Retomo o comentário da semana passada, após ter assistido aos dois episódios finais de O Caso Celso Daniel, disponibilizados na plataforma Globoplay em 17 de fevereiro. Assim, não ficam sem consideração aspectos relevantes da série.
Ao longo de seus oito episódios e cerca de 400 minutos, O Caso Celso Daniel parece, por vezes, aspirar a uma suposta neutralidade, dando voz em pé de igualdade a opiniões contraditórias e a pessoas envolvidas ou não nos eventos, inclusive algumas sem credibilidade, e outras nada menos que irresponsáveis, cujas afirmações precisariam ser conferidas. Ao enfileirar entrevistas originais, testemunhos em juízo e variadas declarações à mídia sem diferenciar seus respectivos méritos, a série deixa de ir além da superfície dos fatos, sem nunca alcançar compreensão menos rasa do que realmente se passou.
No episódio 7, O Caso Celso Daniel perde o fio da meada ao enveredar pelo relato da ida ao exterior de Bruno Daniel, professor e sociólogo, irmão de Celso, a cunhada do prefeito Marilena Nakano (ex-secretária de Educação, Cultura e Esporte de Santo André) e seus três filhos. A opção pelo autoexílio e a busca do status de refugiados na França resultou de ameaças recebidas por telefone “quando começou a surgir um boato de que um dos sobrinhos do Celso seria morto”(Nakano) e através de um “e-mail em que era muito clara essa ameaça que estava sendo planejado o sequestro e assassinato de um dos nossos filhos” (João Francisco Daniel, o outro irmão de Celso). Não cabe pôr em dúvida a gravidade dessa situação, mas sim sua relevância para o assunto da série que não procura esclarecer melhor qual era o nexo entre as intimidações e o assassinato do prefeito. A sequência, ademais de precária, chega a ser constrangedora. Limita-se a agrupar planos de pontos turísticos de Paris e encenações mal realizadas em que a grande questão em pauta é o cheiro do banheiro do apartamento de pé-direito alto que dividiam com outras três famílias.
No episódio final da série, Gilberto Carvalho, que era secretário de Governo de Santo André, em 2000, quando Celso Daniel foi assassinado, declara com realismo (aos 18min09seg) que “a gente tem que se colocar um pouco no contexto político daquele momento, da cultura política dominante na época, onde a relação empresarial e políticos era muito comum, muito estreita, e onde a prática do caixa 1 e do caixa 2, sobretudo, era muito usual. E o Sérgio [Gomes da Silva, conhecido como Sombra] sem dúvida nenhuma entrou com tudo nessa prática do Caixa 2 frente à necessidade de dar conta, seja das despesas eleitorais, seja das despesas, vamos chamar, da vida política, da manutenção de uma série de ações”. Um pouco adiante (a partir de 20min23seg), Carvalho faz o que chama de autocrítica de ter convivido “com esse esquema e, na época, não me rebelei contra ele. O mesmo se diga do Celso. Porque o Celso, evidentemente que sabia disso, mas naquele momento não… Eu não quero aqui inocentar e dizer que o Celso é uma pessoa absolutamente impecável. Eu só quero tentar contextualizar que o momento político era muito comum essa prática. O que era condenável e, aí sim, nós nos insurgimos sempre, é quando havia… Isso era uma diferença do PT em relação aos outros partidos, a questão da pessoa se locupletar. Da pessoa se beneficiar daquele dinheiro coletivo para si […]. O Celso não acumulou bens. Ele tinha dois carros Volkswagen Gol. Um deles com chassi rachado que nos deixava sempre muito preocupados”.
Embora condenem a prática de arrecadar recursos para o partido, Bruno e Nakano confirmam o envolvimento do prefeito no esquema. Para Bruno (aos 35min11seg) “é necessário reconhecer que ele, do meu ponto de vista, cometeu erros ao aceitar uma institucionalidade que implica em arrecadar recursos de uma forma ilegal e desviar essa arrecadação para financiamento de campanhas que não eram só do PT”. Segundo Nakano (episódio 8 aos 38min25seg), “em 1989, quando começou… era o primeiro ano da gestão dele, […] [havia] um conjunto de coisas [que] apenas um núcleo duro na prefeitura tinha o direito de saber. O Celso prefeito foi se revelando um político que tinha que negociar coisas. Coisas que eu não gostava”. Registre-se outra vez, conforme já feito na coluna anterior, que o envolvimento na arrecadação de recursos não chega a elucidar a motivação do assassinato.
