A queda de Cabul neste domingo, 15 de agosto de 2021, entrará na história por muitos motivos. O principal deles, claro, é a tragédia humanitária. Dezenas de milhares de civis afegãos foram condenados à morte por nenhum outro motivo senão estarem no lugar errado na hora errada. Mas há, suspeito, outra razão para guardar essa data nos livros de história: no futuro, ela será lembrada como o dia em que o império estadunidense ruiu.
As imagens chocantes de afegãos desesperados pendurados na fuselagem de um avião em decolagem do aeroporto de Cabul, nesta segunda-feira, foram imediatamente comparadas à constrangedora retirada norte-americana de Saigon, em meio à derrota dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, em 1975. Mas talvez haja outra imagem que, por seu paralelo histórico, seja ainda mais simbólica: forças afegãs cruzando a Ponte da Amizade (difícil acreditar que a ironia do nome não seja proposital), na fronteira entre o Afeganistão e o Uzbequistão, em fuga do Talibã. A foto espelha outra travessia, há 32 anos. Em 15 de fevereiro de 1989, as últimas tropas soviéticas deixavam o Afeganistão pela mesma ponte. Dali a pouco mais de dois anos, a própria União Soviética se desmantelaria.
Algum gênio cujo nome perdeu-se na história apelidou, já no século XIX, o Afeganistão de “cemitério de impérios”. Poucas alcunhas provaram-se tão premonitórias. Estados Unidos e União Soviética não foram os únicos enterrados nesse cemitério montanhoso e desértico. Por oitenta anos, entre meados do século XIX e início do XX, a Inglaterra tentou colonizar o Afeganistão. Quase conseguiu, mas, em 1919, desistiu e foi obrigada a reconhecer a independência desse país pouco maior que as nossas Minas Gerais. A derrota já indicava a decadência do Império Britânico.
Obviamente, não foi o Afeganistão que, sozinho, derrubou as três superpotências. Em vez disso, as invasões do país indicam a mesma tendência colonizadora de se engajar em guerras fúteis e infindáveis, com pouco ou nenhum retorno estratégico, justamente quando a capacidade imperial está enfraquecida. Uma potência que precisa reafirmar sua força invadindo um país pobre e periférico não está segura do próprio poder. Se sai com o rabo entre as pernas, enxotada pelo país pobre e periférico, é porque esse poder praticamente esvaiu-se.
Isso não significa, claro, que os Estados Unidos deixarão de ser uma potência econômica e militar num futuro próximo. Do mesmo modo que a Europa não se tornou irrelevante com o fim de seus impérios, o governo americano será uma potência global por muitas décadas ainda. Sua importância, no entanto, está minguante e poucos pontos de inflexão serão tão simbólicos quanto a derrota no Afeganistão.
O império americano já está decadente há ao menos duas décadas. O destino foi selado não pelos ataques de Onze de Setembro de 2001, mas pela reação desvairada de George W. Bush a eles. Invadiu o Afeganistão sem antes traçar objetivos claros. Depois, minou completamente a credibilidade americana no mundo ao inventar a Guerra do Iraque. De brinde, deixou o Conselho de Segurança da ONU – outrora a maior ferramenta diplomática dos Estados Unidos – ainda mais inútil que já era. Por fim, seu laissez-faire econômico nos legou a pior recessão do século – e, consequentemente, Donald Trump.
A eleição de Trump já era indício de decadência. Ele percebeu o que nenhum político tradicional tinha se dado conta até então: o eleitor americano estava cansado de ser império. Incapaz de olhar para além do próprio umbigo, decidiu que o país que governava devia seguir seu exemplo. O slogan do seu governo não podia ser mais explícito: “America first” (“Os Estados Unidos em primeiro lugar”). O resto do mundo que se implodisse. Adotou uma política externa biruta. Virou as costas ao seu aliado mais tradicional – a Europa – e foi abraçar os tiranos da Rússia e da Coreia do Norte.
O declínio americano tornou-se inegável diante da pandemia de Covid. O país mais rico do mundo, dono da maior capacidade científica e hospitalar, foi também o que mais enterrou vítimas do Sars-CoV-2. Os Estados Unidos já gastaram 5 trilhões de dólares em estímulo econômico desde o surgimento da Covid e outros 4,5 trilhões já estão encomendados pelo governo de Joe Biden. Desde a depressão de 1930 os Estados Unidos não gastam tanto com o próprio povo. É mais do que o dobro do que gastaram em duas décadas de guerra inútil no Afeganistão e no Iraque.
Frequentemente visto como o oposto de Trump, Biden é, no que se refere ao neoisolacionismo americano, sua continuação. Seguiu praticamente à risca os planos do antecessor de retirada do Afeganistão. Conforme notou o colunista do New York Times Ross Douthat, Biden é a opção pela “decadência sustentável”. Um político velho, sem carisma, porém com habilidade de negociação. Talvez, sem ter de se preocupar em conquistar o resto do mundo, os Estados Unidos possam cuidar do próprio povo e, finalmente, criar um estado de bem-estar social. Foi o que fez a Europa quando seu império esfarelou-se. Se essa tendência se confirmar, os americanos serão, curiosamente, quem mais lucrará com o fim da própria hegemonia global.
Já para nós, na periferia do mundo, o cenário é bem menos róseo. Impérios são sempre crudelíssimos, e a América Latina sentiu a crueldade do imperialismo estadunidense mais que qualquer outra região do planeta. Se a decadência dos Estados Unidos implicasse um maior multilateralismo nas decisões globais, todos estaríamos melhor, claro. Porém essa utopia parece mais distante que nunca.
O vazio deixado pela liderança americana, ao menos por ora, tem sido ocupado por uma Rússia paranoica e por uma China cada vez mais economicamente dominante. Os Estados Unidos, quando foram império, sentiam-se ao menos constrangidos com o uso da violência e tentavam justificá-la. A chamada pax americana, conforme notou Fernando Henrique Cardoso, empurrou os conflitos para as margens e diminuiu significativamente o número de mortos nas guerras. A Rússia e – muito mais importante – a China não precisam se preocupar com essas frescuras impostas pela democracia. O imperialismo chinês que já mostra sua cara na África e na América Latina será, ao que tudo indica, ainda mais brutal e indiferente aos direitos humanos.