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    Ilustração: Carvall

questões urbanas

O Estatuto da Cidade, vinte anos depois

Legislação trouxe avanços, mas sua aplicação esbarra na falta de planejamento sobre política urbana

Victor Carvalho Pinto | 29 out 2021_16h24
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As cidades são sistemas de alta complexidade, cujo bom funcionamento depende da ação coordenada de diversos agentes, públicos e privados, mediada pelo direito urbanístico. Nas palavras da Constituição, a política urbana deve propiciar o “pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. Uma vez que a cidade não é algo isolado do ambiente, o processo de urbanização tem que se inserir harmoniosamente na natureza, de maneira a preservar os recursos naturais e os ecossistemas. Além disso, deve ser acessível às pessoas de todas as faixas de renda, o que depende de uma ampla oferta de imóveis para venda ou locação nas áreas dotadas de infraestrutura e da regularização de assentamentos informais consolidados.

No Brasil, tudo isso é regulado por um detalhado arcabouço normativo de direito urbanístico produzido por todos os entes da Federação. A Constituição de 1988 atribuiu à União competência para estabelecer regras gerais sobre o assunto, a serem suplementadas pelos estados e municípios. Determinou também que a propriedade cumpra uma função social e que toda cidade com mais de 20 mil habitantes aprove um plano diretor capaz de ordenar a urbanização ou a edificação de determinados terrenos, para dar pleno aproveitamento à infraestrutura instalada. Já existiam leis urbanísticas anteriores à Constituição – por exemplo, sobre desapropriações (1941) e loteamentos (1979) –, porém uma legislação abrangente a respeito do tema só surgiria em 2001, quando foi aprovada a Lei 10.257, conhecida como “Estatuto da Cidade”.

Com duas décadas completadas em julho, o Estatuto estabeleceu diretrizes de política urbana a serem observadas pelos municípios; regulamentou o conteúdo e o processo de elaboração dos planos diretores; instituiu novos instrumentos urbanísticos e atribuiu ao Ministério Público a defesa da ordem urbanística, além de tipificar como improbidade administrativa uma série de ações ou omissões por parte dos prefeitos.

As diretrizes incorporaram os principais objetivos da política urbana, que abrangem aspectos sociais, econômicos, financeiros, ambientais e políticos. Entre eles, a garantia do direito a cidades sustentáveis; a oferta de equipamentos, serviços públicos e transporte adequados à necessidade da população; a gestão democrática; a cooperação entre governo, iniciativa privada e terceiro setor; a contenção dos efeitos negativos do crescimento urbano sobre o meio ambiente; o desestímulo à retenção especulativa de imóveis urbanos; a prevenção de desastres; preservação do patrimônio cultural e do meio ambiente; consulta à população em empreendimentos de grande porte; a regularização fundiária de assentamentos informais de baixa renda e a simplificação da legislação urbanística, entre outros.

Os novos instrumentos servem a um amplo leque de objetivos. Permitem, por exemplo, que proprietários sejam obrigados a edificar em lotes ociosos, a fim de coibir a retenção especulativa de imóveis em áreas dotadas de infraestrutura, mediante a elevação da alíquota do IPTU e a desapropriação com pagamento em títulos públicos. Outro ponto garantido pelo estatuto é o direito de preempção, segundo o qual a prefeitura tem preferência na compra de imóveis em áreas nas quais pretende investir. Também foram previstas operações urbanas consorciadas para captar recursos no mercado a fim de recuperar áreas degradadas. Pelo consórcio imobiliário, a prefeitura realiza loteamento ou edificação em terreno privado e devolve ao proprietário unidades de valor equivalente. O Estatuto também prevê o usucapião coletivo, para simplificar a regularização de comunidades informais existentes há mais de cinco anos sem oposição do proprietário.

Depois da aprovação do Estatuto da Cidade, foram editadas outras leis importantes em matéria de desenvolvimento urbano, tais como as que dizem respeito ao saneamento básico (2007); à regularização fundiária (2009 e 2017); aos resíduos sólidos (2010); à mobilidade (2012); à defesa civil (2012); às regiões metropolitanas (2015) e à liberdade econômica (2019). O próprio Estatuto foi alterado por dez leis e duas medidas provisórias ao longo de suas duas décadas de existência.

O maior avanço do Estatuto da Cidade foi, sem dúvida, a separação operada entre o direito de construir e o direito de propriedade. Até então, considerava-se, com base na definição do Código Civil, que o proprietário de um imóvel, rural ou urbano, poderia nele construir o que quisesse, desde que não prejudicasse os vizinhos e respeitasse os “regulamentos administrativos”. As normas de zoneamento eram consideradas um tipo de regulamento que estaria restringindo o direito de propriedade.

O Estatuto da Cidade rompeu com esse conceito. Se vincula à propriedade do lote um “potencial construtivo básico” – que pode ser exercido independentemente de qualquer pagamento – também permite ao plano diretor definir um “potencial construtivo máximo”, que só pode ser alcançado mediante o desembolso de uma contrapartida ao município. Nas operações urbanas consorciadas, o Estatuto da Cidade autoriza a venda, pelas prefeituras, de certificados de potencial adicional de construção (CEPAC), regulamentados e fiscalizados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que podem ser livremente negociados em bolsa de valores e que não estão vinculados a qualquer imóvel. Esse instrumento foi empregado pelos municípios de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba, que, dessa forma, arrecadaram bilhões de reais – uma experiência, aliás, inédita em todo o mundo.

