Geralmente, os primeiros a despertar na Praça de São Pedro são os moradores de rua que dormem embaixo das colunas que cercam a basílica ou sob as marquises. O movimento começa por volta das seis. Às sete, eles estão amontoados, alguns com o rosto protegido por máscaras cirúrgicas, para a chegada do café da manhã e a distribuição de senhas que lhes darão acesso a banheiros públicos. Todos os dias, invariavelmente, o cardeal Konrad Krajewski sai de seu apartamento no Vaticano, o menor estado soberano do mundo, atravessa uma passagem reservada exclusivamente às autoridades e alcança a faixa da praça onde se concentra uma parte dos miseráveis de Roma. Da sala de sua residência até lá, caminha por quatro minutos.
Com passos ligeiros, o sacerdote faz uma rápida inspeção. Certifica-se de que os banheiros estão fornidos com material de higiene e confere o desjejum, que frequentemente ajuda a distribuir. Ele sempre é parado pelos moradores de rua, os seus protegidos. No giro matinal, às vezes sem a máscara que deveria usar na segunda fase do coronavírus na Itália, o religioso ouve pedidos de ajuda, pergunta sobre a perna problemática de alguém, se livra com destreza dos chatos e logo retorna para seu escritório, localizado embaixo do seu apartamento. Todos que frequentam a praça naquele horário, policiais uniformizados ou camuflados, lojistas e camelôs, têm alguma história para contar a respeito do cardeal de vistosa cabeleira grisalha, cujo primeiro nome acabou sendo italianizado. Ali, sem pompa alguma, costumam chamá-lo de padre Corrado, tratamento que lhe agrada.
Nascido na Polônia e radicado em Roma há mais de duas décadas, Krajewski, de 56 anos, é o esmoleiro-oficial do papa Francisco desde 2013. O cargo milenar adquiriu, sob o pontificado do argentino, um destaque nunca visto na história da Igreja Católica. Vinte e sete anos mais novo que Jorge Mario Bergoglio, primeiro latino-americano a comandar o Vaticano, o polonês tornou-se um de seus subordinados com maior protagonismo, sobretudo depois que a pandemia fez aumentar a pobreza na Itália. O esmoleiro se define como a “sala de emergência” de Francisco, que já disse almejar uma igreja que funcione como um hospital de campanha, pronta para receber todos os feridos e não somente aqueles que gostaria de ter.
A atuação de Krajewski é exemplar da mudança cultural que o papa tenta imprimir na Santa Sé, às voltas com a queda do número de fiéis e escândalos financeiros ou sexuais. Há três anos, o esmoleiro trocou o confortável apartamento funcional em que morava por um mais modesto, onde vive até hoje. Destinou o imóvel anterior aos refugiados, que continuam se revezando por lá. Ele também levou moradores de rua à praia e os acompanhou em visitas aos museus do Vaticano. Socorreu travestis, alcoólatras e ex-presidiários, ajudou a criar banheiros, ambulatório e lavanderia públicos para os necessitados, dirigiu a van branca da Esmolaria, percorreu quebradas romanas e de outros países, religou clandestinamente a energia de uma ocupação, pagou contas dos desvalidos e lhes distribuiu dinheiro. Tudo em nome do papa.
A primeira coisa que Krajewski diz para um jornalista é “não quero ser estrela”. Dias antes do Natal, após sentir-se mais cansado do que o habitual, o esmoleiro procurou um hospital romano. Estava com princípio de pneumonia e logo se confirmou a Covid-19. Foi internado. Ao responder uma mensagem que enviei desejando-lhe melhoras, escreveu: “A nossa vida depende de Deus, por sorte”. Filho da igreja e da Polônia anticomunista moldadas por João Paulo II, a quem serviu, ele já recebeu da imprensa italiana epítetos como “o cardeal dos pobres” e “Robin Hood do papa”. Não à toa, provoca o antagonismo da ala conservadora do clero, de grupos católicos tradicionais e de políticos da direita populista. Seu estilo destoa francamente do adotado por boa parte dos colegas – alguns cardeais chegam à Basílica de São Pedro em carros de luxo dirigidos por motoristas particulares. “Eu apenas sigo o Evangelho. E o Evangelho é revolucionário”, resume Krajewski.
