Nota: A publicação desta reportagem estava proibida desde o dia 12 de agosto de 2021 por decisão da juíza Tula Corrêa de Mello, da 20ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Acionada pelos advogados do humorista Marcius Melhem, a juíza entendeu que a piauí violara o sigilo do processo judicial na apuração da reportagem e suspendeu sua publicação “pelo tempo que durarem as investigações”.
No dia 31 de janeiro deste ano, a medida foi derrubada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. O ministro lembrou doze decisões relativamente recentes – todas de 2011 para cá – nas quais o STF determinou que a censura prévia à imprensa é uma violação da Constituição. Também afirmou que “eventual prática de crime de divulgação de sigilo funcional por parte de servidor público […] não contamina e nem se aplica ao trabalho investigativo” da imprensa, de tal modo que o “repórter […] tem todo o direito de publicar as reportagens relativas ao caso, bem como manter o sigilo da fonte”.
Nos 172 dias em que a publicação da reportagem ficou proibida, houve novos desdobramentos do caso Melhem, que estão contemplados na versão que segue.
Desde a estreia, o programa humorístico Tá no Ar: a TV na TV, exibido pela Globo, vinha fazendo sucesso. Os episódios de humor afiado sobre o mundo político e cultural do país renderam boas críticas na imprensa e repercutiram nas redes sociais. Com os resultados positivos, a emissora decidiu manter o Tá no Ar na grade de sua programação. No dia 27 de novembro de 2014, em meio às gravações de uma nova temporada, a equipe combinou uma festa na suíte do Barra Beach, onde estava hospedado um integrante do elenco. Vários profissionais do Tá no Ar costumavam ficar no Barra Beach, um apart-hotel não muito longe dos Estúdios Globo, quando viajavam ao Rio de Janeiro para gravar o programa.
Naquela quinta-feira de novembro, uma das atrizes, também hospedada no hotel, recebeu uma mensagem de WhatsApp do humorista Marcius Melhem, um dos criadores do programa. Melhem estava saindo dos Estúdios Globo e pedia para tomar um banho no flat da atriz antes de ir para a festa. Ela achou o pedido um pouco esquisito, mas entendeu que não tinha como negar o favor. Afinal, Melhem era seu chefe. Para desestimular qualquer investida inadequada, ela fez questão de informar que uma colega do Tá no Ar também estava chegando ao flat. Melhem pareceu não dar importância e avisou que já estava a caminho. Infelizmente, a colega teve um contratempo e não apareceu. Melhem chegou e dirigiu-se ao banheiro.
Poucos minutos depois, o humorista saiu do banheiro com uma toalha enrolada na cintura e o pênis ereto, marcando o tecido, e partiu para cima da colega. Imprensou-a contra a parede e tentou beijá-la, enquanto ela desviava o rosto e mantinha os lábios cerrados. Diante da resistência da atriz, Melhem soltou-a, vestiu-se e encaminhou-se para a suíte onde se encontrava o elenco do Tá no Ar. Sozinha em seu flat, a atriz teve uma crise de choro, mas se recompôs e manteve o compromisso: foi à festa dos colegas de equipe.
A atriz é uma das oito mulheres – todas ex-subordinadas de Melhem na Globo – que acusaram o humorista de assediá-las sexualmente e, em alguns casos, moralmente. Todas elas, cujas identidades estão sendo mantidas em segredo, prestaram depoimento à promotora Gabriela Manssur, coordenadora da Ouvidoria Nacional do Ministério Público. No início de novembro do ano passado, Melhem prestou um longo depoimento à Delegacia de Atendimento à Mulher, no Centro do Rio, mas, nas oito páginas que transcrevem suas respostas, há apenas duas linhas sobre o caso do Barra Beach. Nelas, Melhem nega que tenha deixado o banheiro enrolado numa toalha e nega ter tentado agarrar a atriz à força.
