No alvorecer de 1988, um problema ambiental tirava o sono dos brasileiros, revoltava a sociedade e era alvo de campanhas na televisão: a caça ao jacaré. A alta nos preços do couro do bicho na década de 1980 motivou um lucrativo negócio de abate ilegal no Pantanal mato-grossense. Quadrilhas massacravam centenas de milhares de animais por ano para abastecer o mercado de moda de luxo no Japão, na Europa e nos Estados Unidos.
Os coureiros, como eram conhecidos esses criminosos, não pecavam pela sutileza. A tevê mostrava cenas chocantes de praias no Pantanal repletas de carcaças despeladas em putrefação – a carne do jacaré não era aproveitada. O acesso dos bandidos às fazendas pantaneiras, cujos rios abrigavam os répteis, era obtido via intimidação armada quando a cooptação falhava. E os agentes da lei eram recebidos a bala quando investiam contra as operações noturnas de caça. Mais de um foi morto nessas escaramuças. Segundo Ângelo Rabelo, policial militar do Mato Grosso do Sul que passou a maior parte da década trocando tiros com coureiros (e um ano de molho por um balaço no ombro), o número de jacarés abatidos nos anos 1980 pode ter chegado a 5 milhões.
O Brasil então avançava rumo à retomada plena da democracia. A ditadura militar havia colapsado poucos anos antes, e o governo de José Sarney precisava lidar com a hiperinflação e a dívida externa, enquanto o Congresso constituinte eleito em 1986 tratava de enterrar a ordem constitucional legada pelos militares. Em meio a essa ebulição nacional, não havia muito espaço para preocupação com outra herança maldita da ditadura – a devastação da Amazônia. A floresta estava basicamente fora do radar do governo e da sociedade.
O inverno de 1988 trouxe dois acontecimentos que mudaram esse cenário e acabaram recolocando, para sempre, o bioma na lista de preocupações do Brasil. O primeiro foi um fenômeno aparentemente sem relação nenhuma com a floresta: uma onda de calor que sacudiu o Hemisfério Norte naquela estação, o verão setentrional, elevando as temperaturas em Nova York acima de 37oC durante várias semanas. O fenômeno levou o Senado americano a organizar uma audiência pública na qual o cientista da Nasa James Hansen declarou que havia “99% de certeza” de que o aquecimento da Terra não era resultado de variações naturais do clima, mas o efeito detectável da poluição resultante de atividades humanas. O jornal The New York Times levou o depoimento à sua capa no dia seguinte, com uma manchete que ficaria famosa: “O aquecimento global começou.”
O segundo evento aconteceu em São José dos Campos, cidade do interior paulista onde fica a sede do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Naquele ano, imagens de satélite produzidas por um discreto pesquisador chamado Alberto Setzer chocaram a opinião pública e a comunidade científica ao darem a dimensão do desastre das queimadas que ocorriam em Rondônia na esteira do processo de ocupação disparado pelo asfaltamento da rodovia BR-364.
Nascido em São Paulo em março de 1951, Alberto Waingort Setzer era um sujeito muito magro e formal, desses tipos que nunca devem ter falado um palavrão na vida. A cabeleira ruiva da juventude deu lugar a tufos grisalhos desgrenhados, que lhe conferiam um ar de cientista de filme. Ele próprio filho de um cientista ambiental – o pedólogo russo José Setzer (1909-1983), que mapeou os solos do estado de São Paulo e protestou contra sua degradação –, Alberto trabalhou a vida inteira no Inpe, e por mais de duas décadas dividiu seu tempo entre dois ambientes extremos: a Amazônia e a Antártida. Engenheiro de formação, ele foi um cientista observacional, que torcia o nariz para grandes elucubrações e gostava de se ater ao que dizem os dados. Pilotou por 27 anos o módulo de meteorologia da Estação Antártica Comandante Ferraz e entrou em polêmicas com colegas por não enxergar tendência de aquecimento global naquele ponto do continente (hoje se sabe que, embora o registro em Ferraz seja de fato cheio de ruído, a região onde a estação está, a Península Antártica, é um dos lugares que mais esquentam em todo o mundo). Críticos já o chamaram, meio brincando, de “cético do clima”, mas o apodo era injustificado: Setzer não apenas formou cientistas climáticos de primeira linha, como seus dados sobre fogo na Amazônia ajudaram a ciência a entender o peso do desmatamento tropical no aquecimento da Terra.
