Quem tocava muito bem no violão as músicas da bossa nova que a Nara cantava era minha irmã Bete. Eu ficava olhando, ouvindo, impressionada com a facilidade com que minha mana fazia no violão todos aqueles acordes com nonas e décimas terceiras menores, com quinta menor, sétimas aumentadas… Uma encrenca. Mas soava tão bem: Ah! Insensatez, que você fez/ Coração mais sem cuidado… Aí eu me animava e também aprendia a tocar. A bossa nova foi nossa cartilha musical, e com ela João Gilberto, Tom Jobim e Nara Leão.
O jeito de cantar era cool, sem efeitos contrastantes, sem arroubos melodramáticos, afetação ou virtuosismo. O canto fluindo natural como a fala, canto falado, canto baixinho. Nara, a musa da bossa nova, que mais de uma vez rejeitou este título, mesmo quando cantava músicas de protesto tinha um jeito cool de cantar.
Meditação,Tom Jobim, Newton Mendonça
Nara nasceu em 19 de janeiro de 1942, em Vitória e com um ano a família mudou-se para o Rio – a mãe, o pai, a irmã Danuza e ela. Com 12 anos começou a estudar violão. Foi em seu mítico apartamento na Avenida Atlântica que ela reunia os amigos – Roberto Menescal, Carlos Lyra, Chico Feitosa, Ronaldo Bôscoli – para cantar e tocar violão. Vinicius, Tom Jobim e João Gilberto também estiveram lá, mas não eram frequentadores assíduos. No entanto, a bossa nova não nasceu aí. Ali foi seu quartel general. A nova música nasceu nas casas noturnas do Leme e de Copacabana onde já estava sendo tocada e cantada pelos então músicos da noite Tom Jobim, João Donato, Dolores Duran, Sylvinha Telles. Sobre a bossa nova, o poeta Manuel Bandeira observou que em consequência das transformações urbanísticas a “música de rua” estava morrendo e um novo tipo de música popular surgindo no Rio de Janeiro: “Está nascendo uma música intimista, mais apropriada para os apartamentos.”
Nara começou a cantar bossa nova, mas o universo “do amor, do sorriso e da flor” era limitado demais para esta cantora que tinha olhos imensos e imensa vontade de se conhecer e de conhecer o mundo, que via o mundo ao seu redor cheio de contrastes, conflitos, desigualdade e que começou a ouvir outras vozes, vozes que vinham do morro, que contavam outras estórias, que cantavam as coisas do mundo, que falavam da vida e dos sentimentos de um povo que vivia à margem do progresso. Nara subiu o morro e redescobriu o Brasil. Qual não terá sido a surpresa do produtor Aloysio de Oliveira quando a musa da bossa-nova mostrou a ele o repertório que havia escolhido para gravar seu primeiro disco? Zé Kéti, Nelson Cavaquinho, Cartola, Elton Medeiros. É claro, havia também Edu Lobo, Baden, Vinícius, Carlos Lyra, os compositores considerados modernos, mas as canções escolhidas longe estavam da temática leve da bossa-nova. A musa se politizara. No LP Nara, gravado em janeiro de 1964, pelo selo Elenco , ela cantou Marcha da quarta-feira de cinzas, Diz que fui por aí, Feio não é bonito, Canção da terra, O sol nascerá, Luz Negra, Berimbau, Vou por aí, Maria Moita, Requiém por um amor, Consolação e Nanã. Cantou o sofrimento e a esperança e nascia um dos discos mais belos e verdadeiros da música popular brasileira.
Luz negra, Nelson Cavaquinho, Hirai Barros
O sol nascerá, Cartola, Elton Medeiros
Berimbau, Baden Powell, Vinicius de Moraes
E outros discos vieram. Da maior importância: Opinião de Nara (1964), O canto livre de Nara (1965), Nara pede passagem (1966), Manhã de Liberdade ( 1966), Vento de maio (1967), para citar alguns. Criticada por seu engajamento político, Nara disse: “Não conheço qualquer proibição contra uma moça de Copacabana cantar samba de morro. Entendo essa música, gosto dela e não tenho culpa de ser da zona sul.” Nara não iria se prender ao rótulo de cantora de protesto, como não havia se prendido ao de musa da bossa nova. O canto de Nara era livre. A respeito da polêmica que sua liberdade artística causava, ela disse: “O fato é que não quero me limitar a nenhum gênero de música, bossa nova ou bossa velha. Quero cantar o que esteja de acordo com a minha maneira de pensar e de sentir. Posso mudar de novo, quem sabe? Há um mundo a descobrir”.
Carcará, João do Vale, José Cândido
Na contracapa do disco Opinião de Nara, ela escreveu: “Este disco nasceu de uma descoberta importante para mim: a de que a canção popular pode dar às pessoas algo mais que a distração e o deleite. A canção popular pode ajudá-las a compreender melhor o mundo onde vivem e a se identificarem num nível mais alto de compreensão.” Os compositores como Zé Kéti, João do Vale e Sérgio Ricardo, diz ela, “revelam que além do amor e da saudade, pode o samba cantar a solidariedade, a vontade de uma vida nova, a paz e a liberdade.”
Conta Nara: “Encontrei um rapaz, Chico Buarque de Holanda, que é um compositor maravilhosamente afinado com meu temperamento e minhas idéias. Gosto do modo como ele trata a melodia”. Aí nascia a grande amizade e parceria artística com Chico.
Chico e Nara – A banda, Chico Buarque
Nara gravou o poema de João Cabral musicado por Chico Buarque.
Funeral de um lavrador, em 1966, no LP Manhã de Liberdade
Não sendo tropicalista, Nara acolheu o movimento e participou da antológica gravação do Tropicália ou Panis et Circensis, (1968) cantando Lindonéia, de Caetano Veloso.
No teatro, atuou e cantou ao lado de Zé Kéti e João do Vale em Opinião, de Oduvaldo Viana Filho. Em Liberdade, liberdade, de Flávio Rangel e Millor Fernandes, cantou trechos de canções ao lado de Paulo Autran, Teresa Raquel e Oduvaldo Viana Filho.
Nara também namorou com o cinema. Não só namorou, mas casou com ele: namorou com Rui Guerra e se casou com Cacá Diegues. Em seus discos, gravou Corisco, que Sérgio Ricardo compôs para o filme de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do Sol, atuou e cantou, juntamente com Maria Bethânia e Chico Buarque, em Quando o carnaval chegar, de Cacá Diegues e gravou a canção Joana Francesa, música tema composta por Chico Buarque para o filme de Cacá Diegues
Deus e o diabo na terra do sol – trailer
Quando o carnaval chegar, filme de Cacá Diegues, 1972,
Cantores do rádio, de Lamartine Babo, João de Barro, Alberto Ribeiro com Nara, Maria Bethânia e Chico Buarque
Formosa, de Nássara, J. Rui com Nara e Maria Bethânia.
Joana Francesa, 1973, com Jeanne Moureau
Em 1971, Nara faz as pazes com a bossa nova e grava em Paris um disco com todas aquelas esperadas canções, Dez anos depois.
Sobre ela, escreveu Chico Buarque: “Com sua voz aguda e frágil, a pequenininha Nara carregou nas costas um barquinho, um violão, um carcará, uma rosa, um trem, uma tuba e um circo inteiro. É natural que conheça enfim o peso das coisas que diz”. E o poeta Ferreira Gullar: Sua voz quando ela canta / me lembra um pássaro, mas / Não um pássaro cantando: / lembra um pássaro voando. O canto livre de Nara.
Canto Livre, Bené Nunes, Dulce Nunes