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O Caso Hammarskjöld – persistência recompensada

Documentário tem chance de ajudar a esclarecer morte de secretário-geral da ONU

Eduardo Escorel | 10 abr 2019_07h00
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Entre diversas atrações do 24º Festival Internacional de Documentário É Tudo Verdade, atualmente em curso, uma das principais é O Caso Hammarskjöld, de Mads Brügger. O Hammarskjöld em tela é Dag Hammarskjöld (1905-61), diplomata sueco e secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1953 a 1961.

Hammarskjöld morreu junto a outros quinze passageiros, em setembro de 1961, no desastre do Albertina – avião DC-6 que caiu nos arredores de Ndola, no norte da atual Zâmbia (Rodésia do Norte, na época). Em missão oficial, iria negociar um cessar-fogo com Moïse Tshombe, presidente da província separatista de Katanga, envolvendo a retirada de tropas belgas e a presença da Força de Manutenção da Paz da ONU.

A causa da queda do voo fretado nunca foi esclarecida de forma oficial. Investigações da ONU e de autoridades locais, feitas entre 1961 e 1962, ou foram inconclusivas, ou atribuíram a responsabilidade a um erro de leitura do altímetro cometido pelo piloto. Investigações posteriores da própria ONU, porém, não excluíram a possibilidade de ter havido um atentado. Desde então, pesquisadores e historiadores se dedicaram ao caso, sem nunca conseguir desvendar o mistério por completo.

A partir de 2008, o trabalhador humanitário sueco Göran Björkdahl, que participa da investigação de Brügger em O Caso Hammarskjöld, passou a entrevistar moradores dos arredores de Ndola, onde o Albertina caiu. De acordo com esses testemunhos, o DC-6 teria sido abatido a tiros vindos de outra aeronave de menor porte.

A missão pessoal de Björkdahl em busca da verdade teve início com a descoberta de uma placa de metal furada, dada em 1975 a seu pai, diplomata sueco, que foi à Zâmbia, a serviço da ONU, e esteve no local do desastre. Vendo seu interesse pelo acidente, um homem lhe deu a suposta relíquia, garantindo que provinha do DC-6 sinistrado, o que, décadas depois, foi provado ser falso em exame de laboratório – a placa sequer provinha da fuselagem de um avião e as perfurações não haviam sido feitas por tiros.

A hipótese do desastre ter resultado de uma ação deliberada ganhou notoriedade e passou a ser considerada mais verossímil, em 2011, com a publicação de Who Killed Hammarskjöld?, de Susan Williams, professora de descolonização africana da Universidade de Londres. No livro, a autora afirma que “a morte dele [Hammarskjöld] foi quase com certeza o resultado de uma intervenção sinistra”. Para James Mayall, professor da Universidade de Cambridge, Williams “não deixou pedra sobre pedra na tentativa de desvendar” esse “importante enigma histórico”.

Quando foi trabalhar na África, Björkdahl iniciou sua própria investigação e encontrou telegramas, até então inéditos, que revelavam “a irritação dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha com uma frustrada operação militar da ONU que o secretário-geral [Hammarskjöld] ordenou, em nome do governo congolês, contra uma rebelião apoiada por companhias de mineração ocidentais e mercenários da região de Katanga, rica em minerais” (Julian Borger e Georgina Smith, The Guardian, 17 de agosto de 2011).

Segundo a mesma matéria do The Guardian, o apoio de Hammarskjöld à descolonização na África teria enfurecido “todas as principais potências do conselho de segurança”, e assegurado, ao mesmo tempo, sua próxima reeleição para a secretaria geral, graças ao apoio dos países em desenvolvimento.

À esquerda, Mads Brügger, o diretor. À direita, Göran Björkdahl, trabalhador humanitário sueco que participa do filme e da investigação. FOTO: DIVULGAÇÃO


Esse, em resumo, é o contexto prévio à realização de
O Caso Hammarskjöld, estabelecido ao longo de quase seis décadas. Contexto que Brügger procura contar de forma detalhada na primeira metade do filme. O acúmulo de informação resultante torna, porém, o relato difícil de acompanhar. Em compensação, a persistência destemida de Brügger acaba sendo recompensada. Investigando durante seis anos, ele levanta pistas abandonadas e faz revelações desconcertantes, aparentemente inéditas.