De fato, o que se vê na Esmolaria Apostólica ao longo dos últimos sete anos é digno de uma revolução. Pela primeira vez, a instituição – antes capitaneada por religiosos em fim de carreira – está sob a égide de um cardeal, posição inferior apenas à do papa. Francisco concedeu o título ao polonês em junho de 2018. Quando um sacerdote atinge tal cargo, ocorre a visite di calore, uma recepção em que familiares e amigos são convidados para confraternizar com o novo cardeal. Em vez de realizá-la no Palácio Apostólico, como manda a tradição, Krajewski reuniu cerca de duzentas pessoas, a maioria sem-teto, num refeitório do Vaticano. Durante o encontro, o Santo Padre apareceu, o que não havia acontecido em nenhuma outra visite di calore dos cardeais que ele indicou. Assim que se juntou ao grupo, Francisco comentou com um amigo do polonês: “O título de cardeal não é para Konrad, mas para eles.” Referia-se aos moradores de rua.
Os desvalidos são um dos pontos centrais do pontificado de Bergoglio. Em março de 2013, na sua primeira entrevista após ser eleito, o argentino disse: “Quero uma igreja pobre para os pobres.” Na ocasião, explicou que escolheu o nome de Francisco em homenagem a São Francisco de Assis, o jovem de origem abastada que fez voto de pobreza. Também mencionou o conselho que o cardeal brasileiro Claudio Hummes, seu “grande amigo”, lhe deu quando o conclave terminou: “Não se esqueça dos pobres.” Logo no primeiro mês à frente do Vaticano, o novo papa recusou ostentar uma cruz de ouro no pescoço e aposentou o luxuoso carro oficial. Preferiu usar automóveis mais simples. Abdicou, ainda, do apartamento pontifício no Palácio Apostólico, onde seus antecessores moravam. Desde então, vive na Casa Santa Marta, um prédio que serve de hospedagem para membros do clero e visitantes de prestígio. Está instalado numa suíte do segundo andar e costuma tomar café da manhã com os demais hóspedes e funcionários do edifício. Carrega a própria pasta e, numa solenidade, já refutou o tradicional beija-mão, gesto de deferência dos fiéis à Sua Santidade. Certa vez, quando precisou trocar de óculos, foi pessoalmente a uma ótica no Centro de Roma.
A Esmolaria é o departamento do Vaticano que pratica a caridade. A figura do esmoleiro remonta às origens do cristianismo. Os primeiros sete diáconos escolhidos pelos apóstolos de Cristo tinham a missão de destinar aos necessitados as doações dos ricos. Com o tempo, a Igreja Católica incorporou e oficializou a tarefa. Hoje, a Esmolaria faz beneficência com o dinheiro ou os alimentos que recebe de empresas, pessoas físicas, governos estrangeiros e da própria Santa Sé. Conta, igualmente, com os recursos oriundos da venda de pergaminhos abençoados pelo papa – uma espécie de diploma que os fiéis costumam adquirir para atestar batismos, primeiras comunhões, crismas e casamentos. Também disponíveis na internet, os documentos custam entre 16 e 30 euros. Num bom mês, são impressos 20 mil deles.
A Santa Sé não divulga o orçamento anual da Esmolaria. Sabe-se, porém, que o departamento desembolsou 4,5 milhões de euros em 2019 só para atender “pequenas necessidades”. Os donativos não se restringem à Itália. Em junho deste ano, foram enviados 35 respiradores a diversos países, incluindo o Brasil, que ganhou quatro. Dois meses depois, o Sumo Pontífice encaminhou outros dezoitos respiradores para os brasileiros.
Localizada ao lado da Porta Sant’Anna, uma das entradas oficiais do Vaticano, a Esmolaria dispõe de aproximadamente quarenta funcionários, entre religiosos e leigos, efetivados ou voluntários. O órgão é um dos poucos da Santa Sé aberto ao público. As visitas podem ocorrer de segunda a sábado, das 9 horas às 13h30. Ao meio-dia, Krajewski faz uma curta oração em latim, instante em que o departamento interrompe todas as atividades.
