Em maio de 2019, às vésperas de filmar A Última Floresta, documentário que retrata a vida numa aldeia yanomami, o cineasta Luiz Bolognesi recebeu a visita de um tucano em sua casa no bairro do Butantã, em São Paulo. “Durante três dias seguidos, ele me acordava de manhã batendo na janela do quarto”, conta o diretor e roteirista paulistano de 55 anos. “Tempos depois, o [líder indígena e xamã] Davi Kopenawa explicou que, para os Yanomami, o tucano é um mensageiro dos xapiri, os espíritos da floresta. Alerta para situações de risco de morte. Interpretei como um chamado para registrar os Yanomami e atrair a atenção para o perigo do garimpo.” No último dia 20 de junho, o documentário foi escolhido pelo público como melhor filme na mostra Panorama do Festival de Berlim.
No relato a seguir, Bolognesi conta sobre a jornada de gravar numa aldeia isolada na Amazônia; o acidente que quase matou o fotógrafo da equipe; a ameaça do projeto de lei 490, que autoriza a exploração comercial das terras indígenas; e o que aprendeu com os povos originários. “Eles vivem o presente, não ficam presos a planos para o futuro como nós”, diz o cineasta. “Antes eu imaginava viver em Caraíva, no Sul da Bahia, quando me aposentasse. Antecipei o plano, construí uma casa e me mudei para lá. Há trinta anos dei aulas ali e meus ex-alunos pataxós viraram lideranças locais. O filme acendeu em mim essa urgência de fazer o que é preciso já.”
(Em depoimento a Lia Hama)
A ideia de A Última Floresta nasceu durante as filmagens de Ex-Pajé, meu longa-metragem anterior que retrata um pajé destituído de sua potência porque a igreja evangélica havia entrado com força na aldeia. Senti necessidade de fazer um documentário que mostrasse o outro lado da moeda, uma aldeia que fosse símbolo de resistência, em que o xamã fosse forte e atuante. Foi quando li A Queda do Céu – Palavras de um xamã yanomami (Companhia das Letras, 2015), escrito pelo líder yanomami Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert. O livro é uma obra-prima, o Grande Sertão – Veredas do século XXI. Raramente acessamos o pensamento dos povos originários com tanta profundidade. Me encantei com o relato e falei: “Pô, seria incrível se o personagem do meu próximo longa fosse o Davi.”
Fiz um primeiro contato telefônico para ver se o Davi topava. Ele respondeu que queria me conhecer pessoalmente. Fui encontrá-lo em Boa Vista, Roraima, em janeiro de 2019. Davi foi sincero e me disse que não gostava do Ex-Pajé porque ali “o xamã está fraco e quem está forte é o pastor evangélico”. Ele argumentou: “Quero mostrar o povo yanomami forte, morando na floresta, com os nossos xapiri (espíritos da floresta) vivos. Quero um filme bonito, que viaje pelo mundo. Porque vocês, o povo da mercadoria, estão doentes. Vocês destroem os rios, as florestas, os animais. Vocês, brancos, precisam ouvir o que nós, os Yanomamis, temos a dizer.” Concordei, e ele aceitou fazer o filme.
Convidei o Davi para fazer o roteiro comigo. Ele me perguntou: “Mas o que faz um roteirista?” “A gente vai escolher juntos as histórias que vamos contar”, respondi. Ele então falou: “Luiz, cinema é sonho, né? Então você tem que ir à minha aldeia e dormir umas noites lá. Temos que falar dos nossos sonhos para encontrarmos juntos essas histórias.” Eu e a Carol Fernandes, minha assistente de direção e produtora, fizemos uma primeira viagem para a aldeia, onde ficamos dez dias. Depois voltamos com a equipe de filmagem e passamos mais cinco semanas lá. A aldeia Watoriki fica numa região de montanhas, na divisa do Amazonas com Roraima, próximo à fronteira com a Venezuela. Não há acesso por carro ou barco. O avião te deixa lá e depois volta para buscar no dia combinado. Você fica por sua conta e risco. Não tem telefone, internet nem boteco para comprar coxinha na hora em que bate a fome.
Essa foi a minha jornada: me entregar ao desconhecido. Como meu objetivo era fazer um filme o mais indígena possível, fui perdendo o controle de forma consciente, primeiro da dramaturgia e depois da direção. Como roteirista, normalmente sei qual vai ser o arco dramático e onde cada cena se encaixa. Mas ali eu não sabia. Davi reuniu um grupo de homens – os mais velhos e os guerreiros da aldeia –, que foram decidindo que histórias iríamos contar. Foram eles que resolveram incluir o mito dos gêmeos Omama e Yoasi, os deuses criadores do povo yanomami. Pensei: “Caramba, vou ter que contar uma história mitológica num documentário sem dinheiro. Como vai ser isso?” Não tinha a mínima ideia.
Ao mesmo tempo, eu quebrava protocolos. Queria trazer as mulheres para a roda de conversa. Num primeiro momento, Davi recusou: “Não é nossa tradição. Nas rodas de decisão só os homens participam.” Fiquei incomodado porque as mulheres me procuravam, elas queriam participar. Argumentei: “Davi, lá fora as coisas estão mudando, as mulheres estão lutando para ter espaço. Aqui as mulheres também lutam e, se a gente não trouxer o olhar delas, vão achar que os Yanomami não respeitam as mulheres.” Ele ficou quieto, se levantou e saiu. Às vezes, ficava bravo comigo. Nunca era deselegante ou agressivo, mas se calava. Na hora, pensei: “Putz, passei do limite.” Mas ele voltou e falou: “Luiz, pensei melhor: Ehuana é uma mulher forte. Você deve ouvi-la e trazer as histórias das mulheres. O que você decidir com ela, pode filmar.”
