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    Belchior (terceiro da esquerda para a direita) e sua turma na Ordem Menor dos Capuchinhos recebem visita do presidente Castelo Branco. FOTO: ARQUIVO PESSOAL

questões musicais

O claustro

O relato dos três anos em que Belchior viveu em um mosteiro

Jotabê Medeiros | 02 maio 2017_15h53
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Em 2009, Belchior sumiu. Foi quando o jornalista Jotabê Medeiros deu partida à pesquisa para um livro sobre o artista. Durante anos, ele fez dezenas de entrevistas com parceiros musicais, amigos de infância, familiares e produtores de seus discos. Quando se preparava para viajar para Santa Cruz do Sul – cidade próxima a Porto Alegre, onde Belchior vivia anonimamente –, Medeiros soube da morte do cantor.

O trecho abaixo foi extraído do primeiro capítulo do livro, a ser publicado em setembro pela editora Todavia. Trata de um período pouco conhecido na vida de Belchior: os três anos que passou como interno no Mosteiro de Guaramiranga, na região serrana do Ceará, durante a adolescência. Foi ali que o artista travou seu primeiro contato com a literatura e a filosofia e habituou-se ao silêncio e à introspecção que marcariam sua trajetória singular até o fim da vida.

Mede cerca de dez centímetros de comprimento, olhos brancos. Tem um canto anasalado, descompassado, que começa sem melodia (tiutiu) e termina com um sibilo (tchitchuuuuu). O macho, nessa clássica misoginia da natureza, é sempre mais vistoso, preto nas costas, com coroa e nuca vermelho-vivas e faixa branco-amarelada na base da cauda; há algum branco na asa, visível principalmente durante o voo, e tem amarelo por baixo, com o peito também tingido de vermelho. A fêmea é verde-oliva, cor mais intensa no dorso e mais clara na barriga, levemente amarelada. O passarinho guaramiranga (também conhecido como uirapuru-laranja, dançador-laranja, tangará de cabeça amarela e uirapuru de cauda curta) é considerado uma ave isolada na região, há diversos lugares onde sua espécie é mais numerosa. Mas foi a ele que cumpriu a tarefa de nomear todo esse oásis particular do Ceará, a Serra de Guaramiranga.

Sob o sol inclemente que encaçapa quase o Ceará inteiro, a Serra de Guaramiranga (também conhecida como Serra de Baturité ou Maciço de Baturité) é uma exceção climática atraente. Rodeada de cachoeiras e matas preservadas, de noite a temperatura ali pode beirar os 15 graus, o que faz o cearense de classe média tratar a cidadezinha de Guaramiranga, no coração da montanha, como a sua Campos do Jordão improvável, a sua Bariloche de estimação: há bistrôs, cafés, choperias, spas, comida alemã de turista e sopas e fondues aculturados aqui e ali.

Além do passarinho de canto anasalado, essa terra seduziu outras criaturas. Por conta do clima privilegiado, chegaram à região no século 17 as missões catequizadoras dos jesuítas, com o intuito de trabalhar na conversão de índios Tapuias ou Paiacus. No século 18, o português João Rodrigues instalou ali o primeiro ato colonizador, batizando a própria façanha de Sítio Macapá. Entre 1777 e 1793, uma inclemente seca fez com que fazendeiros cearenses migrassem para a serra, iniciando o cultivo do café, cultura que se adaptou facilmente ao clima. Surgiu a capela Nossa Senhora da Conceição, tornada matriz em 1873.

No começo dos anos 1930, desembarcou ali uma comitiva religiosa de frades italianos lombardos liderada pelo frei Bernardino de Désio. Na ladeira da gruta, em terreno doado, os frades construíram, em 1935, o Mosteiro dos Capuchinhos, ou Mosteiro da Gruta, uma edificação neoclássica cheia de estruturas arqueadas e ambientes amplos, jardins, além de capela. Um belo pastiche gótico a 960 metros acima do nível do mar – há também um convento jesuíta em Baturité, fora da cidade, no início da subida da serra, a seis quilômetros da cidade.