O pesquisador paulistano esbarrou nas queimadas por acaso. Como muitas descobertas da ciência, esta começou com uma tentativa banal de cumprir uma ordem do chefe.
Em 1982, o presidente americano Ronald Reagan fez uma visita ao Brasil. Reuniu-se com o general João Figueiredo e, num jantar em Brasília, propôs um brinde “ao povo da Bolívia” – gafe que entrou para o folclore político. Entre os documentos assinados por ele junto a Figueiredo estava um memorando de cooperação científica. Resolvida a papelada, era preciso dar forma a essa cooperação. Por isso, em 1983, o chefe do departamento de meteorologia do Inpe, Antônio Divino Moura, deu a Setzer, recém-retornado de um doutorado nos Estados Unidos, a tarefa de propor temas de projetos de pesquisa que pudessem ser feitos em parceria com os americanos.
Na época, a Nasa vinha realizando uma série de medições da troposfera no mundo inteiro, embarcando sensores em aviões para caracterizar a química da camada inferior da atmosfera. Setzer, que havia estudado plumas de poluição industrial no doutorado, sugeriu que o Inpe se engajasse nessas missões e que uma delas viesse para a Amazônia. Nos anos 1970, o holandês Paul Crutzen (1933-2021) havia feito estudos pioneiros sobre a poluição causada pela queima de biomassa no Brasil. Mas ele olhou principalmente para o cerrado e ignorou completamente o gás carbônico. A Amazônia era tida como um lugar prístino e de ares limpíssimos. “O objetivo do trabalho era amostrar, caracterizar, a atmosfera mais pura do mundo, que supostamente seria aquela sobre a floresta amazônica intacta”, me disse Setzer, numa entrevista em 2020.
Depois de um pequeno calvário burocrático para permitir que o turboélice Electra da Nasa, cheio de gringos e instrumentos sofisticados, fosse autorizado a sobrevoar a região amazônica em plena ditadura, as missões do chamado GTE-Able2A (Global Tropospheric Experiment – Atmospheric Boundary Layer/Amazon) tiveram início em julho de 1985. E de cara os cientistas tomaram um susto: a tal “atmosfera mais pura do mundo” tinha concentrações elevadíssimas de poluentes como monóxido de carbono, dióxido de carbono, ozônio e particulados. Em alguns sobrevoos, feitos entre mil e 4 mil metros de altitude, os pesquisadores puderam detectar – e fotografar – uma névoa seca sinistra, parecida com as inversões térmicas vistas em cidades como São Paulo e Rio. “O pessoal até achou que tinha problema de calibração, alguma coisa errada, que não se estava entendendo os dados”, disse o pesquisador do Inpe.
Ninguém entendeu aquilo. A explicação veio num golpe de sorte. Antes das missões, Setzer propôs ao Inpe que, enquanto o avião da Nasa sobrevoasse a floresta, uma antena receptora de satélites em Cachoeira Paulista (SP) gravasse imagens do satélite meteorológico americano Noaa-9. Um cientista da Nasa chamado Compton James “Jim” Tucker vinha usando um dos sensores daquele satélite, chamado “radiômetro avançado de altíssima resolução” (AVHRR), para observar vegetação. “Ele não era muito avançado, nem tinha alta resolução coisa nenhuma”, relembra Tucker. Mas era bom para detectar infravermelho médio – a faixa do espectro eletromagnético na qual o calor das queimadas emite radiação. Setzer não sabia disso: decidiu gravar as imagens como precaução, sem ter nada especial em mente. “Imaginei que pudessem indicar nuvens ou trajetórias de massas de ar”, disse o pesquisador. “É aquela história: você atira no que vê e acerta o que não vê.”
As imagens de satélite permitiram descobrir de onde vinham a névoa seca e os altos índices de poluição. Analisando-as, Setzer e seu aluno Marcos da Costa Pereira descobriram que as emissões estranhas sobre a floresta tinham origem em extensas queimadas que aconteciam a centenas de quilômetros do trajeto do avião Electra, em Mato Grosso e no Sul do Pará: era gente seguindo à risca o desenvolvimentismo da ditadura e botando a floresta amazônica abaixo. Em algumas das imagens, era possível detectar mais de 1.200 focos de incêndio e nuvens de fumaça cobrindo áreas de até 90 mil km² – quase o tamanho do estado de Pernambuco.