Os dois depoimentos – o da atriz acusando e o de Melhem se defendendo – podem ser interpretados como a palavra de um contra a do outro. Mas uma troca de mensagens de WhatsApp entre Melhem e a atriz, ocorrida dois dias depois do encontro no hotel, joga luz sobre o episódio. A piauí teve acesso às mensagens incorporadas aos autos do inquérito.
Às 11h54 do sábado, 29 de novembro, Melhem perguntou:
– Tá viva?
– Super – respondeu a atriz, de imediato.
– Quer visita? Rsrs #japassouoconstrangimento? – escreveu Melhem, em seguida.
Não se sabe – e nenhum investigador perguntou até agora – a que “constrangimento” o humorista se referia na mensagem. Mas, aparentemente, a atriz sabia do que se tratava. Ela interrompeu a conversa por alguns instantes e, quatro minutos depois, respondeu:
– Haha não passou.
Em seguida, a atriz tentou mudar de assunto. Comentou que o trânsito estava muito intenso, e que logo seria apanhada pelo motorista, mas Melhem insistiu em falar da noite anterior:
– Vou te dar uns três tapas na próxima gravação para vc relaxar. Ou três cervejas, não decidi ainda.
– Hahaha!!!! – respondeu a atriz.
Depois de dizer que estava passando na frente do flat da atriz, numa aparente sugestão para que fosse convidado a entrar, Melhem completou:
– Dou-lhe uma… dou-lhe duas… rs.
A atriz encerrou a conversa sem responder.
O caso do Barra Beach junta-se a outras denúncias apresentadas pelas oito mulheres. Elas narraram fatos ocorridos entre 2010 e 2019 em diferentes locais – entre eles, os Estúdios Globo, que ficam no bairro de Jacarepaguá, a Hahahouse, apelido da casa onde se concentravam os redatores dos programas de humor, no Jardim Botânico, e o bar Vizinha 123, em Botafogo, onde testemunhas dizem que a atriz Dani Calabresa foi assediada por Melhem na saída do banheiro. Das oito, seis depuseram por videochamada. Duas, por escrito.
Uma delas contou que, no flat que a Globo alugava para funcionar como redação do núcleo de humor, Melhem recebia atrizes de “cuecas, com as calças abaixadas ou sem calças”. Outra disse que ele a chamava de “piranha”. Outra afirma que o humorista lhe dizia que merecia receber um boquete por tê-la contratado para a Globo. Há denúncias diversas. Que Melhem surgia de cuecas, apontava para o banheiro e dizia “Vamos?”, em tom de convite. Que propunha sexo para uma colega. Que pegava a mão das mulheres e a colocava na sua genitália. Que comentava com uma atriz “Você faz parte das minhas fantasias sexuais” ou “Como você está gostosa com essa roupa”. Mais de uma das vítimas dizem que foram profissionalmente boicotadas por terem resistido às suas investidas sexuais.
Em seu depoimento à Delegacia de Atendimento à Mulher, Melhem nega ou relativiza as acusações. Afirma que não tem compulsão sexual, se declara católico e devoto de Nossa Senhora de Fátima, garante que sempre respeitou as mulheres com as quais trabalhou e nunca usou seu poder e influência em troca de sexo ou boicotou a carreira artística de quem quer que seja. Também esclareceu que não tinha poder absoluto para contratar e definir salários ou escala de trabalho.
Sobre o assédio a Dani Calabresa no bar Vizinha 123, Melhem descreve falas e carícias eróticas trocadas por ele e a atriz naquela noite e afirma que “não houve nada à força, foi tudo consensual de ambas as partes (sic)”. Melhem nega que tenha forçado colegas a tocar sua genitália. Em dois casos, ele reverte a acusação. Diz que a própria atriz chamava a si mesma de “piranha”, e a colega que denunciou o pedido de boquete era quem dizia, ela própria, que “tinha que pagar um boquete para quem a levou para a Globo”.
