ter uma “visitação média mensal de 250 mil pessoas”, acrescentando que os veículos de comunicação dariam “uma amplitude de âmbito nacional” aos interessados.

Cada animal tinha um preço, fixado de acordo com o que comia: quinze jacarés custavam menos que uma zebra; três araras equivaliam a uma águia chilena. A campanha, de sucesso instantâneo, seguiu um padrão estético. A Esso adotou o tigre de bengala (baseado no felino que era seu garoto-propaganda), a Camel adotou o dromedário (que já era símbolo do cigarro), o Matte Leão adotou o leão.

Foi então que o humorista Cláudio Manoel teve uma ideia. Ele publicava com Bussunda, Beto Silva, Marcelo Madureira e Hélio de la Peña a fanzine “Casseta Popular” – revista mimeografada, sem periodicidade, surgida dez anos antes na faculdade de engenharia da UFRJ. Quando a tiragem ultrapassava 5 mil, o grupo ia de banca em banca, no Centro, consignando alguns exemplares.

– Encalhava muito – contou-me o humorista Hélio de la Peña. – Fazíamos festa, pichávamos frase de efeito para tentar divulgar. Tínhamos que arrumar uma maneira de aparecer.

A maneira era Tião. Para atenuar o gasto, a adoção foi feita em parceria com a redação do “Planeta Diário” – o concorrente humorístico capitaneado por Reinaldo, Hubert e Cláudio Paiva (os humoristas da “Casseta Popular” e do “Planeta Diário” já trabalhavam juntos na redação do “TV Pirata”; fundariam, dali a alguns anos, o programa “Casseta & Planeta”). A adoção foi firmada em 1º de julho de 1988.

– O Tião já era conhecido por ser sacana, por jogar merda em visitante – disse de la Peña. – A gente não adotou pensando em uso eleitoral, mas na visibilidade que a promoção trazia. E o zoológico achou o máximo: um bicho irreverente adotado por dois jornais de humor.

Acontece que naquele mesmo ano de 1988, a prefeitura do Rio ficaria três meses sem pagar salário. Saturnino Braga havia atrelado o ordenado ao índice inflacionário. Quando o percentual explodiu, a medida, populista, revelou-se temerária. Na tentativa de renegociar a dívida, Saturnino recebeu um sonoro não do governo federal. Decretou falência.

– O Sarney deixou a prefeitura quebrar – disse a historiadora Marly Motta. – O mandato do Saturnino estava muito ligado à estratégia do Brizola de chegar à presidência. Ele não tinha apoio do governo federal e estadual, que eram de outro partido. E perdeu todo o apoio do Brizola quando declarou falência. Ficou leproso. Ninguém queria ser pai daquela criança.

Daí que uma pilhéria despretensiosa ganhou um vulto inesperado. No começo de outubro, os humoristas marcaram um ato público em frente à jaula do macaco. O objetivo, apregoava um panfleto, era lançar a candidatura de “Sebastião Alves Paranhos Paiva de Prata, 25, o popular Macaco Tião, o último preso político brasileiro”. O manifesto terminava com um grito de guerra: “Enfim um homem direito. Macaco Tião para prefeito. Vote no novo! Tião, a esperança do povo.” O ato foi proibido pelo zoológico.

– Ao invés de olhar para o Tião como uma figura folclórica, é bom vê-lo como uma manifestação política de grande relevância – concluiu Marly Motta. – Não por acaso, 1988 desembocou na eleição do Collor, que se apresentava como um não político.

 

A teoria de que o homem descendera do macaco teve, para o chimpanzé, um efeito nefasto. Por ser quase humano – sem usufruir de qualquer direito reservado a um humano –, ele tornou-se o candidato perfeito para os estudos médicos e comportamentais no século 20. Em 1923, o psicólogo americano Robert Yerkes, professor da universidade de Yale, comprou dois chimpanzés – Chimp e Panzee – de um zoológico cubano. Foram os primeiros de milhares que entrariam nos Estados Unidos a partir de então.

No início, os estudos com chimpanzés eram apenas descritivos. Diziam respeito ao crescimento, à gestação, ao aprendizado e às relações sociais do primata. Com o avanço da medicina – e da indústria farmacêutica – o interesse migrou. Ao invés de estudar o chimpanzé, cientistas passaram a usar o chimpanzé para estudar o homem. Nos anos 1940, chimpanzés já haviam sido lobotomizados – em estudos sobre o cérebro – e inoculados com bactérias e vírus como o da poliomielite. Ainda seriam usados em testes espaciais, em tentativas de curar a Aids, e no desenvolvimento da vacina para a hepatite B.

Para além da ciência, a espécie também despertava interesse linguistico e antropológico. Em 1966, um casal de psicólogos da universidade de Nevada adotou uma filhote de dez meses que pertencia à força aérea americana. Batizaram-na de Washoe, criaram-na como se fosse uma criança, ensinaram-lhe a Língua Americana de Sinais. Washoe aprenderia a dizer cachorro, flor, chapéu e sapato – dentre um leque de 350 palavras.