Com frequência, o escritório recebe pedidos de emprego e de passagens para viagens nacionais ou internacionais, além de cartas destinadas ao Santo Padre, em que os remetentes quase sempre solicitam alguma ajuda. Às vezes, o Vaticano concede uma graça aos missivistas, que costuma variar de 100 a 200 euros, mas é impossível atender todos. Para serem levadas em conta, as correspondências precisam ter o endosso de algum padre ou paróquia. A Esmolaria checa a origem das cartas a fim de afugentar os espertalhões. Numa manhã de julho, por exemplo, Krajewski conferia se uma paróquia da Itália conhecia determinado remetente. Naquele mesmo dia, ele recepcionou um grupo de sem-teto. Um dos moradores de rua, polonês, havia perdido o passaporte e precisava de outro. O homem foi encaminhado à embaixada da Polônia. “Não dá para esperar até amanhã. A pessoa tem fome e sede hoje. Necessita de ajuda agora”, explicou o esmoleiro.
Desde o início da pandemia, que deve derrubar o PIB italiano, aumentou consideravelmente a procura pelos serviços das instituições católicas de caridade. Estima-se que, nos últimos seis meses, 1 milhão de pessoas distribuídas por todo o país passaram a precisar de ajuda para comer. Juntaram-se a outros 3 milhões que já se encontravam nessa situação (a Itália tem 60 milhões de habitantes). Entre os 50 mil moradores de rua que se espalham pelo território italiano, a maioria é estrangeira. Não raro, a Esmolaria paga a viagem aérea para os que desejam retornar à terra natal.
Em março, quando a Itália impôs uma dura quarentena à população, Krajewski se permitiu um “ato de desobediência”. O decreto do governo, intitulado Io Resto a Casa (eu fico em casa), obrigou a interrupção de todas as atividades, exceto das poucas consideradas essenciais. Missas, casamentos e funerais foram suspensos, e a Diocese de Roma entendeu que as igrejas deveriam permanecer fechadas. Era a primeira vez que isso acontecia na cidade desde o ano 313, quando o imperador Constantino legalizou o cristianismo.
A diocese tomou a decisão em 12 de março. No dia seguinte, uma sexta-feira, Krajewski abriu a igreja sob sua responsabilidade no Centro, região que agrega muitos sem-teto. O sacerdote disse que a insubordinação se baseava no Evangelho e enfatizou que os templos italianos não cerraram as portas nem mesmo durante a Segunda Guerra. Na própria sexta-feira, a decisão foi revogada.
A quarentena também exigiu que o polonês se posicionasse com coragem diante de outras situações delicadas. Em abril, chegou à Esmolaria uma carta assinada por um grupo de travestis latino-americanas que vivem de programas no litoral italiano. Por causa da pandemia, todas perderam a clientela e a renda. Foi Consuelo Torres – colombiana de 58 anos, que está na Europa há mais de três décadas – quem resolveu buscar ajuda numa igreja. Moradora de Torvaianica, distrito a 40 km do Vaticano, ela procurou a paróquia de Tor San Lorenzo, na cidade de Ardea, onde a receberam mal. “Disseram que não havia nada ali para gente como eu.” A travesti decidiu, então, recorrer à paróquia de Torvaianica. O padre Andrea Conocchia a acolheu prontamente e levou à Esmolaria uma carta dela, endereçada ao papa. Dias depois, Krajewski apareceu no distrito com alimentos e dinheiro para cada uma das dez travestis. Nem o esmoleiro, nem as agraciadas revelaram o valor das doações. Elas gravaram mensagens em espanhol no WhatsApp para Bergoglio. “Santo Padre, me sinto um pouco nervosa e assustada por falar com o senhor. Quero dizer que o senhor é um santo! Que Deus te abençoe”, agradeceu uma delas.
Em junho, Torres e as amigas continuavam recebendo mantimentos da paróquia, que estava sobrecarregada por causa da crise sanitária. Cerca de 120 pessoas dispunham de algum auxílio para comer em Torvaianica antes da pandemia. O advento do coronavírus fez com que a ajuda se expandisse para mais de oitocentas, a maioria italiana. Ao comentar o caso das dez travestis, o esmoleiro citou novamente o Evangelho: “Somos todos filhos de Deus. Pense na adúltera e nos inúmeros marginalizados que Jesus apoiou. ‘Venham a mim todos os cansados e oprimidos, e eu os aliviarei’, dizia Ele.”
