Ma fin est mon commencement é um rondó escrito por Guillaume de Machaut, trovador francês do século XIV. Três linhas melódicas se entrelaçam para expor musicalmente o que é indicado pelos versos de abertura: a noção de uma esfericidade perfeita – ma fin est mon commencement et mon commencement est ma fin (“meu fim é meu começo e meu começo é meu fim”). Trata-se de um palíndromo musical. Lido progressivamente ou de trás pra frente, do fim para o começo, a linha melódica articula a mesma seqüência de notas e durações. Dizem que Machaut entregava ao cantor apenas metade da linha, pedindo para que este a cantasse nos sentidos de ida e, depois, de volta. Criou assim uma peça de caráter quase matemático, feita de espelhamentos entre vozes, rebatimentos e simetrias. No entanto, nada disso pode ser percebido apenas de ouvido. É o próprio texto da música que vai apontar para esses detalhes construtivos, adquirindo o duplo sentido de mensagem espiritual e comentário da forma musical. O resultado é uma canção singelamente bela, que respira naturalmente, e que é, ao mesmo tempo, profundamente autoconsciente.
O primeiro verso da música de Machaut aponta para o dilema temporal do homem, o fato de que o começo de uma vida humana é também seu encaminhamento inexorável para o fim. Nascemos e já começamos a morrer. Ao mesmo tempo, somos profundamente marcados pela experiência da recorrência cíclica, de contínuos renascimentos do mundo que nos cerca. Apesar de seus inúmeros ciclos, a percepção do tempo biológico (humano) tende para o linear; enquanto a do mundo natural, apesar de suas inúmeras linhas com princípio-meio-fim, tende ao circular. “O mundo passa por mim todos os dias, enquanto eu passo pelo mundo uma vez”, é o ensinamento valioso de um samba da Velha Guarda da Portela. A filósofa Hannah Arendt expressou algo semelhante com a seguinte frase: “É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta em um universo em que tudo o que se move o faz em um sentido cíclico”.
Quando Machaut escreveu esse rondó, a ideia de equacionar começo e fim operava ainda no contexto de uma cultura profundamente cristã. Morrer significava, de fato, começar uma nova vida, em outro plano. A morte tornava-se apenas uma passagem para a vida, que por sua vez desdobrava-se em nova morte. Tal circularidade refletia a forma do cosmo, do universo e do divino. A ideia clássica de Pascal, de que Deus é uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma, possui uma longa história. Ela está presente no Corpus Hermeticum, do século III, e será retomada mil anos depois pelo influente bispo Alain de Lille, chegando até o Renascimento, notavelmente com Giordano Bruno no século XV. A forma esférica do cosmo associou-se também com a própria noção de harmonia musical, sendo a proposição de Pitágoras – de uma música inaudível gerada pelo movimento das esferas celestes – e o desenvolvimento posterior que ela ganha com Kepler – na sua Harmonices Mundi -, dois dos mais famosos exemplos. Apesar do longo percurso histórico, muitos outros artistas e pensadores parecem ter intuído diretamente da experiência concepções semelhantes sobre a circularidade do mundo. Nietzsche concebeu um ritornelo cósmico com seu “eterno retorno”, Heidegger falou do real como “esfera”, Arthur Koestler mencionou a “nostalgia das coisas de se tornarem esferas”, e até Van Gogh chegou a dizer que “a vida é provavelmente circular” – e é claro como em muitos quadros dele as pinceladas parecem obedecer a uma força centrípeta, cercando os objetos como se fossem mariposas ao redor de lâmpadas. Sim, a vida é linear e circular. E mesmo para os que desacreditaram numa vida pós-morte, a verdade perdura intacta. Verdade que, como muitas outras disposições complexas e aparentemente paradoxais diante do mundo, é melhor expressada em música do que em palavras. Ma fin est mon commencement et mon commencement est ma fin.