Melhem afirma que, entre as oito vítimas que o denunciaram, teve “relacionamento por mais de um ano” com uma delas, e “relacionamento por uma noite” com outras três, sempre em termos consensuais. Em diversas passagens, diz que flertava com algumas das acusadoras e era correspondido. Melhem atribui as acusações à vingança de duas colegas. No caso da atriz com quem teve um romance, diz que é uma vingança de “ordem passional”. Segundo a transcrição no depoimento: “Ela tinha um amor que virou ódio e um ódio que virou vingança”. Já no caso de Dani Calabresa, com quem afirma que tinha um excelente relacionamento, diz que se trata de “vingança profissional”, porque a atriz não conseguiu realizar dois projetos artísticos. As duas mulheres, na opinião de Melhem, se juntaram a outras colegas com o objetivo de destruir sua reputação.
Ao longo das oito páginas do seu depoimento, Melhem recorreu diversas vezes à palavra “brincadeira” para se defender das acusações que as atrizes lhe fazem. Alguns exemplos:
– Recebia atrizes de “cuecas, com as calças abaixadas ou sem calças”? “Ocorreu uma vez só, pois se tratava de brincadeira e também não tinha conotação sexual.”
– Mandava mensagens de cunho sexual para Calabresa? Ambos trocavam esse tipo de mensagem, mas eram todas “em tons de brincadeira e não havia nenhum constrangimento”.
– Chamava uma colega de “gostosa” e falava que ela fazia parte de suas “fantasias eróticas”? “Eram brincadeiras, todos falavam sacanagens, inclusive ela.”
– Disse para uma atriz, depois que ela decidiu dedicar-se exclusivamente à Globo, que ele iria recompensá-la com “noites de sexo”? “Se disse isso foi no contexto de brincadeira, nunca em um contexto sexual.”
– Chegou a propor sexo para uma colega? Eram “amigos e brincavam direto, e inclusive ela também brincava, falava sacanagens.”
– Fazia comentários de natureza sexual para uma atriz? “Sempre no contexto de brincadeiras”, pois “as brincadeiras faziam parte do contexto.”
O outro aspecto da defesa de Melhem é a alegação de que, mesmo depois da investigação pelo Departamento de Compliance da Globo, ele não foi demitido por comportamento inadequado, mas deixou a emissora de “comum acordo”. Melhem estava afastado de suas funções desde março de 2020. Passou cinco meses no exterior e, quando voltou ao país, não foi reincorporado à emissora. No seu depoimento, as razões do seu desligamento aparecem nos seguintes termos: “Indagado qual foi o motivo de sua saída da Rede Globo, [Melhem] disse: que ficou nos Estados Unidos por cinco meses e, quando voltou, a Globo disse que o contrato não foi renovado devido à crise. Os projetos de humor já não interessavam em agosto de 2020 e como a Globo não tinha mais interesse no projeto, houve a sua saída da emissora de comum acordo.”
É a versão oficial. Em março de 2020, a Globo distribuiu um comunicado à imprensa em que dizia que, “por motivos pessoais, Marcius Melhem deixou a liderança dos projetos de humor” e acrescentava que o humorista também solicitara “licença das funções de roteirista e ator por um período de quatro meses”. Em agosto, quando enfim anunciou o término do contrato com Melhem, a emissora fez outra nota à imprensa: “A Globo e Marcius Melhem, em comum acordo, encerraram a parceria de dezessete anos de sucessos. O artista, que deu importante contribuição para a renovação do humor nas diversas plataformas da empresa, estava de licença desde março para acompanhar o tratamento de sua filha no exterior. Como todos sabem, a Globo tem tomado uma série de iniciativas para se preparar para os desafios do futuro e, com isso, adotado novas dinâmicas de parceria com atores e criadores em suas múltiplas plataformas.”
O problema é que, no rastro das investigações, a versão oficial começou a ruir.
