Foi em março de 2019 que o perito da Polícia Civil Roberto Liarth, 43 anos, começou a notar uma movimentação estranha na praça em frente à sua casa, no bairro de Vargem Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Tão logo o sol se punha, motos, a maioria sem placa, começavam a circular no local, indiferentes ao movimento dos moradores, inclusive crianças; a partir da meia-noite, mais motoqueiros e automóveis chegavam e tomavam conta da praça. Liarth notou que o grupo vendia drogas próximo a um trailer estacionado no local. O perito começou então a fotografar a movimentação e a registrar as placas dos veículos – quando elas existiam. Muitas, constatou, eram clonadas.
Quando reuniu informações que julgou suficientes sobre o grupo, Liarth resolveu denunciá-lo ao serviço 190 da Polícia Militar. Passados cinco minutos do telefonema, o perito notou que os carros e motos deixaram rapidamente o local. Só então viu um automóvel da PM passar pela praça, em patrulha. Assim que o veículo deixou a praça, os traficantes retornaram, sem serem incomodados. Liarth não sabia, mas estava lidando com uma narcomilícia – ao decidir confrontá-la, pagaria um alto preço.
Chefiados pelo capitão da PM Leonardo Magalhães Gomes da Silva, 33 anos, os paramilitares expandiam rapidamente seus tentáculos por Vargem Grande e pelo bairro vizinho, Vargem Pequena. Além de apostar no pacote de crimes que sempre acompanha esses grupos – grilagem de terras, cobrança de “taxas de segurança”, oferta de tevê a cabo clandestina e venda de botijões de gás – a organização criminosa oferecia um serviço que outrora os paramilitares rejeitavam: a venda de maconha e cocaína, em sistema de delivery, com entregas de motocicleta, nos bairros de Vargem Grande, Vargem Pequena e Recreio dos Bandeirantes.
O grupo é suspeito de ter assassinado seis pessoas nos últimos dois anos – quatro delas foram vítimas de uma chacina em junho. Foi investigando um desses assassinatos, em 2018, que a Delegacia de Homicídios e o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) chegaram à narcomilícia do capitão Silva. Segundo as escutas autorizadas pela Justiça, o líder pagava 5 mil reais para que os subordinados assassinassem desafetos do grupo. Em delação, um dependente químico que comprava drogas do grupo afirmou que o próprio capitão era quem fornecia a cocaína e a maconha comercializadas pelos milicianos, tendo como gerente Gabriel da Silva Alves, o Biel, 25 anos. Também cabia ao capitão avisar os subordinados sobre operações policiais nos bairros dominados pela quadrilha. Em julho de 2019, Alves telefonou para a mãe e pediu que ela escondesse as drogas que estavam no seu quarto:
– Eu vou botar tudo atrás da casa do cachorro. […] Porque seu pai falou: “quando eles vêm fazer essa operação, eles já vêm no lugar certo” – disse a mãe de Alves (para o Gaeco, ao utilizar o termo “pai”, ela se referia ao capitão Silva).
O grupo também investia na grilagem de terras – o que incluía espalhar porcos e cabras para justificar a ocupação da área pretendida – e na construção irregular de casas e edifícios, sem nenhuma supervisão técnica.
– Deixa eu dar um feedback, irmão, do que tá rolando. A gente mandou uns e-mails, não pra engenheiro, porque a gente não tem grana pra isso. A gente chamou um designer, entendeu? […] Pra ele montar o projetinho pra gente do prédio, estruturar o prédio. […] Dividir os quartos, essa parada toda – diz um dos integrantes da milícia.
O desleixo das milícias que se arriscam na construção civil já causou tragédias no Rio. Em abril de 2019, 24 pessoas morreram no desabamento de um edifício construído por paramilitares no bairro da Muzema, também na Zona Oeste da cidade.