Em fevereiro de 1986, um seminário foi organizado em São José dos Campos para analisar os dados do GTE-Able-2A e a imprensa começou a noticiá-los. Pressionado por Brasília a “não entrar em polêmica”, o Inpe correu para abafar a história (nada muito diferente do que aconteceria nas décadas seguintes, com outros presidentes). A poluição detectada sobre a Amazônia, declarou-se, vinha das indústrias do mundo desenvolvido. O diretor do instituto, Marco Antonio Raupp (1938-2021), cancelou uma entrevista coletiva que seria realizada pelos cientistas no encerramento do encontro, e o coordenador brasileiro do experimento, Luiz Molion, correu a declarar ao jornal O Globo que “não há nada de alarmante nas conclusões”, porque “as queimadas não são novidade para o Inpe”.
Convencido de que seus dados apontavam um problema real, Setzer foi a Brasília procurar o IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal), agência do governo que era responsável, em tese, por proteger as florestas. Carregando as imagens de satélite debaixo do braço, foi parar na sala do chefe da comunicação do instituto, Aylê-Salassiê Quintão, um mineiro com nome de imperador etíope. “O Setzer apareceu na hora do almoço, não tinha ninguém da diretoria lá, e me mostrou o material. Fiquei estarrecido”, relembra Quintão. O jornalista enxergou nas fotografias potencial para ilustrar uma campanha contra queimadas e deu um jeito de mandar os dados do Inpe para a imprensa antes de mostrá-los à chefia.
Sem muita empolgação, o IBDF deu à comunicação o aval para fechar um convênio com o Inpe. E foi assim, sem nenhum alto propósito científico e pensando mais na divulgação do que na ciência, que o Brasil começou a monitorar o fogo na Amazônia, em 1987.
Naquele mesmo ano, para alegria de Aylê Quintão, as imagens feitas pelo Inpe de queimadas na Amazônia começaram a aparecer esporadicamente nos jornais. Estava na moda falar da atmosfera, porque a camada de ozônio era o assunto do momento. Em setembro de 1987, durante a temporada de queimadas no Brasil, os países-membros da ONU se reuniram em Montreal, no Canadá, para assinar um tratado internacional proibindo os clorofluorcarbonos, gases de refrigeração que destruíam esse manto protetor invisível da Terra. A decisão drástica provocou certo agito na imprensa: embora o buraco da camada de ozônio pairasse sobre a distante Antártida, a perspectiva de pegar câncer de pele tomando sol era assustadora o suficiente. Todos passamos a usar filtro solar “contra radiação UV”, como gritavam os rótulos (como se houvesse outra radiação a bloquear) e a comprar geladeiras e desodorantes “CFC-free”, aqueles com o pandinha estampado.
O Protocolo de Montreal foi um sucesso estrondoso do multilateralismo, com o bloco capitalista, o bloco socialista e o Terceiro Mundo se juntando pela primeira vez para agir com base em evidências científicas de uma ameaça ambiental. A ação dos CFCs sobre o ozônio havia sido teorizada nos anos 1970 por Paul Crutzen – o pioneiro dos estudos da poluição por queimadas no Brasil –, pelo mexicano Mario Molina e o americano Frank Sherwood “Sherry” Rowland, que em 1995 dividiriam o Prêmio Nobel pela descoberta. O buraco antártico foi detectado apenas em 1985, e dois anos depois os CFCs foram banidos.
Também em 1987, uma comissão de especialistas designada pela ONU e chefiada pela premiê norueguesa Gro Brundtland publicou um aguardado relatório lançando um novo conceito: o desenvolvimento sustentável. Essa ideia, difundida pelos quatro cantos do mundo desde então, apregoa que as necessidades das gerações presentes precisam ser satisfeitas sem que prejudiquem a vida das gerações futuras. Queimadas, caça predatória e depleção do ozônio eram claramente a antítese do desenvolvimento sustentável. Mas o aquecimento global ainda era uma questão restrita aos círculos acadêmicos quando o relatório Brundtland foi publicado, em outubro, e o Brasil ainda não era reconhecido como vilão ambiental do planeta. Essa situação mudaria drasticamente no ano seguinte.