A piauí teve acesso a dois e-mails internos da Globo. O primeiro, datado de 6 de janeiro de 2020, é assinado por Mônica Albuquerque, então chefe do Desenvolvimento e Acompanhamento Artístico (DAA), o órgão ao qual os artistas recorrem para apresentar suas queixas. No e-mail, endereçado a Helcio Alves Coelho, advogado da Globo e membro do Departamento de Compliance da emissora, Albuquerque faz uma longa avaliação da abertura das investigações sobre Melhem, mas indica que tudo parece estar sob controle. Ela informa que o problema de Dani Calabresa – então apontada na imprensa como vítima de assédio moral, e não sexual – parecia ser de “instabilidade emocional” decorrente de “frustrações no trabalho”. Da parte de Melhem, tudo parecia decorrer de um “gap de gestão”. Albuquerque tranquiliza o advogado e diz que Calabresa não pretendia prestar queixa formal contra Melhem, que, por sua vez, mostrava-se disponível para se reencontrar com a atriz e “reconstruir uma relação”.
No segundo e-mail, datado de 23 de janeiro, Albuquerque muda de tom inteiramente. A mensagem é novamente endereçada ao advogado Helcio Coelho, mas agora também a Marcelo Vilhena, então gerente de Compliance do Grupo Globo. No texto, ela informa que recebeu outros relatos e que o caso já não parecia mais se restringir a um mero “gap de gestão”. Ela sugere que a Comissão de Ética e Conduta da Globo seja acionada e diz que Calabresa está disposta a formalizar uma queixa contra Melhem no Compliance. Diante disso, Albuquerque leva a atriz para uma conversa com Carlos Henrique Schroder, então o nome mais graduado da emissora. (No encontro, ocorrido no mesmo dia 23 de janeiro, Calabresa relatou o assédio sexual que sofrera e disse que não era a única vítima. Schroder determinou, em telefonema dado na frente da atriz, que o Compliance tomasse a frente das investigações.)
A piauí também teve acesso a um terceiro documento, com data de 16 de março, assinado por Helcio Coelho, o advogado que colheu os depoimentos das vítimas de Melhem, incluindo Dani Calabresa. Nesse comunicado interno, Coelho é peremptório. Diz que Melhem será demitido imediatamente do cargo de diretor de humor e ficará suspenso de suas funções como ator e roteirista até segunda ordem. Escreveu ele: “Com base na apuração realizada, a Comissão de Ética e a gestão da empresa decidiram pela rescisão imediata do contrato do executivo, perdendo desta forma o seu cargo de gestão, e pela suspensão por quatro meses dos seus contratos de ator e roteirista. Após o período de afastamento, Carlos Henrique Schroder avaliará o seu retorno.”
Coelho inclui dois anexos ao seu comunicado. Um deles contém duas apresentações sobre a conclusão das investigações. Uma das apresentações foi elaborada para informar os membros da Comissão de Ética. A outra, em que os entrevistados estão ocultos, foi destinada para Schroder, o “gestor do denunciado”. O segundo anexo é um arquivo compactado contendo “entrevistas, depoimentos, solicitações de depoimento, decisão de medida administrativa, e-mails de apoio a Marcius e abaixo-assinado”. A piauí desconhece o conteúdo dos anexos.
Além dos e-mails e do comunicado interno, no entanto, a revista teve acesso a um documento oficial da Globo informando que Melhem, de fato, foi punido com demissão, ao contrário do que diz a versão oficial. É uma carta endereçada à Delegacia de Atendimento à Mulher, com data de 31 de janeiro passado e assinada por Ana Carolina Bueno Junqueira Reis, diretora do Compliance da emissora. Na carta, a diretora informa que, “tendo em vista as alegações de práticas abusivas por parte do sr. Marcius Melhem”, a Comissão de Ética decidiu recomendar “a perda do cargo de gestão, com efeitos imediatos” e o “afastamento completo do profissional por um período de 180 dias”.