Imagens de arquivo mostram, por exemplo, a coletiva de imprensa final da Comissão da Verdade e Reconciliação, na África do Sul, em agosto de 1998. Nessa entrevista, o arcebispo Desmond Tutu revela a descoberta de documentos de um desconhecido Instituto Sul-Africano de Pesquisa Marítima, nos quais é discutida a sabotagem do avião em que Hammarskjöld morreu.

Esses documentos, encontrados nos cofres do serviço secreto sul-africano, nas palavras de Brügger são “um manuscrito para assassinar Hammarskjöld” – esboçam uma conspiração para matar o secretário-geral com uma bomba e dizem que ele “precisava ser eliminado porque a ONU tinha se tornado incômoda”. Os documentos mencionam ainda o serviço de inteligência britânico (MI6) e a Agência Central de Inteligência (CIA) americana. Brügger afirma que nenhum dos jornalistas presentes à coletiva da Comissão da Verdade e Reconciliação procurou localizar o Instituto, talvez, ele especula, “por que o foreign office britânico e a CIA se moveram rapidamente para enterrar a história como sendo desinformação da Guerra Fria plantada pelos russos”.

O primeiro som ouvido em O Caso Hammarskjöld é o do motor de um avião – tem início nos créditos de abertura e continua na paisagem em preto e branco de um campo, cortado por uma cerca, com vegetação alta ao fundo. A luz sugere que seja um amanhecer estrelado e a legenda superposta informa o lugar e a data: Ndola, Rodésia, 18 de setembro de 1961. O som do motor indica que o avião pousou ou se chocou contra o solo. Uma nuvem de fumaça se ergue em direção ao céu. Feita em computação gráfica, superposta à imagem, deixa claro ter havido um acidente.

Nesses quarenta segundos iniciais, a grande liberdade narrativa de Brügger é demonstrada ao adotar procedimentos no documentário próprios de uma recriação ficcional – do som à computação gráfica, incluindo a atribuição de uma data suposta à imagem –, recursos aos quais ele recorre no prólogo e no resto do filme: desenhos animados esquemáticos são usados para recriar cenas sempre que faltam imagens filmadas ou fotografias.

Logo de saída, o longo documentário de duas horas e oito minutos  começa a parecer condenado ao fracasso. Todo vestido de branco, como o personagem que chama de “o vilão da história” (termo mais apropriado para enredos ficcionais), Brügger pergunta o nome de duas secretárias, sentadas diante de máquinas de escrever, com post-its colados na parede de dois pequenos quartos de hotel, um na Cidade do Cabo, na África do Sul, outro em Kinshasa, na República Democrática do Congo. Uma legenda informa que as duas cenas foram gravadas em 2018.

Na Cidade do Cabo, Brügger diz à secretária chamada Clarinah que, “com certeza, o vilão da história só usava branco. Ele sempre se vestia de branco. É isso que me disseram. Eu tenho uma fotografia dele, onde ele está totalmente vestido de branco”.

Em Kinshasa, por sua vez, ele explica à segunda secretária, chamada Saphir, por que estão no Hotel Memling: “O vilão do filme, em 1965, estava hospedado aqui e se vestia como eu estou.”

Em seguida, Brügger dita às duas secretárias, em uma sucessão de planos alternados, um relatório, ou roteiro, das etapas, peripécias, dúvidas, ida e vindas etc. de sua investigação, concluindo que “Este [filme] poderia ser uma de duas alternativas – ou o maior mistério criminal do mundo, ou a teoria conspiratória mais idiota do mundo. Se a segunda alternativa for a verdadeira, eu sinto muito.”

