No dia 2 de fevereiro de 1971, uma terça-feira, o New York Times tinha as atenções voltadas para a nova missão lunar da Nasa. A capa noticiava que os astronautas da Apollo 14 fariam dali a poucos dias o terceiro pouso no satélite da Terra, fato acompanhado com atenção pelo público americano depois do fiasco da missão Apollo 13. Dedicado ao noticiário internacional, o primeiro caderno destacava as tensões no Oriente Médio e o bombardeio a uma agência bancária em Gaza. Na página 4, uma notícia sobre o endurecimento da ditadura brasileira, assunto que, represado pela censura em vigor no país, começava a despontar na imprensa estrangeira. “Uma garota pede pela libertação de seus pais, vítimas da repressão da polícia do Brasil”, dizia a manchete.
A reportagem, assinada pelo correspondente americano Joseph Novitski, começava assim: “Há onze dias, uma garota brasileira de 15 anos assistiu ao seu proeminente pai, com sua cabeça coberta por um capuz preto, ser levado de sua casa por agentes de segurança não identificados do governo. No dia seguinte, ela foi encapuzada e levada com sua mãe para um quartel da polícia do exército no Rio de Janeiro.” Só no segundo parágrafo Novitski revelava estar falando de Eliana Paiva, uma das filhas do deputado cassado Rubens Paiva.
Foi a primeira menção ao desaparecimento de Paiva de que se tem notícia em um veículo estrangeiro. Como sabem os espectadores de Ainda estou aqui e leitores da obra homônima de Marcelo Rubens Paiva, Eliana foi liberada pelos militares antes de sua mãe, Eunice, que permaneceu presa por vários dias, submetida a interrogatórios violentos. Aconselhada por amigos da família, a adolescente escreveu uma carta ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) denunciando o que havia se passado. O órgão, criado pelo governo deposto de João Goulart, fora recém-habilitado pelo general Emílio Garrastazu Médici, que pretendia com isso apaziguar os ânimos da comunidade internacional. Os militares vinham sendo pressionados, sobretudo pelo presidente americano Richard Nixon, a abrandar a perseguição política.
Novitski, que já sabia do sequestro do casal Paiva havia alguns dias, usou a carta como gancho noticioso. Os editores do New York Times aceitaram a pauta por se tratar de um pedido formal de clemência feito a uma instituição oficial – fonte que, aos olhos do jornal, tinha mais credibilidade do que os relatos feitos até então por amigos de Rubens Paiva. O mundo, assim, ficou mais bem informado sobre a gravidade do que ocorria no Brasil.
Hoje com 84 anos, Novitski vive em São Francisco, sua cidade natal, na costa Oeste dos Estados Unidos. Conversamos pela primeira vez em 2020, quando o entrevistei virtualmente para minha pesquisa de mestrado na Universidad Autônoma de Madri, sobre a cobertura do New York Times no Brasil durante os primeiros anos da ditadura. Voltamos a nos falar no último dia 3, depois que o filme de Walter Salles recolocou o assassinato de Rubens Paiva na pauta do dia. Novitski disse ainda não ter assistido ao filme. Fluente em português, conversou comigo por vídeochamada enquanto balançava num barco na Baía de São Francisco.
Novitski – conhecido pelos mais próximos como Joe – foi um dos correspondentes mais profícuos daquele período. Antes de virar repórter, serviu como oficial de linha na Reserva Naval dos Estados Unidos. Graças a um programa de bolsas da Marinha americana, estudou jornalismo e saiu das Forças Armadas. Na juventude, morou por três anos no Peru e viajou com frequência a São Paulo acompanhando o pai, representante de um banco nova-iorquino. Mais tarde, graças a essa familiaridade com o Brasil, foi contratado pela Associated Press para trabalhar no Rio de Janeiro. Quatro anos depois, em 1969, o New York Times o convidou para chefiar a sucursal brasileira do jornal, também no Rio, substituindo o correspondente Paul L. Montgomery.
O veículo alocava um repórter por vez no país, todos acompanhados de uma mesma jornalista brasileira, que começou como estagiária e foi efetivada em 1968. Antes de Montgomery, o chefe da sucursal foi Juan de Onís, que, assim como Novitski, já tinha vínculos com o Brasil. Sua mãe, Harriet de Onís, foi uma tradutora amiga de Guimarães Rosa que ajudou a difundir nos Estados Unidos as obras de Gilberto Freyre e Jorge Amado.
Mesmo depois de ter deixado a sucursal, em 1966, Onís continuou a escrever sobre o Brasil, apurando à distância o que acontecia na ditadura. Atuou em dobradinha com Novitski, que emplacou reportagens importantes em um dos períodos mais conturbados do regime. Foi ele quem noticiou o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, a escalada da censura e a morte do estudante Chael Charles Schreier, em 1969 – fato que confirmou pela primeira vez a prática de tortura pelo aparato oficial. Novitski era minucioso nas descrições que fazia em suas reportagens. Como Onís, buscava lides pouco óbvios, com alguma ambição literária.
