“Nunca refaça os seus próprios passos. Seus pés podem se queimar e você não poderá mais andar.” Essa advertência ameaçadora, feita em outro filme – o documentário Diário, do brasileiro-israelense David Perlov (1930 – 2003) –, pode ser tomada como a premissa de O Cidadão Ilustre.
No filme argentino, o premiado escritor Daniel Mantovani (Oscar Martinez) cede à tentação de refazer seus passos após 20 anos e queima os pés ao voltar à sua cidade natal, na Argentina – principal fonte de inspiração da sua obra. Isso, independente do relato da estadia encenada no filme ser produto da imaginação de Mantovani ou guardar vínculos estreitos com eventos realmente ocorridos.
É verdade que a divisão de O Cidadão Ilustre em capítulos, indicados através de legendas, sugere que os fatos narrados possam ser resultado de uma reelaboração ficcional, embora no final permaneça certa ambiguidade em relação a estarmos assistindo ou não a algo factual.
Relevando a insistência em algumas repetições cujo efeito humorístico não se sustenta (os sucessivos carros que enguiçam, por exemplo) e certas transições narrativas mal resolvidas, O Cidadão Ilustre transita com habilidade do cômico ao trágico. A passagem é impactante, especialmente para espectadores de início mais expansivos, que reagem com efusão exagerada de risos e sacolejos do corpo à crônica sarcástica da pequena cidade de Salas, feita no primeiro terço do filme dirigido por Gastón Duprat e Mariano Cohn, a partir do roteiro de Andrés Duprat.
Recebido como herói, com direito a desfile pelas ruas em cima do caminhão dos bombeiros, Mantovani descobre aos poucos que sua estadia não será um mar de rosas. As relações pessoais passam a ser pautadas pela brutalidade. A violência emerge e silencia a plateia que fica paralisada, passando a acompanhar o filme aterrorizada até o final.
É razoável supor que Mantovani, personagem apresentado fazendo discurso desdenhoso de agradecimento ao receber o prêmio Nobel de literatura, estivesse atento aos paralelos entre sua viagem de regresso e o mito de Orfeu. Assim como o poeta da mitologia, o escritor também é vítima da impossibilidade de remediar agravos antigos e novos. No mito, Orfeu sucumbe, dividido entre sua aspiração pelo sublime e pela banalidade. No filme, porém, Mantovani triunfa, mesmo com os pés queimados, ao lançar um novo romance e superar a fatalidade mitológica.
Em entrevista ao periódico Ocio e Cultura, publicada em novembro de 2016, os diretores de O Cidadão Ilustre, Duprat e Cohn, dizem “trabalhar há 20 anos, e nesta altura ter um currículo de veteranos, mas estão fora do sistema e gostam disso. Sempre procuramos fazer coisas incômodas. Somos ‘outsiders’. Na Argentina, quase ninguém nos conhece. E quem nos conhece não sabe como nos catalogar. Eu creio que os cineastas não nos consideram parte do seu clube, em boa medida por que ao longo de nossa carreira fizemos muita televisão e nos consideram produtores de tevê. Além disso, não somos cinéfilos: gostamos de Spielberg.” (A entrevista completa está disponível aqui)
Quem conhece a produção cinematográfica argentina em seu conjunto afirma que a qualidade média do que é produzido não se compara aos poucos filmes que chegam a ser lançados no Brasil. É provável que assim seja, de fato. Mesmo assim, O Cidadão Ilustre mais uma vez reafirma a distância entre o que é feito lá e cá.