O palco está vazio. Há apenas um piano de cauda aberto sobre um tapete e uma máquina de fumaça que despeja um vapor leve para nublar a luz azul do refletor, voltado para a plateia. No final de março, o jornal francês Libération havia cravado que aquele seria um dos melhores shows para se assistir na programação do Banlieues Bleues, um dos mais importantes festivais de jazz da França. O evento foi criado há quarenta anos com o intuito de levar instrumentistas do mundo todo aos subúrbios de Paris. Desde então, virou uma tradição, dessas que marcam o início da primavera após os meses de inverno europeu: os ingressos se esgotam rapidamente; os cartazes viram peças de arte colecionáveis; as apresentações são transmitidas por rádio. Foi num Banlieue Bleue que Miriam Makeba tascou um beijo na boca de Nina Simone depois de dividirem o palco; e que Dizzy Gillespie e Max Roach fizeram uma exibição tão extasiante que tornou-se o clássico álbum Max + Dizzy: Paris 1989, que registrou o show lançado na edição do festival em celebração aos duzentos anos da Revolução Francesa.
Naquela noite de abril, o pianista brasileiro Amaro Freitas apresentaria seu quarto álbum, o recém-lançado Y’Y (pronuncia-se “iê-iê”), numa das últimas noites do festival. Elogiado pelos jornais The New York Times e The Guardian, o disco carrega as sonoridades experimentadas por Amaro numa viagem que fez à Amazônia em 2020. Lá, ouviu o som do encontro dos rios Negro e Solimões, o canto dos pássaros quando as nuvens carregadas pesam sobre eles (os “rios voadores”), o barulho da chuva estalando nas vitórias-régias. “Ouvir a Amazônia foi como conhecer um outro Brasil”, disse ele à piauí. Em meio à viagem, Amaro começou a compor músicas que evocassem toda aquela riqueza de melodias e ritmos. Não à toa, o título do álbum significa “rio”, ou “água” na língua dos indígenas Sateré-Mawé, com quem conviveu à época. O mergulho foi profundo: na capa do disco, Amaro, que não sabe nadar, foi flagrado submerso no rio pelo fotógrafo Helder Tavares. O trabalho se tornou uma “homenagem à floresta, especialmente à floresta amazônica e aos rios do Norte do Brasil: um chamado para viver, sentir, respeitar e cuidar da natureza, reconhecendo-a como nosso ancestral”, define o músico.
A crítica Sadie Sartini Garner disse no site musical Pitchfork que ele está “tão próximo de Bach quanto da Bahia”, e o comparou a John Coltrane: “A execução polirrítmica de Freitas revela simultaneamente diferentes cadências em cada mão e é ao mesmo tempo rendada e delicada, forte e propulsiva. […] Em Y’Y, tal como John Coltrane, Freitas aprendeu a abordar as suas composições com o mesmo espírito confiante e aventureiro que traz ao seu instrumento. Ao fazer isso, ele deixou para trás um pouco da acessibilidade de seus primeiros discos, mas em seu lugar forjou algo transcendente.”
Quando subiu ao palco da casa de shows La Dynamo, em Pantin, comuna a 45 minutos de Paris, Amaro fez um convite à plateia: fechar os olhos para escutar os sons do rio. A multidão atendeu – não havia outra opção ante a voz hipnótica e terna de Amaro. A luz azul do refletor lentamente se converteu em verde. O pianista não tinha pressa, preparando seu instrumento como quem lança uma canoa à correnteza: acariciou a madeira, se debruçou sobre seu tampo aberto, mexeu nas suas cordas e afinou o leme da embarcação. Começou a executar a música Uiara (Encantada da Água) – Vida e cura, com o auxílio de três apitos e um chocalho, tocados por ele simultaneamente ao piano. “Estou sozinho no palco, visualmente, mas não estou sozinho. Deus e Naná Vasconcelos estão comigo”, comenta Amaro, lembrando outro pernambucano que ganhou o mundo: Juvenal de Holanda Vasconcelos (1944-2016). Um dos músicos mais importantes na história rítmica brasileira, Naná Vasconcelos tocou com B.B.King, David Byrne, Bjork; ganhou oito prêmios Grammy e diversos títulos de melhor percussionista do planeta. É um dos ídolos de Amaro, que compôs uma das faixas de Y’Y em sua homenagem, Viva Naná, outro ponto alto do concerto.