O prólogo de menos de três minutos termina, após breve sequência feita com imagens de arquivo da homenagem prestada a Hammarskjöld na ONU, em 1971, décimo aniversário de sua morte. E o filme continua com a chegada de Brügger e Björkdahl a Ndola, em 2017, para começarem a gravação.

No final de O Caso Hammarskjöld, Brügger não terá do que se desculpar. Ele surpreende, em primeiro lugar, ao ser performático e conduzir o filme vestido de branco, fazendo o papel meio ridículo de um âncora que finge ignorar a presença da câmera, enquanto lida com os impasses de seu percurso. A reviravolta que ocorre no terço final de O Caso Hammarskjöld compensa largamente o esforço requerido do espectador para atravessar os descaminhos anteriores.

As dificuldades enfrentadas durante a gravação, levam Brügger em certo momento a considerar que Björkdahl e ele não conseguiriam resolver o mistério e o filme seria um fracasso. É nesse momento que ele decide lançar mão “de todos os velhos truques do seu ofício, como a roupa branca e o chapéu de explorador, usados pelo vilão. É por isso também que tive a ideia de contratar duas secretárias africanas, com a esperança que, com sua presença, elas salvassem meu filme do naufrágio. Se me perguntarem por que duas, e não só uma secretária, eu não sei explicar. Era uma experiência”.

Quando algo inesperado ocorre e salva o filme, o mistério da morte de Hammarskjöld deixa de ser o objetivo exclusivo de O Caso Hammarskjöld. Um outro crime de proporções ainda maiores é descoberto e ganha proeminência. De certa maneira, essa reviravolta vem ao encontro do desejo secreto de Brügger. Pouco antes, em desespero, ele faz outra declaração irreverente: “Para ser honesto, eu nunca me interessei de verdade pelo legado de Dag Hammarskjöld porque afinal de contas a maioria das pessoas nunca ouviu falar de Dag Hammarskjöld e quando se consegue vê-lo ele parece um personagem de comédia pastelão. Para mim, Dag Hammarskjöld foi mais do que tudo um meio para fazer todas as coisas que realmente aprecio: rastrear mercenários belgas, contar histórias de homens maus que se vestem de branco, investigar o ás de espadas encontrado em cenas de crimes, boatos sobre sociedades secretas. Foi por isso que eu embarquei nessa viagem, sem saber, na verdade, aonde ela me levaria.”

O depoimento de Alexander Jones, ex-mercenário a serviço do Instituto Sul-Africano de Pesquisa Marítima, aparenta ter credibilidade ao confirmar não apenas que a organização secreta supremacista realmente existiu, como também que foi a responsável pela derrubada do DC-6 de Hammarskjöld, com o propósito deliberado de matá-lo. Segundo Jones, uma unidade do Instituto atuava na África do Sul e em Moçambique, cometendo crimes contra a humanidade para preservar a supremacia branca. Esses atos de violência não tinham nada de fortuitos. Eram reações deliberadas em defesa de interesses reais contrariados.

Em outubro de 2017, foi divulgado um relatório com 63 páginas do juiz Mohamed Chande Othman, ex-presidente do Supremo Tribunal da Tanzânia, feito a pedido do secretário-geral da ONU, António Guterres. O relatório refuta as explicações que atribuem a queda do DC-6 de  Hammarskjöld a um erro do piloto ou a outra falha do gênero, e reforça a suspeita de que o então secretário-geral possa ter sido assassinado.

No ano passado, Guterres prorrogou o inquérito sobre as circunstâncias da morte de Hammarskjöld. A posição oficial da ONU a respeito, porém, continua pendente (Rick Gladstone, The New York Times, 27 de março de 2018).

O Caso Hammarskjöld pode vir a ser um raro caso de documentário feito a tempo de influir no esclarecimento adequado dos eventos de que trata.

O filme de Mads Brügger será exibido hoje, às 19h (quarta-feira, 10/4) no Centro Cultural São Paulo, amanhã (quinta-feira, 11/4), às 13h30, no Estação NET Botafogo e sábado, às 13h30 (13/4) no IMS Paulista.

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O colunista entrou de férias. A coluna retorna em 15 de maio.

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