Pessoalmente, os ministros-generais Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral) não têm muita afinidade entre si. Chegaram ao governo de Jair Bolsonaro (PL) com uma alardeada influência sobre o capitão, sustentada também pelo fato de terem ido mais longe na hierarquia do Exército, o que lhes conferiria, em tese, respeito e autoridade. Mas, com o passar do tempo e das crises, ambos foram rebaixados a personagens secundários nas tomadas de decisão do governo. Longe dos holofotes, continuaram prestando serviços a Bolsonaro e concorrendo ao papel de principal entusiasta do presidente.
Eles questionam pesquisas que mostram Bolsonaro atrás de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na disputa pelo Palácio do Planalto, repetem bordões do chefe, aplaudem suas aparições públicas, elogiam seu governo e falam mal quase diariamente de reportagens e repórteres. Afrontam a Justiça brasileira para reforçar as ameaças de Bolsonaro e sugerir, assim, que há respaldo das Forças Armadas a ele.
Inquérito da Polícia Federal aponta que Heleno e Ramos usaram as instalações e aparatos públicos que controlam para tentar, sem sucesso, achar provas que depusessem contra a legitimidade das urnas eletrônicas. Segundo a investigação policial, Ramos articulou um encontro, no Palácio do Planalto, entre Bolsonaro e um técnico em eletrônica que dizia ter provas de fraude na votação de 2014. Além de colocar a Abin (Agência Brasileira de Inteligência, subordinada ao GSI) para trabalhar para encontrar problemas nas urnas, Heleno também esteve com o técnico, de acordo com o site G1.
Os generais da reserva vão até o limite da lei na sua empreitada golpista, com o objetivo de causar comoção popular, medo e autocensura na população para, assim, tentar influir no resultado a ser apurado (e possivelmente contestado) em outubro nas urnas em todo o país. “Não são só bravatas, é estratégia de espalhar temor para garantir que o projeto político que lhes fornece benesses seja vitorioso”, diz o historiador Carlos Fico, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É o que ele define como a guerra psicológica travada pelos militares desde a proclamação da República.
A linhagem de Heleno e Ramos é antiga. Em 1889, a República foi proclamada a partir do golpe militar liderado pelo marechal Deodoro da Fonseca, que ecoava a insatisfação dos militares com a falta de reconhecimento por parte da monarquia. Achavam que o prestígio popular de que gozavam depois da vitória na Guerra do Paraguai não era transformado em benefícios materiais concedidos pelo poder político.
Bolsonaro captou o espírito da coisa, nota Carlos Fico. Alvo de processo no Exército após um plano seu para tentar explodir bomba em quartel e pressionar por aumento salarial, decidiu entrar para a política e foi então para a reserva do Exército. Em vez de procurar o embate direto, fez um pequeno desvio: insuflou mulheres e filhas de militares a protestar por melhorias na carreira dos homens da casa, já que eles próprios são proibidos de aderir a greves e protestos. Bingo. Sua imagem começou a ser reciclada, cativou parcelas expressivas da tropa e garantiu oito eleições consecutivas, primeiro a vereador, depois a deputado federal.
“A maioria das tropas adere muito ao bolsonarismo, aí compreendida a dimensão ideológica como também o fato de estarem no poder com cargos, salários, previdência especial e beneficios”, observa o historiador, especialista em ditadura militar. No topo das Forças, as conquistas materiais são estrondosas. Como revelou a Folha de S.Paulo nesta semana, Heleno e Ramos somam ganhos de quase 900 mil reais cada um nos últimos doze meses ao acumular aposentadoria como generais e salário como ministros, furando o teto salarial dos funcionários públicos. Como conseguiram o privilégio de não serem submetidos à mesma lei que os demais? Com uma canetada de Bolsonaro.
O golpismo iminente está no DNA da República. Depois do golpe da proclamação, a primeira Constituição republicana cometeu um erro inaugural ao deixar mal explicado o papel das Forças Armadas, avalia Carlos Fico. Dizia que “a Força Armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos e obrigada a sustentar as instituições constitucionais”, nas palavras de 1891. “Mas quem decide se a ordem do presidente está ‘dentro dos limites da lei’?”, questiona o historiador. “Foi uma contradição que decorreu das turbulências do fim do Império, porque na Constituinte de 1891 tinham muitos parlamentares militares, e os civis ficaram acuados. A partir daí, todas as Constituições republicanas repetem coisas do tipo, e toda crise institucional é causada por militar.”
Na Constituinte de um século depois, o país saía da ditadura militar, de novo, sob a sombra do golpismo. O general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército do então presidente José Sarney, ameaçou os constituintes se encurtassem os cinco anos de mandato do presidente, lembra Fico. O Centrão, que se formava ali naqueles dias, topou o negócio, e a vontade do general se impôs. “Sarney foi totalmente tutelado pelos militares”, afirma o historiador.
Na Constituição vigente, o artigo 142 é o principal pretexto do golpismo. No texto de 1988, está previsto que “as Forças Armadas (…), sob a autoridade suprema do presidente da República, destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” O presidente Jair Bolsonaro já mostrou como interpreta as palavras de 1988. Para ele, as Forças têm poder moderador de conflitos entre os Poderes e podem agir para dirimir crises. A mando de quem? O chefe supremo das Forças Armadas é o presidente da República, repete Bolsonaro à exaustão. (Ministros do STF já disseram, insistentemente, que a ideia do “poder moderador” não tem respaldo constitucional.)
“Provavelmente quase todos os oficiais generais com quem tenho contato, sobretudo do Exército, interpretam o comando constitucional de exercer a garantia dos poderes constitucionais como prerrogativa para mediar conflito entre os Poderes, e não ameaça aos Poderes, que é uma grande diferença”, diz Carlos Fico. “Na cabeça de oficiais generais, as crises poderiam ser dirimidas por eles e por isso temos uma democracia tão frágil, em que volta e meia, ao contrário da esperança de muitos analistas que achavam que [o golpismo] estava superado, ainda temos militares com pretensão de tutelar a sociedade.”