Pouco depois da meia-noite de 31 de dezembro eu já estava deitado, mas só adormeci por volta das cinco da manhã. Não foram os fogos nem os foliões do lado de fora que me mantiveram acordado. Foi Pelé. Ou, para ser mais exato, o que Pelé me fez pensar. A notícia havia chegado dois dias antes, e, do dia 29 de dezembro até a noite da virada do ano, eu, como milhões de pessoas, passaria horas tentando compreender a dimensão dessa morte, o tamanho do que vinha de desaparecer.
Logo ficou claro que a comoção não era só nossa, brasileira. A edição internacional do New York Times publicou um artigo tocante de José Miguel Wisnik na dobra superior da capa. O obituário ocupou toda a página dois – cinco fotografias, seis colunas, do alto ao pé da versão impressa. O francês Libération deu capa e quatro páginas, logo as quatro primeiras, em geral tomadas por assuntos políticos. No jornal esportivo L´Équipe, foram 24 páginas. Até o Financial Times, que provavelmente se interessa mais pela cadeia produtiva da bola do que pela bola, pôs Pelé na capa.
Um amigo, o n. 1, me escreveu o seguinte: “Eu tenho chorado de forma intermitente desde ontem. É arrebatador. Não tinha ideia de que seria assim.” A confissão veio acompanhada da capa do jornal italiano Domani, na qual se lia: “Morreu Pelé, o homem que inventou o Brasil” – “A manchete definitiva”, cravou esse amigo, “porque o Brasil que o mundo aprendeu a amar (feliz, criativo, majestoso, quente e tolerante) não existiria sem a ascensão de Pelé.” Do amigo n. 2 recebi um e-mail intitulado “A melhor capa veio da Bolívia”. Era do diário La Razón: “Murió Pelé, el fútbol se queda con 10” – um achado de difícil tradução, querendo dizer que dali em diante o futebol viveria para sempre com uma ausência em campo, não mais onze jogadores por equipe, apenas dez, o número da camisa do Rei.
Nenhum brasileiro jamais mereceu tratamento igual, nenhum causou tanto espanto. Por essa medida, então, Pelé foi o maior de todos os brasileiros, mas a prova dos nove, claro, está no que ele fez em campo. De certa forma, está nas imagens que sobreviveram, está nos arquivos de sua arte.
Eu não vi Pelé jogar. Tinha oito anos em 1970 e, por motivos que não vem ao caso explicar, não assisti aos jogos da Copa do Mundo do México, apesar de tê-los vivido intensamente. Ir atrás dessas imagens significava rever as jogadas mais clássicas de Pelé, aquelas que vivem na memória de qualquer amante do futebol, quase todas da Copa de 70, mas também, e talvez principalmente, descobrir o que ele fazia de forma rotineira nas partidas menos vistosas de sua carreira. Do amigo n. 1, dei a sorte de receber um fio de Twitter com “estatísticas desconcertantes e dois vídeos sensacionais”. Foi esse fio que vi e revi.
Muita gente se pergunta se Pelé conseguiria se impor no futebol de hoje, um esporte mais rápido, mais técnico e mais exigente fisicamente. Basta meia hora assistindo às suas jogadas para concluir que a pergunta não faz sentido. É exatamente o contrário. O certo seria perguntar se os grandes jogadores de hoje conseguiriam jogar tão bem nas condições de antigamente. Walter Casagrande, outro que se emocionou ao se recordar de Pelé, desmontou rapidamente a ideia de que hoje Pelé não seria Pelé. Tudo era mais precário na época em que ele jogou. As chuteiras eram pesadas, a bola deixava de ser redonda à medida que o jogo corria, a arbitragem não tinha instrumentos para coibir a violência. Cartões amarelos e vermelhos foram introduzidos apenas na Copa de 1970, e ao craque daqueles anos cabia não só a tarefa de levar o time à vitória, mas também a de sobreviver às pancadas recebidas ao longo de 90 minutos. Era jogo e era luta.