A Ordem Menor dos Capuchinhos, que veio fincar raízes ali, já tinha estrutura sólida no País, pois estabelecera-se no Brasil a partir de 1612, quando aqui chegaram os primeiros frades provenientes da França. Os capuchinhos no Nordeste (sobretudo no Ceará e Piauí) vieram a partir de 1880. A atuação no Ceará foi precedida de um constante trabalho de grandes missionários capuchinhos no Nordeste, desde os primórdios de 1700, com Frei Carlos de La Spezia, culminando com Frei Damião de Bozzano.

Em 18 de dezembro de 1935, começou no mosteiro a ação do estudantado filosófico e teológico. Em 1942, por conta da participação da Itália na Segunda Guerra Mundial, o comandante da 7a Região Militar ordenou que os frades do seminário Nossa Senhora do Brasil, em Fortaleza, conhecido como Messejana (bairro de Fortaleza, antigamente município de Messejana) fossem confinados em Guaramiranga, para que os “súditos do Eixo” fossem “afastados da Costa” brasileira. Os frades só retornariam ao Messejana no final daquele ano.

Em 1997, terminada a construção da residência missionária, no Piauí, o noviciado de Guaramiranga foi transferido para a nova casa. Após 56 anos, Guaramiranga deixava de ser o centro de formação dos frades capuchinhos da província.

Atualmente, o antigo convento funciona como uma disputada pousada, aberta tanto aos religiosos quanto aos turistas comuns. Possui 46 quartos. As antigas acomodações dos noviços foram modernizadas e transformadas em espaços de lazer. Um frade, frei José Maria, coordena os serviços turísticos.

Os capuchinhos cortavam o cabelo tipo “tigelinha” (o que facilitou contatos com índios, contam historiadores), zerado para baixo um dedo acima da orelha e com o cocuruto também raspado. Capuchinho seria um tipo de dissidente radical – os franciscanos tinham que manter o voto de pobreza, mas muitas vezes afrouxavam, o que gerou descontentamento. O patrono dessa dissidência, São Félix de Cantalício, nascido em 1515, era chamado, não por acaso, de “O Santo das ruas de Roma”. Provavelmente, o mais famoso capuchinho que os brasileiros conheceram foi Frei Damião, morto em 1997, e a cujo velório compareceram cerca de 300 mil pessoas.

Além de serem rebatizados, os frades capuchinhos brasileiros costumavam carregar no novo nome o carimbo de suas origens. Frei José de Manaus, Frei Metódio de Fortaleza, Frei Vidal da Penha, Frei Pacífico de Baturité, Frei Daniel de Barreirinhas, Frei Fidelis de Aracatis, Frei Tito de Milagres, Frei Martinho de Cedro, Frei Timóteo de Canindé, Frei Bernardo de Viçosa.

Numa manhã nebulosa e melancólica de fevereiro, em pleno ano de golpe de Estado, 1964, iniciou seus estudos em Guaramiranga uma turma de 14 noviços capuchinhos. Entre eles, destacava-se o frei Francisco Antônio de Sobral, um rapaz de 18 anos de rosto geométrico como um cartum de Nássara e memória prodigiosa, além de facilidade despresunçosa para escrever. A bagagem que trouxe, em uma mala de mascate, era mínima como a dos demais noviços: dois lençóis, duas toalhas e três mudas de roupa, além de escova, pasta, saboneteira e sabonete. Espelho, pente e qualquer perfume eram proibidos. Uma hora após adentrar o mosteiro, seu cabelo foi raspado e o noviço foi enfiado num hábito rude, que a ele pareceu subitamente confortável.

O rapaz de Sobral recebeu depois um regulamento em linguagem rebuscada, cujas frases teve que reler continuamente para compreender. “Lembramos aos fradinhos da proibição omnímoda de se tocarem uns aos outros; os que não cumprirem essa regra serão punidos com o máximo rigor e nenhuma indulgência”, dizia uma das regras.