É preciso registrar, todavia, que muitos instrumentos criados pelo Estatuto da Cidade deixaram de ser aplicados, como o direito de preempção, o direito de superfície, o consórcio imobiliário e a usucapião coletiva. Outros tiveram aplicação limitada, como o parcelamento ou utilização compulsórios e a outorga onerosa de alteração de uso. Alguns, é verdade, foram adotados, no entanto com regras muito diferentes de um município para outro; é o caso da transferência do direito de construir e do estudo de impacto de vizinhança.

Houve municípios que criaram outros instrumentos, com denominações diversas. Entre esses, destacam-se o “reajuste de terrenos” – pelo qual imóveis antigos são permutados por novos, viabilizando assim operações de renovação urbana – e a “concessão urbanística”, em que se delega a uma empresa privada escolhida por licitação a obrigação de implementar um projeto urbanístico de interesse do município.

A exemplo do meio ambiente e do patrimônio histórico, a ordem urbanística não diz respeito ao interesse de um ou outro segmento específico, mas sim ao interesse difuso da sociedade, que nem sempre encontra representação adequada nas entidades da sociedade civil organizada. Por esse motivo, um desenvolvimento positivo do Estatuto da Cidade foi uma atuação maior do Ministério Público em matéria de política urbana.

A principal limitação do Estatuto da Cidade foi não ter estruturado um sistema de planejamento territorial. Apenas o plano diretor foi regulamentado – e de forma muito genérica. Além disso, não se definiu um plano urbanístico de escala intermediária, próprio para o planejamento de bairros. Resulta dessa omissão que instrumentos fundamentais, existentes antes da aprovação do Estatuto da Cidade, tais como o zoneamento e a desapropriação, não ficaram claramente vinculados a nenhum plano urbanístico – e por isso acabaram sujeitos apenas à vontade política de prefeitos e vereadores.

Paralelamente, outras leis passaram a exigir planos municipais sobre setores do desenvolvimento urbano, como habitação, mobilidade, saneamento básico e resíduos sólidos, sem que haja um sistema de planejamento territorial capaz de coordená-los.

Um sistema dessa natureza, a exemplo dos que existem nos países desenvolvidos, tipifica os planos urbanísticos de modo exaustivo. Cada plano tem sua escala, conteúdo e estrutura formal regulamentada, não de modo genérico, mas sim de maneira padronizada por normas técnicas, que definem inclusive a cartografia a ser empregada. Todos os instrumentos de política urbana são vinculados a um ou mais planos e não podem ser empregados fora desse contexto. Cria-se, assim, uma “reserva de plano”, impedindo que intervenções ou normas importantes para a cidade sejam aprovadas à revelia do sistema de planejamento.

Em conjunto com uma disciplina completa dos instrumentos de política urbana, esse sistema de planejamento compõe o que nações como França e Itália denominam “código de urbanismo”, o qual reúne toda a legislação necessária à execução da política urbana. Com isso, os municípios podem elaborar e executar os planos independentemente de qualquer regulamentação adicional.

Nos países unitários, como os europeus que acabamos de mencionar, os códigos de urbanismo são leis nacionais. Já em federações, de que são exemplos o Canadá, os Estados Unidos e a Austrália, eles são editados por entes subnacionais, como as províncias e os estados.

O Brasil é uma federação centralizada, o que se reflete nas competências definidas pela Constituição para legislar sobre direito urbanístico. Como já se disse antes, cabe à União estabelecer normas gerais e, aos estados, suplementá-las. Assim sendo, a codificação do direito urbanístico, mediante a tipificação dos planos e uma disciplina mais detalhada dos instrumentos de política urbana, pode ocorrer tanto por alteração do Estatuto da Cidade quanto pela edição de leis estaduais. As unidades da federação que mais avançaram nesse aspecto foram o Rio Grande do Sul, que aprovou uma Lei de Desenvolvimento Urbano ainda em 1994, e Santa Catarina, que instituiu uma Lei de Responsabilidade Territorial em 2018.

Uma presença estadual maior no desenvolvimento urbano seria muito bem-vinda, pois abriria um rico campo de experimentação institucional alternativo à centralização de Brasília e à fragmentação de 5.570 municípios.

Ao estabelecer diretrizes e instrumentos de política urbana, o Estatuto da Cidade deu concretude para o princípio constitucional da função social da propriedade e estabeleceu as bases do direito urbanístico brasileiro. Sua efetiva aplicação ainda depende, no entanto, da estruturação de um sistema de planejamento territorial que institucionalize o urbanismo no país, garantindo que a política urbana seja tecnicamente fundamentada e politicamente legitimada. 

Se a cidade é um organismo vivo, o direito urbanístico é seu DNA – e está em permanente evolução.

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