Isso sem falar nos campos. As imagens são impressionantes. Alguns jogos aconteciam não em gramados, tampouco em relvados nus, mas em lamaçais. Nos casos mais extremos, quase pântanos. Apesar disso, lá está Pelé, conduzindo a bola como quem passeia o seu cão bem treinado. A bola segue fielmente o pé, obedece, não foge.
Todo o repertório do futebol moderno parece estar à sua disposição, do arranque de Mbappé, ao drible curto de Messi, ao empuxe balístico e obstinado de Ronaldo Fenômeno em direção ao gol. No artigo para o NYT, Wisnik resumiu com precisão esse repertório:
Ninguém reuniu como ele as capacidades do drible e da velocidade, do chute com as duas pernas, do cabeceio preciso e fulminante, do jogo rasteiro e do jogo aéreo, do senso mágico do tempo de bola, do entendimento instantâneo do que sucedia à sua volta, tudo baseado numa constituição atlética vigorosa e rigorosamente equilibrada. Mesmo assim, o efeito-Pelé não se resume a uma soma, ainda que única, de habilidades quantificáveis. Um poeta e ensaísta observou que ele parecia arrastar o campo consigo, como uma extensão de sua pele, em direção ao gol adversário […] A beleza e a inteligência do corpo em ato, mais o olho de lince e a imprevisibilidade do pulo do gato, faziam com que Pelé parecesse funcionar numa frequência diferente da dos demais jogadores, assistindo em câmera lenta ao mesmo jogo do qual estava participando em alta velocidade, enquanto outros, em torno dele, pareciam estar, tantas vezes, assistindo ao jogo em alta velocidade e jogando em câmera lenta.
Pelé tinha a intuição de como o espaço se configuraria no instante seguinte, e assim construía a jogada não para a situação presente, mas para a situação futura, sabendo antes onde todos estariam dali a pouco. Além do drible, dominava também a finta, a forma mais bonita do engano, na qual a bola fica onde sempre esteve e é o corpo que sugere o movimento que não fará, levando o adversário a correr para o lado onde encontrará apenas o vazio, ninguém.
A finta é questão de espaço – sugere que o caminho é por aqui, quando na verdade será por lá. Pelé também era capaz de fazer o diabo com o tempo. Um dos seus movimentos mais típicos era abrir o compasso das pernas, deixando a bola no centro delas, enquanto os defensores, como uma matilha de lobos, se aproximavam de todos os lados, prontos para o bote. Pelé então inclina o corpo, anunciando a arrancada – que não vem. A perna de controle – que pode ser a direita ou a esquerda, pois ele tinha as duas – se aproxima da bola, mas nada faz, vibra apenas, afirma a potência sem entregar o ato. É como um respiro no tempo, uma pausa – uma pausa não, uma suspensão. Lembra a fermata musical, aquele momento em que, na tensão crescente, a orquestra interrompe a música e produz um hiato – o silêncio antes da resolução. Pelé faz isso com o jogo. Os outros 21 jogadores, talvez hipnotizados, talvez com medo de tomar a decisão errada, são forçados a parar, como se num tableau vivant. Tudo é interrompido e reorganizado segundo o desejo de Pelé. Ele faz com o tempo e o espaço o que a gente faz com um chiclete: comprime, expande, estica, aperta.
Rory Smith, repórter de futebol do NYT, reproduziu no jornal algumas histórias de jogadores que receberam a tarefa de enfrentar Pelé. “Nós pulamos juntos para cabecear a bola”, disse o zagueiro italiano Giacinto Facchetti, “eu era mais alto, saltava mais. Quando pisei de volta no chão, olhei espantado para o alto e Pelé continuava lá, cabeceando a bola. Era como se ele conseguisse ficar em suspensão pelo tempo que quisesse.” Tarcisio Burgnich, companheiro de Facchetti, sintetizou: “Tentei me convencer de que ele era de carne e osso como todo mundo. Eu estava errado.” O goleiro Costa Pereira cruzou o caminho de Pelé numa final entre o seu Benfica, campeão europeu, e o Santos, campeão sul-americano . “Entrei em campo esperando parar um grande homem”, contaria depois. “Deixei o campo convencido de que fui superado por alguém que não tinha nascido neste planeta como o resto de nós.”