(Procurada, Mônica Albuquerque disse que só acompanhou o caso enquanto esteve no âmbito do DAA, pois o Compliance conduz suas investigações sob sigilo. Ela conta que, quando a Globo anunciou o afastamento de Melhem em março de 2020, achou que a emissora deveria ter sido mais específica. “Alertei a área de comunicação da empresa para a necessidade de que fosse dada uma indicação clara da motivação do afastamento, o que não foi atendido”, disse ela. Schroder deixou a emissora no final do ano passado, uma mudança que não teve qualquer relação com o caso de Melhem. Procurado para falar do assunto, ele não respondeu as mensagens de WhatsApp. A direção da Globo informou que não se manifesta sobre questões de compliance “em razão do compromisso de sigilo previsto em nosso Código de Ética”.
Melhem, por sua vez, mandou uma nota assinada por seus advogados, cuja íntegra diz o seguinte: “A revista piauí se tornou assessora de imprensa da acusação. Não apura corretamente fatos importantes, publica inverdades, ignora provas e sequer faz desmentidos de situações comprovadamente falsas. Agora publica uma matéria seis meses desatualizada de informações fundamentais que a investigação trouxe à tona. Sendo assim, que publique as suas inverdades e distorções. A Justiça a desmentirá.”)
Analisados em conjunto, os e-mails de Mônica Albuquerque, o comunicado de Helcio Coelho e a carta de Ana Carolina Reis demonstram que Melhem não deixou a chefia do humor por “motivos pessoais” em março de 2020, que sua volta à emissora estava condicionada à avaliação de Schroder e que, por fim, o Compliance encontrou “alegações de práticas abusivas” graves, a ponto de justificar a dispensa imediata do humorista. No entanto, não há menção expressa a “assédio sexual” ou “assédio moral” no conteúdo acessado pela piauí, e a carta da diretora do Compliance não explica quais foram as “práticas abusivas” do humorista. A situação fica mais clara, porém, quando se associa toda essa documentação a um outro elemento das investigações – no caso, uma gravação de Daniela Ocampo, número 2 do humor da Globo e braço direito de Melhem, à qual a revista teve acesso.
Daniela Ocampo começou a trabalhar na TV Globo em 2010, sempre na redação do núcleo de humor da emissora. Como principal auxiliar de Melhem, tinha ascendência sobre a equipe e era leal ao chefe. Em dezembro de 2019, quando surgiram na imprensa as primeiras suspeitas de que Melhem assediara moralmente três colegas, Ocampo saiu em defesa dele. Mobilizou a equipe para assinar uma carta de apoio, na qual os 55 signatários negavam qualquer relação tóxica dentro do núcleo de humor e hipotecavam “toda a solidariedade a Marcius Melhem diante dessa maldade”.
Um ano depois, quando Melhem já estava afastado da emissora, Ocampo tinha outra opinião sobre o chefe. Na época, a piauí tentou ouvir Ocampo porque estava fazendo uma reportagem sobre o assunto, que foi publicada sob o título O que mais você quer, filha, para calar a boca? (piauí_120, dezembro 2020). Ela não quis dar entrevista, mas, sobre o abaixo-assinado que organizara em favor de Melhem, disse o seguinte: “Eu agi de acordo com o que eu acreditava na época e hoje sei que tinha uma visão parcial do que estava acontecendo.” Ocampo nunca revelou o que a fez mudar de posição.
No áudio de Ocampo, gravado ainda no primeiro semestre de 2020, no entanto, os motivos da mudança de opinião aparecem. Ali, ela confirma que Melhem assediava sexualmente suas subordinadas, e ainda dá a entender ao seu interlocutor que as suspeitas apuradas pelo Compliance eram mais pesadas do que pareciam. Ela diz: “Eu achava que eram pessoas que tinham ido no Compliance falar ‘Cara… é, ele já me cantou, ou ele já me empurrou contra a parede e tentou me dar um beijo’. Essas histórias que eu via que o Marcius fazia, sabe?”