Ehuana lidera uma cooperativa de mulheres que vendem artesanato em Boa Vista. O dinheiro vai para um fundo das mulheres yanomami. Ela escreveu um livro sobre sexualidade e menstruação. É artista gráfica, os desenhos dela foram expostos na Europa. Quando os moradores da aldeia me perguntaram porque eu filmava tanto a Ehuana, respondi: “Porque a câmera tem um xapiri e ele está apaixonado por ela.” “Ah, a gente entende. Espertinha essa câmera”, comentaram, rindo.
Muitas vezes eu não sabia o que faria com o material filmado. Pensava: “Está perigosamente naive. Talvez o filme não funcione, talvez fique tosco.” Havia noites em que não conseguia dormir porque estava gastando uma grana, tinha levado equipe, pessoas que se afastaram das famílias para embarcar nessa jornada. Havia uma expectativa enorme do Davi; dos Yanomami; do pessoal do Instituto Socioambiental, que me ajudou no contato com os indígenas; e dos produtores do filme: Laís Bodanzky, Caio e Fabiano Gullane. Foram momentos de angústia e insegurança. Mas decidi que, na sala de montagem, tentaria encontrar um caminho narrativo que não fosse ingênuo e funcionasse tanto para os Yanomami como para os brancos.
O momento de maior desespero foi o acidente que quase tirou a vida do nosso diretor de fotografia, Pedro Márquez. Faltavam três dias para irmos embora quando caiu uma árvore em cima dele. Estávamos numa trilha quando começou a chover e a ventar muito forte. Pedro caminhava na frente. Quando o alcançamos, o encontramos esmagado por uma árvore. Ele sofreu múltiplas fraturas. Quebrou fêmur, joelho, tornozelo, rompeu ligamentos e ossos das pernas. Sofreu hemorragia interna. Se continuasse ali, o perderíamos em poucas horas. Corri para o rádio para pedir para a produção mandar um avião, mas, quando há tempestade, o rádio não funciona. Comecei a rezar para que os xapiri fizessem alguma coisa. Foi quando ouvi um barulho vindo do céu. Era um avião que pousou porque estava sem gasolina e o piloto sabia que havia combustível na aldeia. Tinha certeza de que os xapiri ouviriam minha prece.
Levamos Pedro para Boa Vista. São duas horas de voo até lá. Ele estava ficando com os lábios e dedos escurecidos por falta de sangue. Estancaram a hemorragia no hospital em Boa Vista e o transportamos num avião UTI para o Einstein, em São Paulo. Ele ficou dois meses internado e passou por uma série de cirurgias. Hoje, está ótimo.
As sessões de A Última Floresta no Festival de Berlim ocorreram ao ar livre por causa da pandemia da Covid-19. Estávamos numa arena com um telão num parque cheio de árvores e pássaros. Na hora, pensei: “Ih, os xapiri da Amazônia chamaram os xapiri europeus. Isso é um bom presságio porque esses xapiri não brincam em serviço.” Não deu outra: fomos ovacionados e levamos o prêmio do público de melhor filme da mostra Panorama.
O aspecto mais importante desse documentário é chamar atenção e mobilizar a opinião pública contra o genocídio dos povos indígenas. O governo do presidente Jair Bolsonaro quer eliminar os povos originários do país. Nas palavras dele, quer que “o índio se integre à sociedade”. É um discurso etnocida sendo colocado em prática. Desde o início do governo, 20 mil garimpeiros invadiram o território yanomami, derrubando a mata, poluindo rios e extraindo ouro ilegalmente. Agora, após muita pressão das entidades de defesa dos direitos indígenas, a Polícia Federal iniciou uma operação para combater o garimpo ilegal na região. Vamos continuar monitorando até que a ação tenha resultado efetivo.
No Congresso Nacional está em tramitação o projeto de lei 490, que ameaça os indígenas porque retira deles o direito sagrado sobre a terra. O projeto prevê o estabelecimento da exploração econômica do território sem que isso seja decidido pelos indígenas. Hoje você não pode entrar no território indígena se não tiver autorização da Funai e consentimento do povo originário. Então, teoricamente, um evangélico não pode entrar, um garimpeiro não pode entrar, eu não posso fazer nada sem a autorização deles. Se a lei for aprovada, a União pode dar concessão para uma mineradora entrar no território sem autorização dos indígenas e retirar ouro de lá. Eles dizem que vão pagar uma taxa para os povos originários e é evidente que uma parcela é favorável. Mas a maioria é contra, porque vão perder o direito de decidir sobre seu território sagrado e de perder esse território.
A Última Floresta estreia nos cinemas brasileiros em setembro e numa plataforma mundial de streaming em outubro. Em breve, esperamos levar o filme para uma sessão especial na aldeia do Davi, onde todos já estão vacinados contra a Covid-19. Vai ser emocionante apresentá-lo aos Yanomami na terra deles, sob a bênção dos xapiri.