Novitski chegou ao Brasil poucos meses depois de o New York Times noticiar, em dezembro de 1968, o embrutecimento da ditadura. Eram os tempos do Ato Institucional Nº 5, decretado naquele mês pelo presidente militar Costa e Silva. O jornal publicou uma reportagem começada no Rio de Janeiro, mas finalizada em Nova York, que descrevia o momento em que Montgomery, tentando ditar o texto por telefone à redação em Nova York, teve a ligação cortada por militares. Dias depois, Onís assinou a primeira reportagem da imprensa americana que, já no título, caracterizava o governo brasileiro como uma ditadura militar.
Novitski com uma criança nos ombros, em foto tirada em 1968, pouco antes de ser enviado ao Brasil pelo New York Times (Crédito: Acervo pessoal)
Os censores, em se tratando de veículos estrangeiros, tinham algum comedimento. Uma afronta a um jornalista de outro país poderia acarretar crises diplomáticas e manchar a reputação do governo. Ainda assim, acontecia. Novitski lembra que, de tempos em tempos, um tenente-coronel à paisana bloqueava a máquina de Telex compartilhada pelo New York Times e por outras agências de notícias instaladas na Avenida Rio Branco, perto da Praça Mauá, no Centro do Rio. Os militares também pressionavam um stringer (jornalista freelancer) para que passasse informações à inteligência do Exército. Ameaçavam-no dizendo que, se não colaborasse, o governo não renovaria seu visto. Como o stringer era um americano casado com uma brasileira, a ameaça de deportação não era pouca coisa.
A reincidência desses episódios ajudou a sensibilizar o New York Times. Novitski diz que, por muito tempo, foi difícil vender aos editores pautas sobre episódios de tortura e desaparecimento. O jornal temia publicá-las sem provas contundentes. A notícia do assassinato de Chael Schreier, por exemplo, foi num primeiro momento engavetada, segundo Novistki. Pouco depois, o jornal voltou atrás e resolveu publicá-la. O jornalista diz ter ficado sabendo que grupos católicos brasileiros, especialmente da ordem dominicana, estavam enviando cartas relatando o que ocorria no país a organizações protestantes em Nova York, que, por sua vez, pressionavam o jornal. A principal fonte de informações desses católicos era o PCB clandestino, que tinha conhecimento dos casos por manter contato com as famílias dos presos. “Os verdadeiros repórteres eram aqueles dominicanos”, me disse Novitski.
Das lições que aprendeu cobrindo a ditadura, o americano destaca duas: não falar diretamente com as famílias de vítimas do Estado e não identificar os veículos que sofreram censura. A primeira regra Novitski absorveu depois de entrevistar em Brasília a mãe de uma jovem que, como tantos naquela época, havia sido presa sem acusações. Aos olhos do repórter, publicar o depoimento daquela mulher poderia gerar comoção pública e fazer com que os militares soltassem sua filha. A mãe, escolada no assunto, objetou: disse que a reportagem tornaria mais difícil que a menina voltasse com vida.
A segunda lição veio em janeiro de 1970, quando Novitski publicou uma nota curta no New York Times relatando que um tenente-coronel havia censurado uma edição da Veja – cena que ele mesmo presenciou. O americano conta que Mino Carta, editor da revista, o repreendeu pela atitude: “Você pode pegar o próximo avião para o exterior, mas nós ainda teremos que viver aqui, com as nossas famílias.”
O desaparecimento de Rubens Paiva também foi mencionado pelo Le Monde, mas com menos destaque. Em 8 de fevereiro de 1971, o correspondente francês Marcel Niedergang publicou uma reportagem na qual relatava o “refinamento e crueldade” com que presos políticos vinham sendo tratados no Brasil. Entre muitos nomes, eram citados os Paiva.
Niedergang, antecipando uma tendência do jornalismo contemporâneo, acumulava tarefas: era correspondente não só de Brasil, mas de toda a América Latina e Península Ibérica. Mais tarde, cobriu in loco o golpe que depôs Salvador Allende no Chile, em 1973, e se tornou um autor prestigiado na França. Seus livros mais conhecidos tratam da situação do Congo durante a guerra pela independência (Tempête sur le Congo) e da história da América Latina, remontando até o período colonial (Les 20 Amériques latines).
