A mais recente atualização do Índice de Percepção da Corrupção (IPC), publicada pela ONG Transparência Internacional na última terça-feira (25), estimulou manifestações de políticos e da imprensa. O Brasil não se saiu bem, novamente. Chamou atenção o esforço do procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, em negar o que todos já sabiam muito antes do IPC vir à tona – o reiterado descumprimento de sua obrigação de investigar as ações do governo federal, fruto de seu alinhamento com o presidente Jair Bolsonaro.
A despeito de reações sobre pontos específicos da pesquisa, a maior parte das análises sobre o desempenho do Brasil no IPC se concentrou na posição relativa do país: no ranking mundial, caímos duas posições, passando de 94º para 96º colocado entre 180 países avaliados. A queda foi vista como um indicativo de piora da capacidade institucional de lidar com a corrupção e, portanto, do agravamento da percepção da corrupção no Brasil. Para o leitor atento às notícias em 2021, não houve surpresa. Num ano marcado pelo escândalo do orçamento secreto, além da tentativa de superfaturamento de vacinas e aparelhamento dos órgãos de controle, a queda era previsível. Talvez até se esperasse uma queda maior.
Para interpretar o IPC de 2021, porém, é preciso levar em conta alguns fatores. Não se deve considerar, por exemplo, que as mudanças de colocação no ranking mundial são uma medida exata de melhora ou piora na realidade de cada país. Há razões metodológicas que explicam como alguns acontecimentos na trajetória de um país, por mais importantes que tenham sido, às vezes não são completamente assimilados na avaliação do ano em que aconteceram. O IPC é um índice que agrega dados de treze fontes diferentes que fornecem percepções de empresários e especialistas de cada país (não há opiniões do público em geral) sobre o nível de corrupção do setor público. No caso brasileiro, oito fontes são utilizadas, e cada uma delas promove consultas próprias, algumas com centenas, outras com milhares de questionários.
Alguns dos indicadores que formam a base do IPC têm periodicidade bianual, e mesmo aqueles cujos dados são levantados anualmente podem ter sido coletados até determinado momento do ano, quando nem todos os acontecimentos definidores da percepção já haviam transcorrido. Portanto, é correto projetar um tempo maior de assimilação dos fatos, ainda que reconhecendo a alta confiabilidade das bases de dados, que são produzidas por instituições reconhecidas por sua boa reputação. Dentre as bases das quais são extraídos os dados que formam o IPC sobre o Brasil estão, por exemplo, o Economist Intelligence Unit Country Ratings, o Varieties of Democracy Project e o World Justice Project Rule of Law Index. Importante destacar que mesmo sendo índices que abordam inúmeros temas, apenas as questões relacionadas à corrupção são aproveitadas na composição do IPC.
Assim, o principal ponto a se observar nos resultados do Brasil no IPC 2021 não é a perda de posição no ranking, mas a estagnação em um patamar de pontuação muito baixo. Numa escala de 0 a 100, o Brasil obteve apenas 38 pontos, a mesma pontuação obtida no ano anterior. Conforme foi explicado acima, uma leitura mais completa dos resultados deve levar em conta um período mais longo de tempo, que compreenda as tendências e os efeitos, muitas vezes lentos, das mudanças institucionais e das decisões na política e no Judiciário. Olhando para esse movimento, observa-se que o Brasil piorou sua pontuação nos últimos dez anos, de 43 pontos para os atuais 38 pontos, tendo oscilado para um mínimo de 35.
Ainda que a interpretação do IPC considere um espaço de tempo alargado, o momento de divulgação do índice cumpre o importante papel de pautar o debate sobre a corrupção. A comparação, apesar de todas as ressalvas necessárias, também tem seu valor. É uma boa oportunidade de tentar compreender as razões para o sucesso de Dinamarca, Finlândia e Nova Zelândia, ou pesquisar o que leva países de realidade próxima à brasileira como Uruguai e Chile a ocuparem as destacadas 18ª e 27ª posições no índice, respectivamente.
A análise retrospectiva do ano de 2021 dá a dimensão do desafio brasileiro. Dentre inúmeros eventos que chamaram a atenção de forma negativa, preocupam mais aqueles que representam mudança de prática institucional e que, portanto, podem ter seus efeitos dilatados por anos. É o caso do orçamento secreto. A ampliação do controle parlamentar sobre as verbas da União teve início com a Emenda Constitucional 86/2015 e foi ampliada, mais tarde, com a Emenda Constitucional 100/2019. No entanto, a grande transformação na prática institucional se deu nos últimos anos, com o uso ainda mais explícito do orçamento como instrumento de formação de maioria parlamentar e de captação de apoio eleitoral, agora sem a identificação do autor da emenda. Caso não haja intervenção do STF ou uma improvável perda de espaço do Centrão, a prática dificilmente será revertida no curto prazo.
Outra mudança institucional grave foi a gestão do procurador-geral da República, marcada pela omissão, e sua recondução ao cargo pelo Senado. A PGR ocupa espaço central no combate à corrupção por ter exclusividade da iniciativa de acusação do presidente por crimes comuns. Como vem sendo tardiamente apontado por juristas, o alinhamento sistemático entre Augusto Aras e Bolsonaro deixa impunes os crimes comuns cometidos pelo presidente. Não são sequer investigados.
A falta de alternativa constitucional a esse tipo de captura política da PGR foi pouco debatida no passado, pois havia a tradição de que os presidentes indicassem para o cargo um dos três primeiros colocados na lista tríplice do Ministério Público. Se o custo político de escolher um procurador-geral aliado for inferior ao benefício de não ser investigado, a exceção reiniciada por Bolsonaro pode virar regra daqui em diante. A recondução de Aras com apoio de parlamentares de todo o espectro político mostra que não é só Bolsonaro que vê vantagens em uma PGR domesticada. E já vem sendo feita pressão para que os pré-candidatos à Presidência da República não se comprometam com a lista tríplice.
Outros órgãos públicos que devem atuar com relativa autonomia foram objeto de tentativa de controle político por parte de Bolsonaro, como a Polícia Federal e órgãos de controle e de inteligência estatais, como Receita Federal, Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), Abin (Agência Brasileira de Inteligência), DRCI/MJSP (Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça) e CGU (Controladoria-Geral da União). Na área ambiental, a atuação do governo foi marcada até aqui pelo chamado “infralegalismo autoritário” – isto é, uma política orientada para minar a capacidade de controle dos sistemas de governança, de modo a favorecer a ocorrência de crimes ambientais ligados à corrupção, além do congelamento das multas por infrações ambientais e perseguição de agentes públicos que atuam com independência.
Por fim, as tentativas de Bolsonaro de levantar suspeitas sobre uma suposta fraude na eleição de 2018 – o que, segundo ele, se repetiria em 2022 – também são exemplos de medidas cujos efeitos se dilatam no tempo com graves consequências para a democracia brasileira. A suspeita artificialmente criada, somada à deterioração sensível dos espaços cívicos e de acesso à informação pública, aumenta a percepção de fragilidade das nossas instituições, sem que se tenha ideia dos seus efeitos para além das eleições deste ano.
Tudo indica que o caminho de ascensão do Brasil no IPC não terá atalhos.