Naquele mesmo período, o linguista americano Noam Chomsky cunhara sua teoria de que a linguagem gramatical – baseada não só em palavras, mas em frases – era uma exclusividade humana. Ainda pairava a dúvida, portanto, se o vocabulário de Washoe constituía uma língua ou apenas um apanhado de palavras. Em 1973, o psicólogo Herbert Terrace, da universidade de Columbia, repetiu a experiência, colocando um chimpanzé recém nascido para ser criado por uma família de Nova York. O animal foi batizado de Nim Chimpsky (uma blague deliberada com o nome do linguista).

Apesar de ter formado algumas frases (“Abraço eu Nim”, “Eu mais comida”), Chimpsky acabou marcado mais pelo sofrimento que pela contribuição à ciência. Findo o período do estudo, foi transferido a um instituto de primatas, e dali para um laboratório da Universidade de Nova York, onde serviu de cobaia para testes farmacológicos (o chimpanzé, mesmo enjaulado, ainda fazia os sinais de “brincar” e “abraço” quando diante de um humano). No final da vida foi comprado – e levado a um rancho – por um grupo de defesa dos animais. Ao tentar visitá-lo, Stephanie LaFarge – a mãe adotiva que o havia criado durante os cinco primeiros anos – foi atacada. Nim passou o resto da vida numa jaula, com outros chimpanzés, sem contato direto com humanos.

Apenas no século 21 – depois que a Inglaterra, a Holanda e a Suécia proibissem o uso de primatas em laboratórios – é que a realidade começaria a mudar. Em 2011, a academia nacional de ciência americana publicaria um memorando dizendo que o uso de chimpanzés era ineficiente e desnecessário à pesquisa biomédica. No ano seguinte, 110 animais seriam transferidos para santuários.

Ainda há 700 chimpanzés espalhados por cinco laboratórios nos Estados Unidos. O Brasil não usa chimpanzés em pesquisas, mas chegou a importar cerca de 200 exemplares para integrar o plantel de circos e zoológicos. O empresário Pedro Ynterian, fundador do Great Ape Project – projeto que abriga quatro santuários de primatas no país –, conta que cada animal valia 20 mil dólares nos anos 1980. Na década seguinte, quando o governo brasileiro estabeleceu controle mais forte para o comércio de animais silvestres, a importação declinou. O “ocaso artístico” do macaco, por assim dizer, ocorreu a partir de 2005, quando cidades e estados passaram a proibir o uso de animais em circos (ainda não há uma lei federal que trate do assunto).

Ynterian fala em 120 chimpanzés ainda vivos no país. A população total, estimada em 2 milhões no século passado, está reduzida a no máximo 300 mil exemplares: espalha-se por 21 países africanos, numa faixa que vai do Senegal a Ruanda.

 

Noticiada nos jornais, a proibição ao ato público fez a campanha de Tião deslanchar. Surgiram camisas, santinhos, criou-se um jingle (“Se a prefeitura está falida, vote no Tião que o macaco é a saída./ Se o voto é obrigação, em 15 de novembro o meu voto é no Tião”). Candidato pelo PDT, Marcello Alencar reclamou que o destaque dado pelo jornal “O Globo” tinha a “nítida intenção” de desestabilizar sua campanha.

Os atores Luiz Fernando Guimarães, Regina Casé, Diogo Vilela, Debora Bloch e Ney Latorraca – integrantes do “TV Pirata” – apoiaram o macaco na “Casseta Popular”. A publicação também apresentou o projeto de governo do primata, com suas promessas para educação, habitação e transporte (geralmente, piadas de duplo sentido).

Em 19 outubro de 1988, 4 mil pessoas compareceram ao showmício em prol da candidatura no Circo Voador. Segundo “O Globo”, Lenine, Leo Jaime e Ultraje a Rigor “tocaram de graça, por puro idealismo”. A duas semanas do pleito, o chimpanzé ainda sairia na capa do Segundo Caderno e da revista “Veja” (que o descreveria como “símbolo nacional da decepção e do embuste que envolvem os políticos do país”). Jarbas Passarinho, Chico Alencar, Carlos Minc e Afif Domingos protestaram contra a campanha.

O candidato Fernando D’Avila, que pleiteava uma vaga de vereador pelo PSDB, tomou medida prática: requereu ao Tribunal Regional Eleitoral do Rio que punisse os jornalistas do “Planeta Diário” e da “Casseta Popular”. Num documento endereçado ao desembargador José Joaquim da Fonseca Passos, D’Avila reclamava do “triste espetáculo de presenciarmos jornalistas alternativos (…) propalando votos para um tal ‘Macaco Tião’ do Jardim Zoológico”. Clamava: “Quando não tínhamos eleições, lutava-se para que houvesse eleições. Vieram as eleições municipais e é cometido o crime eleitoral de se pedir voto para um símio, como se estivéssemos em Hollywood vivendo o filme de ficção ‘Planeta dos Macacos’.” Por falta de provas, que não foram apensadas ao processo, o pedido foi indeferido. D’Avila tentou recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral (o requerimento foi novamente negado).