No fim da tarde de 5 de junho de 2019, o perito Liarth resolveu abordar uma das motos com a placa dobrada para cima, estacionada sobre a praça. Ele não sabia, mas o motoqueiro era Biel, um dos gerentes da milícia, subordinado direto do capitão Silva. Imediatamente Biel telefonou para o soldado Fernando Mendes Alves, o Biro, 38 anos, braço-direito do capitão no comando do grupo.
– O cara é maluco! – disse o soldado para Biel. – Não vai dar nada na delegacia.
Biro telefonou então para um conhecido na PM, não identificado pelo Gaeco:
– Vai lá e dá uma moral pro moleque, aborda ele [perito] e pede a identificação dele porque é maluco, porque ele fala que é polícia, aí tu vê se ele é polícia mesmo. O moleque falou que só tem um elástico na placa. Aí tem um amigo nosso da PM, capitão também tá lá com ele, mas o maluco também não se identificou.
A essa altura, o capitão Silva já estava na praça. Segundo Liarth, o PM pediu para liberar Biel:
– Libera o garoto e a gente resolve.
– Eu não vou atender o pedido do senhor.
Em meio à confusão, Biel, enfurecido, telefonou para a mãe:
– Tem que dar uma coça nesse cara – afirma a mulher.
– Tem que matar ele em uma semana, pode ficar tranquila.
Biel acabou levado para a 42ª Delegacia de Polícia, onde foi autuado por infração de trânsito. Seria liberado minutos depois.
Após a abordagem, a vida do perito Liarth virou um inferno. Os milicianos picharam a sigla CV – de Comando Vermelho – no portão da casa dele e, em quatro ocasiões, jogaram bombas lá dentro. Liarth instalou câmeras em frente ao imóvel e passou a se revezar com a mulher em campanas madrugada adentro em frente ao monitor que registrava as imagens. O casal só saía de casa para trabalhar – Liarth emprestava o colete da Polícia Civil para a mulher – e procuravam chegar em casa em horários aleatórios, muitas vezes com roupas distintas daquelas com que haviam saído de casa. Não foram poucas as vezes em que os dois dormiram na casa de amigos, receosos de se aproximarem da praça. “Muitos amigos na polícia me disseram para eu me mudar, mas não posso. Investi todo o meu dinheiro na reforma da minha casa, não vou me permitir abandonar tudo por causa do crime organizado”, diz.
O desassossego na vida de Liarth e da mulher só terminou no último dia 9, quando o Gaeco, a Delegacia de Homicídios e a Corregedoria da PM deflagraram a Operação Porto Firme, contra a narcomilícia. Foram cumpridos dezesseis mandados de prisão preventiva e 51 de busca e apreensão. Entre os presos estão Biel, sua mãe, o soldado Biro e o capitão Silva, que se entregou à Delegacia de Homicídios na sexta-feira, 10, após ficar 24 horas foragido. De acordo com diálogos captados pela polícia e que constam na denúncia do Ministério Público, o capitão era chamado por alguns apelidos que, segundo os promotores, indicavam “sua liderança no grupo criminoso, tais como ‘patrão’, ‘01’, ‘Bolsonaro’ e ‘Bolsonaro patrão’, reforçando tudo o que foi dito a respeito de exercer o comando da organização criminosa.”
– Onde tá o Play? – pergunta um dos milicianos.
– Tá aqui. Qual é? – indaga outro.
– É pra ele ficar pronto que o Bolsonaro tá indo buscar ele.
No total, dezessete pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público à Justiça por participação em organização criminosa. A defesa do soldado Alves, o Biro, afirma não haver evidências do envolvimento dele com atividades criminosas. “Ele trabalha muito, não tem tempo para ser miliciano”, diz o advogado Silvio Roberto Silva Lopes de Souza. Procurados entre quarta, 15, e sexta-feira, 17, os advogados dos demais denunciados citados na reportagem não foram localizados pela piauí – até sexta-feira, as defesas do capitão, de Biel e da mãe dele não haviam se manifestado nem constituído advogado na ação penal, que tramita na 1ª Vara Criminal do Rio de Janeiro.