Konrad Krajewski nasceu em Lódz, cidade industrial situada no Centro da Polônia e ocupada pelos nazistas em setembro de 1939, logo no início da Segunda Guerra. Aproximadamente 190 mil judeus foram mortos na localidade, que abrigou o segundo maior gueto do país. Em 1995, ao recepcionar em Roma uma comitiva da Arquidiocese de Lódz, João Paulo II lembrou que a igreja local “sofreu muitíssimo e teve uma enorme devastação”, perdendo quase um terço dos sacerdotes.
De origem operária, os pais do esmoleiro cresceram acuados pelos nazistas e, mais tarde, criaram os filhos sob o jugo do comunismo, o que deixou marcas profundas na família. O irmão mais velho de Krajewski, um médico militar, foi assassinado aos 28 anos por forças secretas ligadas ao governo, num episódio nunca esclarecido plenamente. O monsenhor italiano Piero Marini, amigo e ex-professor do esmoleiro, chegou a visitar a casa da mãe dele em Lódz, na virada do milênio, e se recorda bem do “imóvel pequenino e simples”.
O catolicismo é um dos elementos definidores da identidade polonesa. Não por acaso, a carreira eclesiástica sempre atraiu Krajewski, que conheceu “grandes padres” na infância. Sua maior referência é Bogan Nowacki, monsenhor de 84 anos que continua morando em Lódz. Na passagem da década de 1970 para a de 1980, quando o governo comunista perseguia os católicos, Krajewski e os amigos participavam de eventos liderados bravamente por Nowacki, que ainda não tinha 40 anos, mas era chamado pelos jovens de don nonno, como se fosse o avô deles. O esmoleiro também admira o padre Jerzy Popieluszko, um mártir para os católicos polacos, executado por agentes comunistas em outubro de 1984.
A história contemporânea da Polônia está muito associada à trajetória de Karol Wojtyla, que se converteu no papa João Paulo II em 1978. A atuação dele revelou-se fundamental para a derrocada do comunismo na Europa a partir de 1989. O esmoleiro acompanhou de perto sete dos 27 anos em que o compatriota chefiou a Santa Sé. Foi ainda no seminário que Krajewski conheceu João Paulo II. Em 1987, o papa fazia sua terceira visita ao país natal, e coube ao jovem seminarista organizar a missa em Lódz, que teve a participação de 1.500 crianças. “Fiquei impressionado com a competência dele”, relembra Piero Marini, então chefe do Departamento das Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice. Ali começou uma amizade que perdura até hoje. No início da década de 1990, Marini convidou o rapaz para estudar liturgia em Roma. Depois, lhe deu aulas no doutorado.
Em 1998, por influência do amigo, Krajewski tornou-se um dos ajudantes das celebrações pontifícias. O fato de ser polonês pesou na escolha: João Paulo II já apresentava sintomas do Mal de Parkinson e precisava de um conterrâneo para auxiliá-lo durante as missas. “Konrad foi muito importante nos anos finais de Wojtyla. Virou quase um familiar”, diz Marini, que comandou o departamento por duas décadas, até 2007, já sob o papado do alemão Joseph Ratzinger.
Krajewski testemunhou toda a agonia de João Paulo II e o viu morrer, em abril de 2005. Ele ajudou a vestir o cadáver do pontífice e participou de seu funeral. Desde então, comanda uma missa matutina, às quintas-feiras, na tumba de Wojtyla, situada numa capela dentro da Basílica de São Pedro. A cerimônia ganhou fama entre os devotos do agora São João Paulo II e é transmitida em streaming para a Polônia.
Quando Ratzinger foi apresentado aos fiéis na noite de 19 de abril de 2005, dezessete dias após a morte de seu antecessor, Krajewski o precedeu na varanda de onde o novo papa iria discursar. O polonês carregava uma cruz e o alemão caminhava logo atrás, com uma evidente cara de satisfação. Krajewski seguiu no cerimonial durante todo o pontificado de Ratzinger, o Bento XVI (2005-2013).
O futuro esmoleiro e o jesuíta Jorge Bergoglio se encontraram pela primeira vez no conclave de 2013, o segundo de que o polonês participou como um dos responsáveis pelas celebrações litúrgicas. Ele já era conhecido por ajudar os pobres que orbitavam em torno do Vaticano, o que fazia “a título pessoal”, como ressalta. “Por isso, acabou escolhido para a Esmolaria”, afirma o padre Federico Lombardi, ex-porta-voz de Ratzinger e de Bergoglio. Há quem tenha interpretado a nomeação como um hábil movimento político de Francisco. Colocar Krajewski à frente de uma instituição que simboliza de maneira tão cristalina os princípios do papa significa acenar para o catolicismo da Polônia, um dos mais fortes e conservadores da Europa, e manter uma conexão direta com os devotos daquele país.
