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O centro imaginário

Extrema direita, direita e imprensa na sucessão de 2022

Fernando de Barros e Silva | 13 nov 2020_09h02
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Luciano Huck, Sergio Moro, João Doria Jr., Hamilton Mourão, Luiz Henrique Mandetta. O que esses nomes têm em comum? Todos votaram em Jair Bolsonaro em 2018 e todos têm a pretensão de suceder a Jair Bolsonaro em 2022. O que mais eles têm em comum? Com exceção de Huck, todos serviram a Bolsonaro ou se serviram de Bolsonaro em algum momento nos últimos dois anos. Huck, além do voto, disse apenas que o capitão tinha “uma chance de ouro de ressignificar a política no Brasil’’. Registre-se, porque não é uma frase trivial – e ninguém tem o direito de alegar inocência a respeito de Bolsonaro. Seu governo é um desdobramento fiel do que ele sempre disse e sempre foi.

Com exceção do vice Mourão – mas não muito –, todos hoje são opositores de Bolsonaro – mas talvez também não muito. Vamos supor que a eleição em 2022 seja novamente “polarizada”. Vamos fingir, como exercício de imaginação, que Bolsonaro enfrentará Lula (ou Fernando Haddad), ou ainda Ciro Gomes no segundo turno. Seria, mais uma vez, “uma escolha muito difícil” entre “dois extremos” (já posso deixar pronto o editorial). Nesse cenário hipotético, em quem votariam Huck, Moro, Doria, Mandetta e Mourão? Não sabemos a resposta, obviamente, mas eu arrisco dizer que, com Ciro no jogo, talvez um ou no máximo dois deles votassem contra a reeleição da extrema direita. Se a disputa fosse contra o PT, todos eles arrastariam suas fichas mais uma vez para o lado do capitão. São essas pessoas que a imprensa vê como “alternativas de centro” na política brasileira.

O assunto veio à baila no último domingo, quando o repórter Fábio Zanini publicou na Folha que Huck e Moro haviam almoçado na casa do ex-juiz, em Curitiba, no dia 30 de outubro. Conversaram pela primeira vez pessoalmente sobre uma possível aliança na eleição presidencial. O texto começava assim: “Dois dos principais nomes do centro na política, o apresentador Luciano Huck e o ex-ministro Sergio Moro…” O impacto do furo acabou se misturando às reações contra a localização de Moro no espectro político feita pelo jornal. Então para a Folha o ex-ministro de Bolsonaro é de centro? Mas ele não é o defensor incansável do excludente de ilicitude? Não é Moro quem insiste em afrouxar a lei a fim de deixar a polícia brasileira mais à vontade para executar seu serviço, embora essa já seja uma das polícias mais assassinas do mundo? Que centro é esse, que legisla no intuito de institucionalizar a barbárie e joga para escanteio qualquer preocupação com os direitos humanos?

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, saiu dizendo que seu partido, o Democratas, jamais apoiaria um “representante da extrema direita”, como Moro, em 2022. O ecossistema político está tão degradado pelo efeito tóxico do bolsonarismo que o antigo PFL aparece como uma salvaguarda à destruição do país. Em parte isso é verdade (uma fração da velha direita está segurando a boiada), em parte é jogo de cena de Maia, preocupado em não perder lugar à mesa nas conversas sobre 2022. Maia e Huck almoçaram na segunda-feira, e o tom das críticas a Moro diminuiu muito depois que o democrata se viu de barriga cheia.

Moro e Huck: conversas sobre possível aliança na eleição presidencial – Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

 

Na mesma segunda-feira, o jornal O Globo publicou uma entrevista exclusiva com Moro. Precisamos pôr fim ao ciclo de ódio era o título, retirado de uma frase do ex-ministro, em que ele identificava Bolsonaro e Lula como os polos daquilo que o país precisa superar. Ao ser questionado sobre o envolvimento do senador Flavio Bolsonaro no escândalo das rachadinhas, Moro ignorou a pergunta e passou a falar da omissão do governo em relação ao restabelecimento da prisão em segunda instância e da falta de apoio que diz ter sentido quando apresentou seu pacote anticrime. Sobre os milicianos que orbitam a família do presidente da República, nenhuma palavra.

Mais adiante, a jornalista Bela Megale pergunta: “Como enxerga o presidente Bolsonaro hoje?” A resposta: “Não tenho nenhum sentimento de animosidade. O que eu vejo, a distância, e ainda quando estava no governo, é que falta um ímpeto mais reformista.” Em outras palavras, Moro parece se incomodar com a pouca funcionalidade de Bolsonaro. Falta “ímpeto reformista” – mais liberdade para a polícia matar, melhor ambiente para os negócios. No mais, “nenhum sentimento de animosidade”. A figura do presidente da República é poupada pelo chefe da Lava Jato.

Na terça-feira, mesmo dia em que a Folha buscava recalibrar seu radar ideológico, identificando a dupla Huck-Moro como sendo de “centro-direita”, Merval Pereira escrevia no Globo uma coluna intitulada A busca do equilíbrio. Começava dando um puxão de orelhas em Rodrigo Maia, onde já se viu chamar Sergio Moro de “extremista de direita”? Isso não era mais do que “um abuso de linguagem com objetivo político”. Vou poupar o leitor de mais detalhes. Moro pode mandar emoldurar e pendurar mais essa peça de propaganda na parede.