Em outro trecho, Ocampo diz que o próprio Schroder lhe contou que Melhem fora punido pelo Compliance. “Eu tive a reunião com Schroder, essa foi a reunião em que ele me contou”, diz ela. “Eu estava no Projac [antigo nome dos Estúdios Globo] e fui na sala dele e ele me falou essa história que ele [Melhem] não foi absolvido [pelo Compliance], que ele tinha negociado a narrativa da saída dele, que oito pessoas tinham ido falar contra ele…” Procurada pela revista, Ocampo novamente declinou o pedido de entrevista: “O caso corre em segredo de Justiça, e eu não me sinto à vontade, nem apta, na real, para falar sobre isso.”
Os depoimentos – inclusive a gravação – estão nas mãos dos investigadores. Em meados do ano passado, a promotora Janaína Marques Corrêa Melo, que conduz as investigações com base nos depoimentos tomados pela Ouvidoria Nacional do Ministério Público, pediu à Justiça que tomasse algumas cautelas: proibir Melhem de visitar os Estúdios Globo e a Hahahouse (que ainda existia na época), de fazer contato com as mulheres que o denunciaram (das quais deveria manter distância mínima de 300 metros) e de divulgar conversas privadas que tenha mantido com elas. Também pediu que o passaporte de Melhem fosse apreendido.
Em julho do ano passado, a juíza Tula Corrêa de Mello, da 20ª Vara Criminal do Rio, atendeu todos os pedidos. Em seu despacho, escreveu: “Os fatos noticiados pelas vítimas se mostram graves, considerando a posição hierárquica do investigado ao tempo dos fatos, as circunstâncias dos fatos narrados, bem como a quantidade de supostas vítimas.” Pouco depois de tomar essa decisão, a juíza foi informada de que Melhem fizera uma ligação de vídeo para o celular de Dani Calabresa, em desrespeito às medidas cautelares.
O episódio correu por volta das 18 horas do dia 16 de agosto, quando Calabresa e um colega, o ator Pedroca Monteiro, estavam na praça de alimentação dos Estúdios Globo. Ao ver na tela do celular que o humorista estava ligando, a atriz ficou assustada. Chegou a achar que Melhem também estava na praça de alimentação e não atendeu à chamada. A juíza foi informada da ligação pelos próprios advogados de Melhem. Eles disseram que a ligação fora acidental e que Melhem já havia bloqueado o contato da atriz para evitar que o incidente se repetisse. Ficou por isso mesmo. Mas as medidas cautelares continuam em vigor, exceto a apreensão do passaporte. O documento foi devolvido a Melhem em 25 de novembro. Desde então, ele voltou a ter a liberdade de viajar para o exterior.
Além das oito mulheres e do próprio Melhem, outras pessoas já depuseram no caso. Pelo menos cinco colegas falaram a favor do humorista, a maior parte mulheres: as atrizes Flavia Reis, Patricia Pinho e Renata Castro Barbosa, e a diretora Alice Demier, do Zorra, programa humorístico que saiu do ar em dezembro de 2020. O humorista Welder Rodrigues, que entrou na Globo a partir do sucesso no grupo de comédia Os Melhores do Mundo, também depôs a favor de Melhem. Disse que nunca presenciou assédio por parte do antigo chefe, não ficou sabendo do episódio ocorrido no bar Vizinha 123, afirmou que o ambiente de trabalho era de respeito e as piadas de cunho sexual eram comuns. Cerca de dez testemunhas depuseram contra Melhem, entre elas a atriz Maria Clara Gueiros, os atores George Sauma e Eduardo Sterblitch, o diretor Mauro Farias, que comandou o Zorra e o Tá no Ar, e o humorista Marcelo Adnet, ex-marido de Dani Calabresa e uma das maiores estrelas do humor da Globo.
Não há previsão para o encerramento do caso.