A partir de 43min05seg do episódio final, O Caso Celso Daniel apresenta diversas respostas à pergunta feita em forma de legenda, com letras maiúsculas brancas sobre fundo preto: QUEM MATOU CELSO DANIEL? A questão é indevida, em especial quando dirigida a quem não cometeu, testemunhou ou investigou o crime, caso da senadora Mara Gabrilli aos 49min06seg, que emite opinião leviana que deixo deliberadamente de reproduzir aqui. Pouco depois, contradizendo Gabrilli, José Reinaldo Guimarães, promotor do Ministério Público de São Paulo e promotor chefe da Força Tarefa de Santo André, afirma: “A investigação desenvolvida pelo Ministério Público no caso Celso Daniel não traz nenhuma evidência, nem minimamente indiciária, de que o prefeito tenha sido morto por determinação do Lula ou de quem quer que seja da esfera de poder do PT. E isso nem faz sentido.”
Quem responde à questão nos termos devidos é Nakano aos 50min26seg. Ao contrário dos demais, divididos entre convictos de que o assassinato de Celso Daniel foi crime comum e crentes de que se tratou de crime com motivação política, a lição de Nakano, que a série inclui, mas da qual não tira partido, é que “eu não sou juiz. Não sou eu que tenho que dizer quem matou ou quem foi o mandante da morte do Celso. Porque senão a gente inverte a lógica que tem que existir numa sociedade como a nossa. Numa sociedade como a nossa não cabe a nós. É a polícia que tem que investigar. É o Judiciário que tem que julgar […]”.
Em suma, como é notório, compete ao promotor acusar, não ao historiador, nem ao realizador de um filme documentário ou de uma série audiovisual. A estes últimos cabe tarefa mais modesta – fazer um esforço para compreender e explicar, objetivo que O Caso Celso Daniel sequer tenta atingir.
Dar crédito a declarações irresponsáveis em nome do direito à divergência não é postura correta, ao contrário do que os realizadores de O Caso Celso Daniel parecem supor. Toda narrativa audiovisual, quer seja filme documentário ou série jornalística, é por definição um ato seletivo que traz consigo a responsabilidade por cada inclusão ou exclusão decidida. A legenda de encerramento da série afirma que “apontar quem matou Celso Daniel se tornou um jogo de interesses que diz mais sobre quem fala do que sobre o caso em si”, maneira cômoda de se omitir com relação às questões que a própria série levanta.
O Caso Celso Daniel guarda surpresa desconcertante para seu epílogo, a partir de 55min46seg. A sequência tem início com a câmera descendo do céu para a beatificação de Celso Daniel. Uma voz em off se apresenta como sendo de Liora, filha do Celso, e a vemos entrando no carro que recebeu de herança do pai. Lendo na tela do seu celular um texto na primeira pessoa que deve ter escrito, ela conclui: “[…] o que fica, além dessas memórias que a gente pode construir especialmente nos últimos cinco anos da nossa maior convivência, é o exemplo da pessoa dedicada, competente, honesta, que não se permitia nenhum privilégio pelo seu cargo público e que ensinava todo mundo pelo exemplo. Eu encaro a morte dele como um episódio indigno de uma vida que foi muito maior do que o seu fim. O sentimento hoje é de um orgulho e de uma responsabilidade muito grande em honrar esse nome e a credibilidade que vem quando se fala nele.”
Que a filha se pronuncie sobre o pai morto nesses termos é compreensível. Terminar a série desse modo laudatório, porém, compromete o que foi visto ao longo dos oito episódios.
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Após breve recesso, a coluna voltará a ser publicada em 9 de março.