Logo descobririam: aquele jovem de Sobral trazia outras coisas para Guaramiranga além da bagagem exígua. Era capaz de improvisar repentes e emboladas durante até duas horas, para alegria de sua turma. A escolha do nome Sobral foi de um bairrismo orgulhoso, mas essa seria uma das raras concessões de Antonio à cidade natal ao longo de toda a vida.

Além de bem-humorado, Frei Sobral era atento, disciplinado, fraterno e cortês. Recitava capítulos inteiros da Regra de Vida (espécie de Constituição dos capuchinhos), todo o Testamento de São Francisco, longas passagens de Os Lusíadas, de Camões. Mostrava controlada tendência para o rigorismo (as penitências e os jejuns impostos pela ordem). Encarava o cilício quase com indiferença. “Na época, nós noviços usávamos o cilício (um cinto de arames de agarração aracnídea entre o braço e o hábito) toda sexta-feira, das 5h30 até as 7h30. Casualmente, noviços notavam que ele continuava usando o penoso cilício “pelo resto da manhã ou mesmo do dia”, conforme lembrou um rapaz de Quiterianópolis, cidadezinha no centro oeste do Ceará, e que se tornaria dos seus mais constantes colegas: Hermínio Bezerra. Apaixonado por etimologia, Hermínio estava desde os 11 anos na vida religiosa e conhecera Frei Sobral ainda como frequentador de cursos externos em Fortaleza, entre 1962 e 1963.

Frei Sobral tinha notabilíssimo senso de humor. Criava textos parodiando os fatos dos Fioretti de São Francisco (“causos” religiosos misturando ficção e realidade), mas colocando os próprios colegas noviços como personagens. Exímio versejador, ele conseguia improvisar repentes por duas ou três horas seguidas, em tardes de passeio. Tinha vários traços que o distinguiam, segundo seu amigo Hermínio: inteligência, comunicação, alegria e bom humor, e contribuía para alegrar o grupo, com repentes rimados e tiradas cômicas. Escrevia textos com grande facilidade. Algo da produção que o distinguiria no futuro já estava delineado ali mesmo, na vida monástica.

A vida anterior em Sobral, a fase da infância do novo frade, ao contrário do que certos relatos biográficos contariam três décadas depois, não era adornada com sonhos de se tornar artista, repentista ou poeta. A cidade tinha pouco mais de 30 mil habitantes e toda a infância do rapaz foi gasta na tranquila Rua Santo Antonio, sem prédios até hoje, ainda mantendo suas árvores de ficus e benjamins nas praças, ainda ecoando música de igreja dos seus templos, além de rádios predominantemente musicais.

Em Sobral, “entroncamento de todas as estradas que levam para o extremo norte”, as experiências não foram decisivas. Ele considerava que ainda não tinha idade para o sexo. Mas frequentava a “zona” por conta de um grande saxofonista que se apresentava por lá. Ou seja: ia pela música, fugindo da severa vigilância de seu Otávio, seu pai. Descrevia o pai como “alto, tranquilo e forte como um sertanejo. Minha mãe, diferente, muito branca, traços afilados, o oposto do sertanejo típico. Meus avós e bisavós tinham certa ascendência holandesa”. O avô tinha uma bodega que vendia tecidos – cáqui Floriano, mescla, pano de saco, farinha, fumo e “uma outra fazenda que até hoje não sei o que é, verde-oliva”. O velho avô tocava flauta, os tios eram seresteiros e, “naturalmente, morreram disso”, bromeou, certa vez.

A rotina no convento era dura. O noviço que quebrasse algum objeto na cozinha se via obrigado a amarrar os cacos desse objeto num cordão, dependurando-os no pescoço e indo até a sala do “capítulo”, geralmente repetindo o ritual de beijar os pés dos superiores e pedindo perdão por ter quebrado o prato. Essa penitência muitas vezes se constituía em ficar de joelhos, até decorar determinados capítulos da Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis. Às sete horas da manhã os noviços assistiam à missa. Depois, havia os cantos gregorianos e em seguida o café da manhã. Depois disso, recolhiam-se aos seus quartos em profundo silêncio.