Em 27 de maio de 1988, enquanto os telespectadores brasileiros choravam de pena dos jacarés no Pantanal, o Inpe publicou o relatório de seu convênio com o IBDF. Foi um choque. Os satélites mostravam que, de julho a outubro de 1987, no chamado “verão” amazônico, nada menos do que 200 mil km² de Amazônia Legal (o equivalente a um Paraná) haviam queimado em 170 mil focos de incêndio (sendo mais de 10 mil deles em um único dia, 2 de setembro). A conta incluía áreas de cerrado. Desses 200 mil km², 40% correspondiam a matas recém-derrubadas.
Os números assustadores tinham explicação. Naquele ano, temendo mudanças na legislação ambiental e fundiária que viriam com a nova Constituição, fazendeiros correram para desmatar e queimar tudo que podiam. Proporcionalmente, o estado mais afetado era Rondônia, com 19% de sua área tomada pelos focos de calor. O Inpe informava que os incêndios haviam causado o fechamento de aeroportos em Cuiabá, Porto Velho e Rio Branco, emitindo 518 milhões de toneladas de carbono, e que sua fumaça se espalhava por até 4 mil km de distância. E concluía com uma profecia algo sensacionalista, mas que capturava perfeitamente o zeitgeist: “Em futuro breve a comunidade científica internacional deverá relacionar as queimadas com alterações na composição química e do clima do planeta, e muito possivelmente da camada de ozônio e do ‘buraco de ozônio’ na Antártida.” O mundo acabava de ganhar mais um fantasma ambiental para lhe assombrar.
Os dados do Inpe deram início a uma tempestade de mídia que começaria naquele mês e não pararia mais: afinal, a temporada de queimadas de 1988 estava apenas começando, e não havia nenhum motivo para imaginar que, na ausência de qualquer mudança econômica ou ação do governo, o problema fosse estar menos grave do que no ano anterior.
A jornalista holandesa Marlise Simons, que na época era correspondente do New York Times no Brasil e já vinha acompanhando o trabalho dos cientistas do Inpe, farejou notícia. Em 12 de agosto, menos de dois meses depois do depoimento de James Hansen ao Senado americano, a primeira página do Times trazia em seu canto inferior direito uma chamada assinada por Simons com um título que não tinha como ser ignorado: “Vastos incêndios na Amazônia feitos pelo homem, ligados ao aquecimento global.” A reportagem ocupava metade da página 6 do principal jornal do mundo e trazia os dados alarmantes de 1987 e uma foto de satélite de Rondônia e Mato Grosso. “À noite, rugindo e vermelha, a floresta parece estar em guerra”, relatou a repórter.
As ligações com o “efeito estufa”, a nova paranoia de estimação dos americanos, eram imediatas. Jim Tucker, o cientista da Nasa, foi entrevistado pelo jornal e falou em estimativas segundo as quais a devastação da floresta respondia por 10% de todo o gás carbônico lançado pelos humanos no ar. “Ninguém sabia da extensão das queimadas”, relembra o cientista. “O Hansen havia começado a conversa sobre aquecimento global e todo mundo sabia que havia uma componente de uso da terra. Mas o que se assumia era que ao longo de dez, quinze, vinte anos as árvores [das áreas desmatadas] iriam se decompor e liberar o gás naturalmente. Então o Alberto apareceu e mostrou as queimadas e as pessoas entenderam que essa emissão poderia acontecer muito rápido.”
Semanas depois, o Times voltou à carga com um editorial duro contra o Brasil, repetindo que o fogo na floresta representava um décimo de todo o CO2 do mundo, que 17% de Rondônia já estavam desmatados e que a culpa era da BR-364. O texto citava, ainda, um pesquisador do WWF chamado Thomas Lovejoy que propunha uma solução “imaginativa”: a troca de parte da dívida dos países subdesenvolvidos pela preservação da natureza. A sugestão foi a primeira cutucada nos brios soberanistas do governo de José Sarney.
A atenção dada às queimadas pelo Times despertou na imprensa brasileira o sentimento universal mais poderoso do jornalismo: a inveja. No começo de setembro, a Folha de S.Paulo despachou para Rondônia o repórter carioca Fernando Gabeira, ex-guerrilheiro e ex-candidato a governador que dois anos antes havia fundado o Partido Verde juntamente com outros ex-exilados políticos e artistas. Gabeira e o fotógrafo Jorge Araújo, outra estrela do jornal, produziram uma série de reportagens mostrando como a incúria, a ganância, a falta de assistência técnica e o abandono pelo governo dos assentados no eixo da BR-364 estavam fazendo o estado arder em chamas. O IBDF dizia estar de mãos atadas, com apenas trezentos fiscais para vigiar os quase 5 milhões de km² da Amazônia Legal.