A conversa decisiva de Francisco com o polonês sobre o cargo ocorreu em julho de 2013, durante o voo entre Roma e Rio de Janeiro, na única viagem que o Santo Padre fez ao Brasil. “Ali ele me explicou o que queria”, rememora Krajewski. “No Brasil, tive a oportunidade de conhecer a verdadeira miséria. A América Latina é muito diferente da Polônia, onde a pobreza se apresenta de outra maneira.” No avião, o pontífice recomendou que o polonês fosse atrás dos pobres em vez de esperar que viessem à Esmolaria . “Ele disse que eu poderia vender a minha escrivaninha.”
Um dos atos mais ousados de Krajewski na função se deu em 2019. O gesto provocou um choque do Vaticano com a extrema-direita italiana, liderada pelo senador Matteo Salvini, notório por defender ideias xenófobas. O esmoleiro costumava levar mantimentos, remédios e material de higiene para uma ocupação no Centro de Roma, um prédio de oito andares, onde vivem 450 pessoas de 21 nacionalidades. Em maio do ano passado, a energia do edifício foi cortada por falta de pagamento. O débito, antigo, beirava os 300 mil euros. O proprietário do imóvel – um fundo de investimento – ameaçava desocupá-lo. “Falamos com o cardeal numa segunda-feira”, conta a irmã Adriana Domenici, que acompanha a ocupação. “Ele nos disse que iria procurar ajuda e pediu que esperássemos até sexta.” O corte de luz ameaçava o tratamento de saúde de alguns moradores e afetava em especial as crianças. Na sexta, a irmã não recebeu nenhuma notícia sobre a volta da energia. No sábado, perto do anoitecer, o esmoleiro apareceu sozinho no prédio, disposto a religar a luz, já que o fornecedor se negava a tanto. “Precisei de uns quarenta minutos para dar conta do recado”, lembra o polonês.
No livro O Cheiro de Deus, único de sua autoria, ele conta que tomou a decisão de fazer o “gato” depois de chegar a seu apartamento. Pretendia cozinhar uma linguiça e assistir à tevê, mas a situação dos moradores sem luz o impediu de relaxar. “Falei para todos saírem da ocupação porque eu iria cometer um crime. Não queria que ninguém sofresse as consequências. Eu não estava bêbado nem sob a influência de drogas. Agi de acordo com o Evangelho”, diz num trecho do livro. O esmoleiro, que tem conhecimentos de hidráulica e eletricidade, deixou um bilhete e seu cartão de visita no prédio, para o caso de alguém decidir responsabilizá-lo. Francisco brincou sobre o risco de o subordinado ser preso, segundo a imprensa italiana: “Pelo menos, vou te visitar na cadeia.”
Enfurecido, Salvini atacou o polonês nas redes sociais e em entrevistas. “Espero que ele pague a conta atrasada de 300 mil euros”, esbravejou. Grupos de católicos conservadores fizeram coro. Disseram que o auxiliar do papa transgrediu a lei para resolver um problema social e, assim, transmitiu uma mensagem perigosa e errada aos fiéis. O débito ainda não foi saldado, mas ninguém ousou cortar a eletricidade do prédio novamente. Krajewski tampouco amargou uns dias de prisão.
Em fevereiro de 2015, o esmoleiro concretizou um dos principais desejos do Santo Padre: a inauguração de duchas gratuitas para moradores de rua na Praça de São Pedro. Os sanitários com os chuveiros, também usados por turistas, ficam logo abaixo das janelas do Palácio Apostólico, onde o pontífice despacha. A iniciativa pretende restituir um pouco de dignidade aos sem-teto. Atualmente, as duchas atendem cerca de três mil pessoas por mês. Os frequentadores dos sanitários masculinos ou femininos não apenas se lavam como ganham roupas íntimas limpas e um kit de higiene. Se quiserem, podem cortar o cabelo e passar por um ambulatório.