Em agosto de 1971, o Le Monde voltou a mencionar Rubens Paiva, en passant, numa reportagem de pouca expressão. Seu desaparecimento só foi comentado novamente em 1979, quando se discutiam os termos da Lei da Anistia. Outros veículos tiveram produção errática no Brasil daquela época. É o caso do Washington Post, do Los Angeles Times, do Baltimore Herald e – curiosamente – do Christian Science Monitor, veículo fundado pela Church of Christ, Scientist que se dedica ainda hoje ao jornalismo internacional, “livre das pressões corporativas”. Também já atuavam no país as grandes agências de notícias, notadamente Reuters, Associated Press e United Press International.
Aqui e ali, todos esses veículos fizeram bom jornalismo, recorrendo a stringers e correspondentes. Nenhum deles, porém, foi constante como o New York Times. O jornal americano dispunha de estrutura e orçamento à altura da tarefa. Contava com jornalistas em Buenos Aires e na Cidade do México, de modo que não havia um único repórter cobrindo um vasto continente. Durante os 21 anos de ditadura militar, o veículo manteve ao menos um jornalista fixo no Brasil, responsável pelas notícias locais.
A reportagem sobre Rubens Paiva, em fevereiro de 1971, detalhou de forma inédita os métodos de tortura dos militares. Novitski relatou que advogados, empresários, estudantes e ex-políticos vinham sendo “agredidos em interrogatórios, pendurados de cabeça para baixo e contorcidos com choques elétricos aplicados a partes sensíveis de seus corpos molhados”. A reportagem termina com uma citação à carta de Eliana: “Eu não sei onde os meus pais estão, e quero que eles voltem para mim e para os meus irmãos.”
Pouco tempo depois, em 5 de abril, Novitski emplacou uma chamada na capa do jornal tratando da repressão desenfreada no Brasil. Mais analista do que repórter, constatou que a violência se tornara corriqueira, sempre justificada pelos militares como uma “ferramenta necessária” para reconstruir o país. “Do jeito que as coisas estão agora, agentes do governo podem, como fizeram no último dia 20 de janeiro no Rio de Janeiro, levar em custódia de sua casa um engenheiro civil e depois negar oficialmente ter qualquer conhecimento sobre sua localização. O engenheiro, Rubens B. Paiva, ainda está desaparecido e, se teme, pode estar gravemente ferido se não morto.”
Em 12 de agosto, Novitski voltou a escrever sobre Paiva. Lembrou que, um mês depois do sequestro, o então ministro da Justiça Alfredo Buzaid havia garantido à família do ex-deputado que ele estava vivo e sob custódia do Exército, que o investigava por atos de “subversão”. Seria, segundo Buzaid, “solto logo”. Naquele distante mês de agosto, Paiva continuava desaparecido, e o CDDPH arquivou a investigação aberta a pedido de Eliana.
Novitski ainda cobriu os sequestros de embaixadores, os desacordos entre Nixon e Médici e questões menores da política brasileira. Revelou ao mundo a história de Nancy Mangabeira Unger, “jovem mulher americana” (ela na verdade é brasileira com dupla cidadania) que se tornou guerrilheira e acabou presa em 1970. No segundo dos cinco livros que escreveu sobre a ditadura, Elio Gaspari conta que, devido à sua cobertura crítica do regime militar, Novitski foi apelidado de “cão mentiroso” por um articulista do Correio Braziliense que simpatizava com os generais.
Novitski encerrou a carreira jornalística em 1975, não por escolha própria. “Meu pai estava doente e minha mãe me pediu para que eu cuidasse dele.” Assim, aos 35 anos, o ex-correspondente se mudou para Bogotá, onde vivia o pai. Passou a se dedicar à agricultura e ao mar (desde jovem, velejava em São Francisco, e recentemente se tornou adepto do remo). Escreveu dois livros: A Vineyard Year, sobre o vinhedo que administrou durante oito anos na Califórnia, publicado em parceria com o fotógrafo Nick Pavloff, e Wind Star – The building of a sailship, sobre o primeiro navio de cruzeiro moderno a vela.
Em sua temporada no Brasil, Novitski, embora americano, integrou a equipe nacional de vela brasileira na Fastnet Race, uma regata offshore bienal. Venceu a disputa em 1973, com a embarcação Saga, comandada pelo empresário norueguês Erling Lorentzen, fundador da Aracruz Celulose. Nenhum outro barco brasileiro se sagrou vitorioso desde então.
Quando conversamos, Novitski evocou reminiscências do Brasil. Contou-me de seu casamento com a jornalista argentina Isabel Montero, do tempo em que morou em Búzios e das viagens ao Nordeste e à Amazônia. Disse que às vezes ainda folheia o New York Times e sente falta do estilo de texto mais “direto” de outrora (regra que ele mesmo nem sempre seguia à risca). E reclamou: “Uma das coisas mais absurdas da ditadura foi que tentaram acabar com as feiras de rua. Diziam que eram sujas.” Novitski gostava de tomar caldo de cana.