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O dilema da decência em uma sociedade indecente

Como Israel e os Estados Unidos entraram para a lista de países cujas instituições humilham pessoas e minorias

24out2025_14h15

Em 20 de abril de 1945, um garoto caminha ao lado de prisioneiros mortos no campo de extermínio de Bergen-Belsen, na Alemanha: Israel e Estados Unidos já são estados indecentes?

O escritor holandês Ian Buruma, ex-editor do The New York Review of Books, escreve na piauí deste mês sobre o dilema que aflige pessoas decentes que são obrigadas a viver em sociedades politicamente indecentes.

 

Para estabelecer a diferença entre uma sociedade decente e uma indecente, ele recorre ao filósofo israelense Avishai Margalit. Em seu livro The decent society, Margalit diz que uma sociedade indecente é aquela cujas instituições são concebidas para humilhar as pessoas, em geral as mino­rias. Uma sociedade decente, por sua vez, não é o mesmo que uma sociedade civilizada. Nas palavras do filósofo, “uma sociedade civilizada é aquela cujos membros não humilham uns aos ou­tros, enquanto uma sociedade decente é aquela em que as instituições não humi­lham as pessoas”.

 

“Uma sociedade governada por nazis­tas, stalinistas, maoístas ou outros gover­nantes que aspiram ao controle totalitário é, evidentemente, mais do que apenas indecente”, escreve Buruma. “Enquanto um indivíduo pu­der expressar livremente suas opiniões críticas sem ser assassinado ou encarcera­do, ainda é possível manter a decência. Os verdadeiros dilemas morais começam quando nossa subsistência, ou mesmo nossa vida, depende de estarmos dispos­tos a cooperar com um Estado indecente. Onde não há escolha, há menos dilema.”

 

 

 

Mas o que dizer de um Es­tado indecente que ainda preserva certas liberdades que os cidadãos das democra­cias liberais consideraram garantidas, como eleições livres, imprensa livre e algum grau de independência do Judi­ciário?

 

Buruma elege dois países como exemplo: Israel e os Estados Unidos.

 

Sob o governo de Benjamin Netanyahu, o Estado de Israel, embora continue de­mocrático, passou a se enquadrar na definição de indecência proposta por Avishai Margalit, segundo a qual as ins­tituições oficiais elaboram políticas des­tinadas a humilhar pessoas e minorias.

 

 

 

O governo de Netanyahu inclui políticos cujas opiniões sobre os palestinos são violentamente hostis. O ministro da Se­gurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, já foi condenado diversas vezes por incita­ção ao ódio racial. O saldo de mais de 65 mil mortos em Gaza, em retaliação ao terrível ataque cometido contra os judeus em 7 de outubro de 2023, não foi tanto uma consequência inevitável da guerra: foi, em vez disso, um ato de vin­gança brutal. Os palestinos que vivem na Cisjordânia vêm sendo alvo de humi­lhações institucionais há muitas déca­das. Alegar que atrocidades piores estão ocorrendo no Sudão ou no Congo não é um bom argumento, justamente porque Israel ainda é uma democracia.

 

Nos Estados Unidos, o governo de Donald Trump está fazendo tudo o que pode para construir um Estado indecente. Os imigrantes são insultados pelo próprio presidente e ameaçados com prisão e deportação. Alguns residentes com visto de permanência já foram encarcerados por expressar opiniões que o governo desaprova – como protestar contra a guerra de Israel em Gaza. Agências go­vernamentais das quais milhões de ame­ricanos dependem para manter a saúde, ou mesmo para sobreviver, são rotuladas como “criminosas” e simplesmente des­truídas. A indepen­dência do Judiciário está comprometida pela nomeação de bajuladores que pro­metem processar os adversários políticos do presidente. Os jornalistas são denun­ciados como “inimigos do povo”.

 

Nos Estados Unidos, porém, o Esta­do indecente ainda não é uma ditadura. Pelo menos por enquanto, a imprensa tem liberdade de expor e publicar opi­niões críticas. Quem se curva a exigências irracio­nais – e por vezes ilegais – sem ser for­çado a isso está apenas fortalecendo os impulsos indecentes de líderes com intenções autoritárias. Essa atitude já foi chamada de “obediência antecipa­tória”. Em vez de resistir a ataques in­justificados ao seu trabalho jornalístico, empresas de mídia estão pagando altas quantias de dinheiro a um governo hostil, para evitar processos judiciais. Escritórios de advocacia estão fazendo o mesmo. Proprietários de jornais já ordenam aos seus editores que evitem críticas ao presidente. Empresas, uni­versidades e até o Exército americano vas­culham seus registros, suas comunica­ções e seus currículos acadêmicos, para apagar qualquer coisa que possa despertar a ira do presidente e seus la­caios.

 

 

 

Assinantes da revista podem ler a íntegra do texto neste link

 

 

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