Naquele mesmo setembro, auge da temporada de fogo, com o aeroporto de Porto Velho fechando constantemente por causa da fumaça, uma segunda pancada internacional atingiu o Brasil. E de um lugar a princípio insuspeito: o Banco Mundial.
A mesma instituição que havia ajudado a causar a crise em Rondônia, financiando a pavimentação da BR-364 no final da ditadura, agora aparecia cheia de moral para dar lições ao governo civil brasileiro. Um relatório produzido por Dennis Mahar, um técnico do departamento de meio ambiente do banco, afirmava sem meias palavras que os incentivos governamentais então dados à atividade agropecuária, em especial ao gado, eram a causa da destruição da Amazônia. Publicado internamente pelo banco em junho de 1988, o relatório de Mahar chegou aos jornais brasileiros quase quatro meses depois. Ele fazia um retrato impiedoso das políticas de incentivo do governo à produção na Amazônia e chamava a pecuária na região de “intrinsecamente antieconômica”.
Mas o que realmente incomodou o governo brasileiro no relatório, e moveu placas tectônicas, foi uma conta apresentada pelo pesquisador sobre o desmatamento total na Amazônia. Mahar dizia serem subestimados os dados do Inpe que mostravam apenas 77 mil km² desmatados até 1978. Ele afirmava que a devastação nos anos 1980 havia explodido, atingindo 598.921 km², ou 12% da área total da Amazônia brasileira. Era uma área maior que a França. Se essa conta estivesse certa, a floresta teria perdido o equivalente a meia Inglaterra por ano entre 1980 e 1988 e, caso o ritmo se mantivesse, estaria inteira desmatada em meados do século XXI.
O relatório foi mais uma gota no caldo de mídia que engrossava contra o governo brasileiro. Além dos jornais The New York Times e The Washington Post, publicações especializadas em economia como as britânicas The Economist e Financial Times também alertaram para o problema do desmatamento e das queimadas – então tratados mais ou menos como sinônimos – e defendiam o fim dos empréstimos por bancos multilaterais ao Brasil.
Ao recordar-se daquele período, José Sarney conta que soube pela imprensa do que estava acontecendo na floresta. “Tínhamos uma visão intelectual do problema, mas nossos instrumentos de aferição do que realmente acontece, do que acontece pontualmente, era muito limitada. Como hoje, guardadas as devidas proporções, ainda é, diante da escala do problema, do número de frentes simultâneas que desafiam a lei para destruir a floresta.”
Sua reação inicial, ele admite, foi de negação: seus auxiliares, em especial os militares, batiam na tecla da conspiração internacional para arrancar do Brasil a soberania sobre a região. Mas o governo não tinha nem como contestar o Banco Mundial. O Brasil não produzia nenhum dado oficial de devastação na Amazônia desde 1980, quando o Inpe fez uma primeira estimativa num convênio com o IBDF e não detectou desmatamento significativo.
No dia 12 de outubro, Sarney assinou um decreto improvisado e ao mesmo tempo revolucionário, estabelecendo o primeiro esforço federal de proteção da floresta amazônica em 488 anos de existência do Brasil. O decreto criava o Programa de Defesa do Complexo de Ecossistemas da Amazônia Legal, batizado Programa Nossa Natureza, que teria a finalidade de “estabelecer condições para a utilização e a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais renováveis na Amazônia Legal, mediante a concentração de esforços de todos os órgãos governamentais e a cooperação dos demais segmentos da sociedade com atuação na preservação do meio ambiente”. Foram criados seis grupos de trabalho interministeriais para adotar medidas de “proteção da cobertura florística”, “substâncias químicas e processos inadequados de mineração” (leia-se mercúrio de garimpo), “estruturação do sistema de proteção ambiental”, “educação ambiental”, “pesquisa” e “proteção do meio ambiente, das comunidades indígenas e das populações envolvidas no processo extrativista”. Todos receberam prazos de 60 a 90 dias para apresentar seus resultados.