Marcello Alencar, do PDT, acabou eleito com 31,6% dos votos. Em segundo lugar ficou Jorge Bittar, do PT e em terceiro, Álvaro Valle, do PL. Em quarto, à frente de José Colagorssi, Artur da Távola e Roberto Jefferson, o voto nulo (qualquer voto em Tião era automaticamente anulado). “Espero que a ascensão da candidatura do Tião sirva de lição aos candidatos que obtiveram menos votos que um macaco”, declarou Bussunda, após o resultado.

– Fala-se em 10%, mas acho que era menos – contou-me o documentarista Alex Levy-Heller, diretor do filme “Tião, o candidato do povo”, ainda em finalização. –Teve voto em São Paulo também. Chegou a sair no Guiness como o primata mais votado do planeta.

Com o cacife político acumulado nas eleições, Tião passou a ter vida de celebridade. Em 1989, o macaco, à Che Guevara, foi estampado em camisa, adesivo e broche em celebração ao seu aniversário. Em 1990, quando completou 27 anos, Tião ganhou frutas, ovos de codorna e a visita do então prefeito Marcello Alencar (a quem recebeu com um cuspe de água na cara).

Quando Tião completou 30 anos, o zoológico distribuiu bolo e refrigerante para mil pessoas (o macaco teve de se contentar com a dieta de frutas). No ano seguinte, a festa teve 1.200 balões de gás. Como era praxe nessas ocasiões, Tião jogou areia, frutas e água no público. Waldemiro da Silva diz que, “para o visitante, o aniversário era uma alegria; para o macaco, um stress”.

Silva esteve, para Tião, como Marlene Mattos para Xuxa. Ensinou o macaco a fazer pose de galã, acenar para o público e abrir os braços como o Cristo (a tentativa de repassar os truques ao chimpanzé Paulinho, que o substituiu, foi vã). Sabedor das preferências do animal, presenteava-o com areia para atirar no público. Fazia-o recolher cascas de laranja e banana enquanto limpava a jaula.

– Tinha que tratar ele como uma pessoa – diz. – Eu convivia mais com o Tião que com os meus filhos.

O tratador foi o primeiro a perceber que Tião ficara diabético (“A urina estava amarelada”). Quando o macaco chegou aos 32 anos, foi também o primeiro a notar que seu fim estava próximo (“Ele começou a emagrecer. De 80 quilos, caiu para 50”).

Tião morreu na madrugada de 22 para 23 de dezembro de 1996, após entrar em coma diabético. “Passamos a noite toda com ele, medicando, mas foi inevitável”, contou o veterinário Luiz Paulo Fedullo. César Maia, então prefeito, decretou luto oficial de oito dias na cidade. Fernando Gabeira, à época deputado, escreveu na “Folha” que estava em “luto pela morte de um político íntegro”. “Quem jogaria terra em Marcello Alencar de agora em diante?”, perguntou, em tom amistoso.

No zoológico, Tião foi homenageado com uma estátua em tamanho real. Seu esqueleto foi levado para o Centro de Primatologia do Rio de Janeiro, em Guapimirim, onde está exposto junto a uma ossada de gorila e a alguns crânios de Homo sapiens.

Hélio de la Peña nunca foi ao mausoléu, mas chegou a levar seus três filhos para conhecer o macaco no zoológico. Já o arquiteto Paulo Celso Brandão, que dirigiu a instituição até 1989, diz ter vivido, ali, o período mais gratificante de sua vida profissional.

– Acho que no fundo essa polêmica nos ajudou – pensou, em voz alta, vestido numa camisa com a imagem do macaco. – Divulgava o zoológico.

 

O chimpanzé divide-se em duas espécies: Pan paniscus (conhecida como bonobo) e Pan troglodytes. Tião pertencia à segunda categoria, em que os machos pesam 60 quilos, medem 1 metro e 70 de altura, e chegam a ter três vezes a força de um homem. Na natureza, vivem em bandos de cinco a 150 animais, e se alimentam de frutas, folhas, sementes, insetos e, por vezes, pequenos mamíferos.

Nada que lembrasse a vida de Tião. Solitário e bípede (devido à convivência com humanos), o macaco tinha um cotidiano regrado: tomava leite com vitamina às 8h, almoçava às 10h e terminava o dia com um lanche, às 16h30. A partir dos 28 anos, passou a tomar um comprimido diário para controlar a diabetes.

– Eu anunciava que era a hora do remédio – contou seu ex-tratador, Waldemiro da Silva. – Ele colocava a língua para fora. Depois eu o obrigava a abrir a boca, para checar se o remédio não estava escondido.

– Chorei. Ele nem foi embalsamado.

 

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