Então, foi isso o que se perdeu, e a constatação dessa perda, da sua dimensão, foi o que tirou o sono na noite de ano-novo?
Não exatamente.
“E mais uma coisa”, escreveu o amigo n.3: “Deve ser [a soma de] tudo o mais que acontece neste país atrapalhado, mas o Pelé ter desaparecido me dá uma tristeza… Não pensei que fosse ficar assim. Mas fiquei.” Ao que respondeu o amigo n. 4, o último deste relato: “Não desapareceu, não, reapareceu (e apareceu) para os olhos de milhões. O fio que o João mandou” – eu circulara o tuíte mandado pelo amigo n.1 – “é impressionante.” O amigo n. 4 estava certo: a chave é esse reaparecimento de Pelé.
Tom Jobim dizia que o Brasil amava Garrincha, mas precisava aprender a amar Pelé. De fato, gostar de Garrincha é mais fácil. Garrincha é trágico, foi explorado em vida e morreu precocemente, bêbado e triste. Garrincha não desafia quem o admira. Foi imenso durante certo tempo, mas voltou para o nosso plano e terminou na nossa escala. Essa queda permite que seja amado com piedade, esse sentimento essencialmente hierárquico em que o piedoso olha do alto para o objeto de sua compaixão. Compadecer-se da dor de Garrincha faz bem à autoimagem. Estamos do lado de quem sofre, somos boas almas.
Amar Pelé foi sempre mais difícil. Pelé jamais caiu. Ao contrário, subiu, subiu e lá ficou. É uma altura que oprime. Sendo impossível não gostar do jogador, o homem se tornou o alvo. Edson Arantes do Nascimento, o inocente útil que serviu aos interesses da ditadura; a celebridade ingênua que, sem falar de política, pedia que o Brasil cuidasse das crianças nas ruas. (Na época parecia demagogia, mas, como escreveu Paulo César Vasconcelos no Globo, “o tempo passou, e os bisnetos daquelas crianças continuam nas ruas”.) Pelé era mais admirado do que amado.
Mas aí é que está. Como observou o amigo n. 4, nos dias que se seguiram à morte de Pelé, nos demos conta não do que desapareceu, mas do que nos foi presenteado. A suprema beleza do que ele fez em campo, a alegria que deriva dessa beleza, isso é nosso, nos pertence. Por causa dele, o Brasil se tornou a referência máxima do esporte mais popular do mundo. Um dos nossos dominou o jogo como nenhum outro. Uma supremacia que não se assenta em armas ou truculência, mas em brincadeira e graça.
Sempre foi esse o seu dom, e, como lembrou Wisnik no NYT, nada disso estava desconectado do Brasil: “Já se disse que um gol de Pelé, uma curva arquitetônica de Oscar Niemeyer e uma canção de Tom Jobim cantada por João Gilberto soavam então como ‘promessa de felicidade’, da parte de um exótico país marginal que parecia oferecer ao mundo a passagem leve e profunda da linguagem popular à arte moderna sem arcar com os custos da Revolução Industrial.”
Esses dias mostraram o que já parecia esquecido: que o Brasil é capaz disso.
E que a reaparição fulgurante do seu legado tenha se dado quase simultaneamente a este outro evento – a fuga, a bordo de um avião da FAB, do que o Brasil tem de pior – iluminou, com uma clareza que chega a cegar, aquilo que ainda podemos ser e aquilo que precisamos desesperadamente evitar.
Pelé promete, sim, essa felicidade que ainda nos cabe cumprir. Nada está dado, tudo ainda é possível. É uma constatação que acelera o pulso, que causa euforia e explica uma noite de insônia durante a qual, de olhos fechados, alguém, num quarto escuro, com festa do lado de fora, compreende que Pelé é mesmo tudo o que dizem e conclui que, se ele é daqui, se foi um dos nossos, então o Brasil jamais estará perdido.