Um dos guardiões dos banheiros é o brasileiro Zaqueu Duarte, de 46 anos. Ele distribui senhas e comida entre os usuários, organiza-os em fila e, no final da tarde, limpa as duchas do lado masculino. É oficialmente um voluntário, mas recebe uma graninha pelo trabalho a que se dedica desde o início de 2020. Nascido em Caratinga (MG), viveu na região de Milão por dezesseis anos e voltou para o Brasil em meados da década passada. Decidiu retornar à Itália em 2018, depois de ficar desempregado. Sem dinheiro, acabou indo parar num dormitório público de Roma. Em 2019, escreveu uma carta ao papa e ganhou 150 euros. “Eu tinha pedido 100, na verdade. Era o necessário para renovar minha carteira de motorista.” Ele diz que começou a colaborar com a Esmolaria porque desejava “ocupar o tempo”. Hoje, mora de favor num hotel conveniado com o Vaticano e ainda está à procura de emprego.
No lado oposto das duchas, encontra-se o Palácio Migliori, construído por uma família nobre de Roma no final do século XVIII e doado à Santa Sé na década de 1930. Tem quatro andares e um amplo terraço, de onde se veem a cúpula da basílica e as estátuas dos apóstolos. Uma congregação religiosa feminina utilizou o edifício de dois mil metros quadrados por muitos anos até desocupá-lo em 2019. Houve quem cogitasse arrendar o prédio inteiramente reformado para uma rede hoteleira, mas Francisco deu a última palavra: o palácio iria abrigar moradores de rua.
“Foi um gesto simbólico forte”, afirma Carlo Santoro, diretor do imóvel e membro da Comunidade de Sant’Egidio, que administra o albergue em parceria com a Santa Sé. Entre os 34 hóspedes, há italianos e estrangeiros, homens e mulheres, que chegam no final da tarde e permanecem até a manhã seguinte. O edifício possui dezesseis quartos, treze banheiros, uma capela, uma sala no térreo para atendimento médico e uma grande cozinha onde são preparados o jantar e os lanches que se distribuem aos sem-teto na Praça de São Pedro. Numa terça-feira de junho, 110 pessoas dormiam em torno da basílica.
O palácio foi decorado com alguns dos presentes já recebidos por Bergoglio, como quadros e oratórios. O pontífice esteve na inauguração do albergue, em novembro de 2019. Acompanhado do esmoleiro, sentou-se com os hóspedes no refeitório para conversar. Ao lado da mesa, podia-se ver uma pintura que retrata Francisco no meio da natureza, junto de um jumento. Krajewski explicou que a tela celebra a Laudato Si’, encíclica do papa que critica o consumismo e pede a união de todos contra a degradação ambiental do planeta. O argentino debochou: “Não sabia que eu tinha uma selfie com você, Konrad.”
Francisco ampara os pobres no Vaticano do mesmo modo que acolhia os desvalidos quando era arcebispo de Buenos Aires, entre 1998 e 2013. “Bergoglio conhecia pessoalmente muitos sem-teto e deixava que dormissem na porta da Cúria Metropolitana”, conta o italiano Marco Gallo, integrante da Comunidade de Sant’Egidio que vive na capital argentina há três décadas. Ele travou os primeiros contatos com o atual pontífice em 1996, na Villa 21, uma favela no bairro portenho de Barracas. Também organizou o livro El Pensamiento Social y Político de Bergoglio y Papa Francisco, que reúne textos e homilias do jesuíta escritos a partir dos anos 1970. “Em Bergoglio, existe uma forte intenção de definir os pobres como o centro e a prioridade absoluta, não só para o cristianismo, mas para a sociedade em seu conjunto”, ressalta o organizador na introdução da coletânea. Em 2007, quando foi relator de uma conferência do episcopado latino-americano na cidade paulista de Aparecida, o então arcebispo defendeu num discurso as diretrizes que hoje orientam seu pontificado: “Uma igreja que anuncia a palavra e celebra os sacramentos, mas não pratica o serviço da caridade, não é uma igreja de Jesus Cristo.”
Na juventude, Bergoglio se entusiasmou com o peronismo e sua política de justiça social. Depois de ordenado, virou adepto da Teologia do Povo, variante argentina e não marxista da Teologia da Libertação. Ele sofreu, ainda, uma forte influência do Concílio Vaticano II, série de encontros realizados entre 1962 e 1965 na Santa Sé, em que mais de 2.500 sacerdotes de diferentes países refletiram sobre a Igreja Católica e suas relações com o mundo. Das conferências, saíram diversas resoluções que não só aposentaram velhos ritos do catolicismo como preconizaram a opção pastoral pelos mais pobres.