Um dissidente da ordem daqueles tempos descreveu a árdua rotina do noviciado, um tipo de provação medieval. Segundo ele, quando se entra no convento da Ordem Capuchinha é preciso entregar tudo: os pertences pessoais, os documentos, trocar de nome e desistir da própria personalidade. Daí em diante, o fradinho age como autômato. Não tem vontade própria, nem lhe é permitido o direito de exprimir seus pensamentos. Durante as refeições, não se podia falar uns com os outros. Às sextas-feiras praticava-se jejum absoluto.

Guaramiranga, apesar da austeridade, tinha fama de colônia de férias em meio a essa realidade. Frei Domingos Teixeira Lima, capuchinho que estudou em Messejana de 1953 a 1957, descreveu uma realidade menos azeda em um belo texto sobre as férias dos noviços capuchinhos.

“O que catalizava as atividades dos seminaristas durante as férias era o passeio à praia da Jardilina. Na véspera, alguns passavam o dia todo na cozinha com Frei Jesualdo Rios preparando sanduíches, pastéis… Dormia-se mais cedo para se despertar a uma hora da manhã. Após breve asseio, rezava-se em latim, fazia-se breve refeição e a gente partia. Cada um recebia dois cocos verdes para levar. Nas sacolas alguns conduziam sorrateiramente garrafas de gororoba – suco natural de caju enterrado no chão que fermentava, virando vinho de caju.”

A vida monástica atraiu o inquieto Frei Sobral por conta de seu debate intelectual, introspectivo e também público.

Quando concluiu que não tinha vocação para a vida religiosa, mesmo considerado um estudante exemplar, ele foi até o superior, Frei Pacífico, um homem generoso, mas seco nos modos. O frade já sabia do que se tratava, já tinham preparado seu espírito. “Você já pensou bem?”, disse o superior. Frei Sobral respondeu, sem baixar os olhos: “Já pensei sim, e já decidi”. Frei Pacífico se manteve imperturbável: “Pois então pode ir!”, sentenciou. Em 14 palavras, terminava um período de três anos no coração da Serra.

Frei Pacífico era seu diretor de estudos, a quem ele tinha a obrigação de comunicar a decisão. Hoje, se pode sair da vida monástica com serenidade, mas naquela época era um drama. Os orientadores, como alguns ramos evangélicos de hoje em dia, sustentavam que aquilo era tentação do demônio, tibieza, falta de oração. Insistiam para que os dissidentes pensassem melhor. Isso significa que a atitude de Frei Pacífico, embora parecesse dura, foi inusitada para a época.

Depois que saiu, por muitos anos, Frei Sobral passou a usar seu verdadeiro sobrenome como cartão de visitas, mas colocava um acento circunflexo na letra O. Pronunciava assim: Belchiôr. Antonio Carlos Belchior. Ele voltaria numerosas vezes aos conventos de Fortaleza, Sobral e Teresina para conversar com ex-colegas e sempre demonstrava a mesma alegria e cordialidade de quando foi frade. Sempre descrevia ideias e planos grandiosos. A última vez que viu Hermínio, em 1996 ou 1997, falou ao amigo de um grande projeto de “se isolar para traduzir, em linguagem popular, a Divina Comédia de Dante Alighieri”.

Frei Hermínio lembra, ainda hoje, alguns motes das improvisações de Belchior, o que lhe sugere que ele já tinha escrito, ali entre os capuchinhos, pelo menos uma de suas principais canções, Galos, Noites e Quintais. Ou seja: Belchior gestou no claustro os versos que só gravaria em 1977, no disco Coração Selvagem, 13 anos depois.

Quando eu não tinha o olhar lacrimoso, que hoje eu trago e tenho/ Quando adoçava meu pranto e meu sono, no bagaço de cana do engenho/ Quando eu ganhava esse mundo de meu Deus, fazendo eu mesmo o meu caminho, por entre as fileiras do milho verde que ondeia, com saudade do verde marinho/ Eu era alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais/ Como um galo, quando havia… quando havia galos, noites e quintais/ Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo o mal que a força sempre faz/ Não sou feliz, mas não sou mudo: hoje eu canto muito mais.

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