Quando Luis Suárez deu a segunda mordida – que a gente saiba – da carreira, num jogo entre o Liverpool e o Chelsea, o psicólogo inglês Thomas Fawcett, da Universidade de Salford, declarou à BBC ser bastante provável que o atacante uruguaio viesse a morder novamente. A gente acabou de ver que os ingleses não entendem muito de futebol, mas parece que os psicólogos ingleses sabem tudo de mordidas.
A partir da mordida e da suspensão imposta pela Fifa, instaurou-se um aguerrido Fla-Flu em torno do assunto. Descartemos, por motivos óbvios, a opinião dos uruguaios. Mas mesmo entre nós, brasileiros, não há consenso.
A Fifa não tinha muito o que fazer. Na Copa de 94, ela puniu com oito jogos de suspensão o italiano Tassotti, que aplicara um cotovelaço no rosto do espanhol Luis Enrique, que o juiz não viu mas as câmeras detectaram. Claro que agora, mesmo eliminados, os italianos não iam deixar barato.
Havia o passado de Suárez. As suspensões por sete e dez jogos nas federações holandesa e inglesa. A acusação de racismo pelo francês Evra. A Fifa estava encurralada, sem outra opção diante do que os advogados dos endinheirados réus brasileiros costumam chamar de linchamento público. Perdeu, Luisito: plantou, colheu.
Outro dia debati com um amigo a história da . Não há como ser contra, mas como a França tinha vencido Honduras com um dos gols devidamente dedurado pela tecnologia, desenvolvi um raciocínio meio complicado: em jogos como aquele, era evidente que a França dominaria, atacaria e concluiria mais; portanto, a acabaria ajudando os mais fortes, já que era muito maior a probabilidade de lances semelhantes acontecerem a favor de quem dominasse, atacasse e chutasse mais. Meu amigo contra-argumentou com estilo: segundo ele, os juízes têm a tão inexplicável quanto indiscutível tendência de, nas dúvidas, tomarem decisões favoráveis aos mais fortes. Com a tecnologia, isso seria anulado e os mais fracos se beneficiariam. No dia seguinte, Costa Rica venceu a Itália com um gol rapidamente confirmado pelo chip. Um a zero para a Costa Rica, um a zero para o meu amigo.
De todo modo, não posso disfarçar minha contrariedade com o excesso de interferências off-campo em partidas de futebol. Foi ótimo ter acontecido a confusão com o suposto impedimento de Fred no jogo contra Camarões. Alguém programa ou aciona a tecnologia. E se esse alguém erra? O gol de Fred provou que isso pode acontecer. (Algo parecido ocorreu no jogo entre Corinthians e Vasco, em São Januário, pela Libertadores de 2012. O Vasco teve um gol anulado por impedimento. O tira-teima da Fox indicava que o gol fora legal, o da Globo acusava impedimento.)
Futebol envolve malícia, catimba, malandragem, mas tudo tem limite. A questão é onde posicionar a linha de equilíbrio. Vi gente argumentando que, se uma mordidinha à toa merece nove jogos de suspensão e audição ininterrupta da obra completa de Oswaldo Montenegro, o que não mereceriam as cotoveladas e soladas por cima da bola que temos visto em todos os jogos da Copa?
É uma discussão dos diabos. Todos os esportes têm suas questões éticas, suas tripudiações veladas. No basquete, por exemplo, uma simples cesta de bandeja vale os mesmos dois pontos que uma enterrada, mas uma enterrada levanta o moral do time e baixa a bola do adversário. No vôlei, fazer a bola explodir no peito de alguém do outro lado da rede vale tanto quanto qualquer outro ponto, mas a medalha é uma humilhação para quem leva. No futebol, certas divididas, mesmo que disputadas com lealdade, podem machucar muito mais do que qualquer agarrão. Entretanto, o agarrão – a melhor maneira de parar o adversário sem machucá-lo – é considerado antijogo e sumariamente punido com cartão amarelo. É assim que funciona.
Morder, no futebol, é um exagero. Suárez merecia ser punido. Mas o futebol transformado num big brother insuportável, com câmeras espalhadas por todos os cantos – a ponto de ver o treinador da Alemanha sorvendo melecas –, e isso servir para distribuir punições e transformar o esporte mais espetacular que existe num jogo das Carmelitas contra as Irmãs Clarissas, aí é inadmissível. Debaixo desse argumento, a punição foi excessiva.
Minha opinião: um jogo de suspensão para Luis Suárez. Caso o Brasil passe pelo Chile e o Uruguai pela Colômbia, mais um. A Copa não é aqui, uai?