No discurso de lançamento do Nossa Natureza, Sarney reconheceu o buzz internacional sobre a Amazônia e o papel da imprensa e dos cientistas na decisão de criar o programa. “Há sensibilização crescente da sociedade brasileira contemporânea a grandes movimentos mundiais quanto à questão da preservação ambiental. Foi para mim motivo de surpresa e indignação constatar numerosos incêndios, que em poucos dias consumiram milhares de quilômetros da floresta Amazônica”, afirmou. “Posso confessar mesmo que foi a luz vermelha a despertar no presidente a consciência da necessidade de um programa mais abrangente, global e mais enérgico, o fato de o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais ter monitorizado, num só dia, mais de 6 mil focos de incêndio no Brasil.”
O lançamento do Nossa Natureza não foi a única medida anunciada. Como parte do que os jornais chamavam de “pacote ecológico”, o presidente também decretou a suspensão imediata de incentivos fiscais para pecuária na Amazônia e na Mata Atlântica.
A suspensão dos incentivos fiscais, identificados pelo Banco Mundial como motor do desmatamento, já vinha sendo ventilada antes do pacote. Parecia uma medida ousada, mas, para Sarney, ela unia o útil ao agradável: por um lado, ajudava a proteger a floresta e deixava o governo bem na foto; por outro, ajudava a fechar mais um dos vários buracos fiscais contra os quais o Planalto se batia em pleno período de moratória da dívida externa. Na época, cada centavo que pudesse ser mantido no caixa do Tesouro contava.
O escândalo de mídia sobre a Amazônia causado por Alberto Setzer e o relatório de Dennis Mahar causaram outra repercussão em São José dos Campos naquele mesmo ano. O diretor de Sensoriamento Remoto do Inpe, Márcio Barbosa, passou a ser questionado sobre a destruição da Amazônia em eventos científicos dos quais participava no exterior. “A Amazônia era a bola da vez. Eu tinha a sensação de que a crítica era exagerada”, conta.
Cansado de passar vergonha no exterior, Barbosa pediu à sua equipe que usasse o satélite óptico americano Landsat para produzir uma nova estimativa de área desmatada na Amazônia tendo como referência o ano de 1988. Nascia ali o Prodes, o sistema de monitoramento anual do desmatamento que até hoje é feito pelo Inpe e que mais tarde ajudaria o país a reduzir a velocidade da devastação da Amazônia. Paralelamente, o governo Sarney extinguiu o ineficiente IBDF e colocou no seu lugar uma superagência de fiscalização ambiental: o Ibama. A pauta ambiental no Brasil nunca mais foi a mesma.
Alberto Setzer pagou o preço da superexposição pública. “Muitos colegas no Inpe viam o trabalho como uma forma de autopromoção midiática, sem qualquer relevância científica, com base em imaginação, em algum grau de loucura ou em mentiras”, contou Setzer. Mas as caras feias no instituto eram fichinha perto do que o Estado faria com ele. O pesquisador relatou ter tido seu carro seguido e sua sala revirada algumas vezes entre 1988 e 1989. Setzer desconfiava de ação do Serviço Nacional de Informações (SNI), a agência de espionagem criada pelo general Golbery do Couto e Silva na ditadura. Sarney negou que tenha enviado arapongas atrás do pesquisador: “Se aconteceu foi à minha revelia”, diz o ex-presidente.
Em 6 de dezembro de 1988, num almoço realizado por uma organização ambientalista americana na Esalq, a escola de agricultura da USP em Piracicaba, Setzer sentou-se à mesa ao lado de um cidadão acreano com quem conversou sobre queimadas e desmatamento, paranoia e ameaças. Seu comensal também relatou episódios de perseguição e intimidação após denunciar no exterior a destruição da floresta. Para ele, porém, as ameaças teriam um desfecho trágico poucos dias depois daquele encontro. O homem era Francisco Alves Mendes Filho, o Chiquinho, que entraria para a história com outro nome: Chico Mendes.
Alberto Setzer permaneceu três décadas à frente do monitoramento de queimadas no Inpe. Seus dados foram fundamentais para revelar um repique no desmatamento de 1993/1994, época em que o Prodes estava sem dinheiro para fazer a estimativa. O sinal de alerta levantado pelo cientista fez o instituto calcular a devastação naquele período, e o resultado foi determinante para que o então presidente Fernando Henrique Cardoso baixasse em 1996 uma medida provisória alterando os limites de desmatamento do Código Florestal. O resto é história.
Setzer morreu no dia 8 de setembro, vitimado por um infarto enquanto jogava tênis em Ubatuba, litoral paulista.
Este texto é um capítulo editado de um livro que será lançado em 2024, pela Companhia das Letras, sobre o combate ao desmatamento na Amazônia.