A grande incógnita é até que ponto Francisco conseguirá promover essa igreja que renuncia à riqueza para se irmanar com os necessitados. Wojtyla, o primeiro papa pop, deu especial atenção à geopolítica. Ratzinger focou na teologia, e Bergoglio vem se inclinando para as questões sociais, o que inclui a defesa dos imigrantes, do meio ambiente e de um sistema econômico menos desigual. “Me parece impossível dissociar os pobres dos vinte séculos de história da igreja. Pode-se tentar escondê-los ou fingir que não existem, mas a relação deles com o cristianismo é indestrutível”, afirma o arcebispo italiano Vicenzo Paglia, estudioso do assunto. “Não devemos nos aliar aos necessitados por razões meramente sociais, políticas ou assistenciais. Os pobres merecem acolhimento por seus valores sacramentais. É o próprio Cristo que se faz presente neles.” Paglia enxerga o argentino como o pontífice dos tempos modernos que mais avançou nessa direção, mas diz que ele ainda precisará percorrer um longo caminho até sedimentar sua marca. A resistência dentro e fora do Vaticano é grande.
O padre Andrea Conocchia, da paróquia de Torvaianica, diz que muitos sacerdotes da sua geração (ele tem 46 anos) consideram a caridade uma atividade menor. Mas reconhece que, aos poucos, a cultura latino-americano de padres menos avessos às ruas está se disseminando na igreja europeia. No Vaticano, a crítica à filantropia inevitavelmente resvala na higiene precária, na saúde comprometida e no desequilíbrio mental de muitos dos protegidos por Sua Santidade na porta da basílica mais importante do catolicismo. É comum ver trapos, restos de comida e outros tipos de lixo espalhados por ali, já que Francisco vetou que os pertences deixados pelos sem-teto sejam recolhidos. “Inúmeros fiéis, sobretudo os jovens, não se interessam pela igreja dos pobres e, sim, pela igreja de Deus. Até porque a dicotomia rico-pobre não faz sentido. Há vários ricos que são pobres de espírito e também precisam de conforto espiritual”, argumenta Roberto de Mattei, presidente da Fondazione Lepanto, uma instituição conservadora crítica ao pontificado de Bergoglio.
O historiador do cristianismo Massimo Faggioli, professor de teologia da Universidade Villanova, na Filadélfia, critica o silêncio do esmoleiro sobre a situação da Polônia. O país está sob o governo do presidente Andrzej Duda, que integra o partido de ultradireita Lei e Justiça. O político e a Igreja Católica polonesa são aliados na tentativa de criminalizar os LGBTQ+. Muitos no clero local consideram Krajewski um radical por causa de seu perfil progressista. Publicamente, no entanto, o cardeal nunca polemizou sobre os rumos que o país vem tomando. “Um polonês num cargo eclesiástico tão importante tem grande poder em sua terra natal. É uma escolha não falar. Ele repete uma ambivalência que se vê claramente na atuação do papa”, afirma Faggioli. Para o professor, Francisco faz a linha “morde e assopra”, recuando diversas vezes em questões cujo debate ele mesmo incentivou. O Sínodo da Amazônia, que se realizou em outubro de 2019, é o exemplo mais clamoroso: após os bispos decidirem pela ordenação de homens casados na região, o argentino optou por não avalizar a resolução.
Krajewski acha inútil conjecturar sobre o futuro da Esmolaria após o pontificado de Bergoglio. O importante, diz, é “fazer agora”, ater-se ao presente. Em julho, num fim de tarde, ele recebeu um telefonema de Anzio, cidade a 65 km de Roma. Havia por lá um lote de Coca-Cola disponível para doação. Como não encontrou ninguém que pudesse buscar a bebida, o polonês subiu na van branca da Esmolaria, dirigiu sozinho até Anzio e retornou ao Vaticano quase à meia-noite. No dia seguinte, no lanche distribuído aos sem-teto, todos tomaram Coca-Cola. “Jesus saía de casa pela manhã e fazia o bem indiscriminadamente. É o que tentamos repetir aqui.”