A religiosidade está na vida de Amaro desde a infância, com sua formação evangélica na cidade de Nova Descoberta, periferia do Recife, onde seu pai, pedreiro, era também o maestro da banda da igreja. Ele tinha 12 anos quando manifestou o desejo de aprender bateria para integrar o conjunto, mas o pai o convenceu a estudar teclado, já que muitos meninos da igreja já tocavam bateria. E lá foi ele. A descoberta do jazz ocorreu dois anos depois, quando um amigo lhe deu de presente o DVD Alive, do pianista Chick Corea. Amaro nunca tinha ouvido o gênero, nem sabia que o piano pudesse ser utilizado de maneira tão improvisada e livre. O resto é história. Pulou do teclado para o piano e nunca mais abandonou o instrumento, mesmo que para isso tivesse de trabalhar como atendente de telemarketing para pagar as passagens de ônibus para o Conservatório Pernambucano de Música na adolescência.
A performance seguiu. Em Dança dos Martelos, ele colocou em prática a técnica do “piano preparado”, desenvolvida por John Cage na década de 1940 para ampliar as possibilidades sonoras do instrumento. “Preparar” o piano consiste em introduzir objetos entre as cordas, o que as comprime e abafa, alterando de forma radical o seu timbre. É como dar ao teclado um som de percussão, por meio de parafusos ou pequenos objetos de metal (como John Cage fazia). Amaro não gosta de usar metal, por acreditar que pode danificar o instrumento. Prefere manejar sementes, pregadores de roupa, apitos de madeira, fita adesiva. Assim, consegue transformar o piano em um “tambor de 88 teclas”, como diz, e emular ruídos especiais entre um acorde e outro, como os do boto-cor-de-rosa, o maior golfinho da Amazônia.
“Uma amiga que estava comigo nunca tinha ouvido Amaro e chorou. A música dele me levou pra casa”, contou o paraense Marcelo Damaso, curador de importantes festivais de música no Brasil, como o Se Rasgum, que estava na Europa a trabalho, e saiu impressionado com o concerto. “Foi a primeira vez que vi um show do Amaro fora, desde o sucesso do Rasif, o disco que foi o primeiro boom dele na Europa, em 2018. Esse disco esgotou a primeira tiragem muito rápido quando foi lançado, fez muito sucesso, e hoje é difícil de ser encontrado para quem coleciona vinil. Todo esse buzz em torno do Amaro é impressionante, porque é muito diferente a forma como a carreira dele aconteceu fora do país em relação a outros artistas brasileiros. Esse universo do jazz é muito restrito e ele estourou a bolha muito rápido”, complementou Marcelo, que tem planos de escalar Amaro para fazer um concerto na Amazônia no calendário de eventos culturais durante a COP30, evento mundial que vai acontecer pela primeira vez no Brasil em 2025.