Menciono Merval porque ele é o típico comentarista de direita que está eternamente fazendo a defesa ou a apologia desse “centro imaginário”. Merval é um sintoma pedestre das ilusões que a classe dominante alimenta sobre si mesma. Não é o único. A certa altura da campanha de 2018, a direção da Folha fez circular entre seus jornalistas um comunicado segundo o qual Jair Bolsonaro deveria ser caracterizado como candidato de “direita”, apenas. Valendo-se de uma interpretação qualquer do Manual da Redação, a nota decretava que o adorador de Brilhante Ustra não poderia ser colocado na prateleira da “extrema direita”. É bastante chocante. Aqui estamos.

 

A eleição de Joe Biden nos Estados Unidos, as eleições municipais por aqui e as perspectivas sombrias para o país, sobretudo na área econômica, mas também além dela, estão precipitando o debate sobre a sucessão de Bolsonaro. É exasperante pensar que as eleições ocorrerão só em 2022. E virtualmente impossível imaginar a permanência de Jair Bolsonaro no comando do país até 2026.

O impacto político provocado pela notícia de um simples encontro entre Luciano Huck e Sergio Moro mede um pouco a temperatura do momento. Entramos na temporada das danças do acasalamento. Há uma inflação de pavões no campo conservador, cada um deles apostando que a configuração extremamente complicada dos próximos anos lhes dará uma oportunidade única de ocupar a cadeira de Bolsonaro. Isso até certo ponto também vale para o campo progressista, onde, no entanto, as candidaturas não serão novas. A ideia de que possa ainda haver uma frente ampla contra Bolsonaro soa cada vez mais como um devaneio. Lula e Ciro lavaram a roupa suja, mas não há, por ora, nenhum sinal de que a conversa que tiveram irá desembocar na construção de uma candidatura única. Deixemos de lado, por enquanto, a oposição de centro-esquerda.

Mesmo afastado do poder, Sergio Moro parece mais do que nunca interessado no jogo da sucessão. A imagem do juiz destemido que enfrentou o baronato das empreiteiras e colocou Lula na prisão ainda lhe confere dividendos políticos. Apesar de tudo, Moro preserva parte significativa do cacife que acumulou durante a Lava Jato. Ao mesmo tempo, é uma pessoa pouco efusiva, de temperamento um tanto macambúzio, e seu horizonte parece ser irremediavelmente provinciano. Ninguém sabe o que acontecerá, mas é mais fácil imaginar Moro como vice de Luciano Huck ou de João Doria do que o contrário.

O governador de São Paulo só deixará o cargo se for candidato à Presidência. Huck também não arriscaria largar sua boa vida no caldeirão a não ser como presidenciável. Repito: tudo pode mudar, nunca se esqueçam daquela história de que a política é como nuvem, mas hoje a disputa do campo liberal-conservador se dá sobretudo entre Doria e Huck. Na falta de definição melhor, são ambos pós-tucanos. São também dois riquinhos, ou ricaços, homens de negócios que alavancaram suas carreiras usando a tevê, embora em graus muito distintos. Luciano Huck é uma celebridade global, Doria lembra um primo distante de Amaury Júnior ou uma versão coxinha de Otávio Mesquita.

Embora o governador paulista pertença ao PSDB (poderia estar no Novo ou no Podemos, tanto faz), é Huck quem tem ligação orgânica com as viúvas de Fernando Henrique Cardoso. Há muita gente qualificada do antigo tucanato trabalhando na gestação de sua candidatura – isso há anos, como quem cuida de uma gravidez planejada. Mas Huck, na verdade, tem ligação com todo mundo. Ele é o amigo do amigo do amigo do amigo do amigo – como canta Skowa na insuperável Amigo do Amigo, de 1989 –, desde que isso lhe renda algo, em sentido literal ou figurado.

É nesse sentido específico que Huck talvez seja mesmo um político, ou um futuro político “de centro”. Ele quer se dar bem com todos. Quer gerir o Brasil dissolvendo os conflitos em fogo brando, como se estivesse cozinhando de forma lúdica num imenso caldeirão.

É isso o que de certa forma ele já faz em seu programa vespertino. Nas suas mãos, a miséria se transforma em entretenimento, a violência brasileira se desfaz em registros televisados de sentimentalismo e comunhão.

Releio o perfil que a piauí publicou do apresentador em 2018 e recrio na imaginação uma cena a partir dos elementos dispersos no texto. O helicóptero apanha Huck em sua casa, no bairro do Joá, onde ele, Angélica e os três filhos dividem o terreno de 17 mil metros quadrados com doze funcionários, a maior parte uniformizada de branco, da camiseta às sandálias. Como o lugar é espaçoso, há um carrinho de golfe para levar as pessoas de um canto a outro da propriedade.

O helicóptero deixa Huck no aeroporto Santos Dumont, de onde ele partirá em seu jatinho particular para algum cafundó do país. Chegando ao lugar, ele é recebido efusivamente – pequenas multidões aglomeradas tentam se aproximar, abraçar, beijar e tirar fotos a seu lado. A produção do Caldeirão já se encarregou de tudo, e basta ao apresentador gravar as cenas com a família que receberá dele uma casa inteiramente reformada. As pessoas se comovem, quase sempre choram, não sabem o que fazer para agradecer o presente dos céus.

Quando tudo termina, Huck tem que enfrentar uma nova multidão de fãs antes de pegar o jatinho de volta ao Rio. Chegando no Santos Dumont, o mesmo helicóptero o conduz sobre a cidade até sua casa em poucos minutos. Mais um dia de trabalho, mais uma boa ação, mais uma viagem cumprida. Não há como discordar: Luciano Huck, a esperança do centro contra os extremos, conhece profundamente o Brasil.

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