A exibição do Banlieues Bleues foi a grande aposta da turnê europeia de Amaro, a maior da sua carreira, com quarenta datas e participações em programas ao vivo em rádios, além de uma passagem pelos Estados Unidos. A França é o país onde seus shows são mais lotados e aplaudidos, e onde Amaro faz mais participações em rádios e programas especializados. “Tem público que aplaude longamente de pé, tem plateia que pede três bis!”, espanta-se ele, ainda tímido com o sucesso da sua obra no país, de onde deu esta entrevista. “Isso pra mim vem sendo um aprendizado. Existe um repertório instrumental de excelência produzido no Brasil que muita gente não tem conhecimento, que trabalha a identidade afro-brasileira, afro-indígena, ibérica, árabe, uma gente que faz essa mistura da tradição brasileira com o jazz e o erudito. Eu estou falando de Tânia Mara, Naná Vasconcelos, Moacir Santos, Hermeto Pascoal. E o que mais me surpreende é que na Europa todas as pessoas conheciam Moacir, Naná. Em todos os lugares eu ouvia falar de Hermeto Pascoal. Isso é incrível”. [Amaro não exagerava. Naquela mesma semana aconteceria em Bordeaux, no sudoeste da França, na Universidade de Bordeaux Montaigne, um congresso acadêmico só sobre a obra de Hermeto Pascoal, com especialistas diversos, enquanto o próprio Hermeto voava para fazer um show em Cabo Verde, na África.]
Para ele, uma das explicações para o fenômeno é que a presença constante de artistas internacionais no país acostumou os franceses a desenvolver uma curiosidade natural por novidades. “Muita gente consome a música brasileira instrumental, assim como a indiana, africana, israelense ou do Azerbaijão. Percebo que há uma curiosidade genuína em entender o que faço.” Esse interesse encontra uma produção que mistura o erudito com os ritmos populares como como o frevo, o maracatu, o forró, o coco, a ciranda e o baião, que não são ensinados nas escolas de música clássica. Toda a sua obra – os discos Sangue Negro (2016), Rasif (2018), Sankofa (2021) e Y’Y (2024) – quer resgatar sonoridades ancestrais, diz ele, “que vieram antes da colonização”.
Produtor de Amaro Freitas, Laércio Costa conta que, mesmo com muita abertura, ainda esbarra em festas que estranham uma sonoridade tão diferente vinda do Brasil: “Em geral os curadores são bombardeados por tantas opções que fica difícil contar uma história nova”, pondera. “Às vezes vender um show desses, convencer as pessoas que existe um Brasil moderno, novo, dá trabalho. O curador prefere contratar um trio de jazz que toque samba, pois ele já tem referências claras no gênero. Mas nós queremos contar outra história. Não é só samba-jazz-caipirinha”, complementa o produtor, que trabalha com o pernambucano há quase uma década.
Em outro momento da apresentação, Amaro Freitas se dirige à plateia para contar que a mãe, Rosilda, sempre teve o costume de cantar para ele dormir. “Vou tocar agora uma música que fiz para ela que é muito simples e que acho muito bonita”, disse ao público, antes de ensaiar um coral para Gloriosa. Repete uma, duas, três vezes, até que a plateia pega o embalo. “Antes de fazer essa canção para minha mãe, eu já tinha essa ideia: convidar os espectadores para cantar comigo. Acho que vem dessa formação de coral de igreja. Falar e ter intimidade com os espectadores é difícil. Mas, como trabalhei com telemarketing e evangelizava na igreja, foi ficando mais fácil. Quando vejo as pessoas no meu show, penso que elas passaram por muitas coisas durante o dia, ao longo da semana, então quero celebrar a nossa existência e fazer uma conexão de alegria”, explica Amaro.
Depois da França, a turnê passaria ainda pela Suíça, Alemanha e Espanha. Na rotina cansativa das viagens, o pianista tem ouvido especialmente cinco discos: Quem é quem, de João Donato (1973); Saudades de casa, de Ivan Lins (2007); Coisas, de Moacir Santos (1965), Children’s Songs, de Chick Corea (1984) e Solo Monk, de Thelonious Monk (1965). No retorno ao Brasil, seguiu com a agenda de espetáculos de Y’Y em São Paulo, Belo Horizonte, Vitória e Recife. Em julho, Amaro retorna à Europa para participar do North Sea Jazz Festival, na Holanda, que neste ano também terá na programação Djavan e Marisa Monte. Será mais uma oportunidade para o público conhecer – e se encantar – pelo Brasil propagado no piano do artista pernambucano.