O deputado Alexandre Leite (DEM-SP) tinha 14 anos quando pegou em uma arma pela primeira vez. Depois de muita insistência, seu irmão dez anos mais velho, Milton, aceitou levá-lo ao clube de tiro que frequentava, na capital paulista. Na pista de grama onde estavam dispostos os alvos metálicos, o instrutor posicionou o adolescente e soltou seus braços. Alexandre apertou o gatilho. “Plim, plim, plim, fazia aquele barulho. Derrubei dez em seis segundos”, lembrou com um sorriso tímido no rosto. Das quinze balas, cinco não atingiram o alvo. “Era uma nove milímetros. A primeira arma a gente nunca esquece.”
Segundo o deputado, hoje com 30 anos, todos se surpreenderam com a precisão. Desde então ele não parou mais de atirar. Aos 25, idade em que a legislação atual permite a posse, Leite passou a colecionar. Ele não informa quantas armas possui no quarto escondido em sua casa, onde armazena também as munições e o equipamento para fabricá-las. Mas mostra com orgulho algumas de suas preferidas. Em seu celular, está salva uma fotografia da Colt 1911 calibre .45, peça clássica de colecionador, mas cujo exemplar tem um toque especial, o cabo de marfim. É um modelo antigo e pesado. “Não gosto é dessas de plástico de hoje em dia”, menosprezou, em conversa com a piauí no gabinete da liderança do DEM na Câmara na quarta-feira, 21 de agosto.
No início do ano, Leite estava no aeroporto em São Paulo com destino a Brasília. Na bagagem de mão, levava consigo a Colt 1911 para uma competição. Para sua surpresa, o procedimento de embarque havia mudado. Em vez de entregar a arma para a Polícia Federal levar ao piloto, que a guardaria no cofre do avião e a devolveria no destino, ele foi orientado a despachá-la junto com as malas dos passageiros. “Fiquei com medo de a Gol extraviar”, relatou. Para evitar um final infeliz, postou nas redes sociais. O deputado chegou à capital federal e reencontrou seu revólver, mas correu alarmado para a Câmara. Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Casa, pediu um projeto de lei para tramitar com urgência e derrubar o procedimento imposto pela Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). “Quem não fica apavorado?”, questionou Leite, ao aventar o uso indevido que um funcionário poderia fazer. Ele tentou emplacar uma emenda em um projeto existente, mas desistiu. A Justiça acabou derrubando a portaria da Anac.
Agora, Leite se vê novamente com o poder de mudar a regulamentação da prática que o fascina desde menino. Ele é o relator do projeto de lei que flexibiliza o porte e posse de armas de fogo previsto para ser votado em plenário nesta terça-feira (27). A proposta substitui o decreto apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro que, polêmico, foi vetado pelo Congresso, com alterações do Estatuto do Desarmamento. Na quarta passada, a Câmara aprovou outro projeto, oriundo do Senado, que permite a posse de arma em toda a extensão da propriedade rural, não apenas na sede, como previsto até então.
Seu parecer reduz a idade mínima de 25 para 21 anos para o cidadão adquirir e registrar uma arma, desde que comprovados bons antecedentes e com apresentação de laudo psicológico. A ideia, afirmou Leite, é gradualmente diminuir a idade para 18 e quem sabe até 16 anos, caso a maioridade penal seja aprovada. Ao mesmo tempo, defendeu o relator, é necessário aumentar as penas para crimes relacionados ao uso ilegal da arma de fogo. A Polícia Federal pode negar a solicitação, mas precisará fundamentar sua decisão. Será permitido o registro de até seis armas, incluindo alguns tipos de rifles.
Os profissionais da área de segurança que usam arma de fogo em sua atividade podem ter o porte, e o relator ampliou o leque de categorias incluídas como oficiais de Justiça, agentes de segurança do sistema socioeducativo e peritos criminais. Também estarão liberados caçadores e colecionadores. Uma passagem do texto que o relator destaca é aquela que estipula que “os órgãos de segurança pública passam a prescindir da autorização do comando do Exército para a aquisição de armas de fogo de uso restrito, como são as armas de mais grosso calibre fundamentalmente necessárias ao combate ao crime”.
Se um cidadão que não se enquadra nesses grupos quiser o porte, precisará comprovar “efetiva necessidade”, o que o projeto define como o trabalho com transporte de valores e de materiais controlados ou o recebimento de ameaça contra si ou dependente. O decreto do governo eliminava a exigência de a pessoa interessada comprovar a “efetiva necessidade” de ter uma arma, mas a menção vaga a “ameaça” do parecer já abriu o flanco das contestações na Câmara. Lideranças de partidos mais à esquerda encomendaram pareceres adiantando oposição ao texto. Outros à direita como o PRB estavam entusiasmados. “Dei uma palavra na reunião do partido que ninguém mais ousou dizer que não concordava com o projeto”, afirmou o deputado João Roma (PRB-BA) a Leite, no gabinete do DEM.
Vestindo um terno preto com textura quadriculada, camisa azul-escuro e gravata vermelha, Leite sentou à cabeceira da mesa de reunião, que, durante a conversa, foi convertida em mesa de jantar. Um bufê com lombo e farofa foi servido e deputados se sentaram ao redor. Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) cochichou em seu ouvido. Queria saber se a fabricante de armas Taurus havia doado para suas campanhas quando a legislação ainda permitia financiamento de empresas. Não, respondeu. Filho do ex-presidente da Câmara Municipal de São Paulo, o vereador Milton Leite (DEM), Alexandre teve construtoras entre suas doadoras. Em 2010, sua primeira campanha para deputado federal, e em 2014, Carioca Engenharia, Andrade Gutierrez, UTC e Mendes Júnior, entre outras, patrocinaram a empreitada política.
As atenções se voltaram para Sóstenes Cavalcante, pastor aliado de Silas Malafaia. Os deputados apostaram que ele votaria contra o projeto por motivação religiosa, mas o evangélico os surpreendeu dizendo que o apoiaria por ser de relatoria de seu partido. “Democratas 1, Jesus 0”, divertiu-se Kim Kataguiri (DEM-SP).
Leite começou a ser sabatinado. “Quanto tempo demora o registro? Vai acabar como monopólio da Taurus?” O relator falava sobre a diferença entre seu projeto e o do governo. Bolsonaro, segundo ele, radicalizou a liberação da arma sem tornar punições mais severas em contrapartida. Seu relatório pretende equilibrar esse aspecto, mirando o modelo dos Estados Unidos, onde há mais liberdade para praticantes de tiro, mas penas duras. “Precisamos fazer uma introdução muito gradativa. Senão teríamos uma população carcerária maior do que a em liberdade”, comparou. Leite usa uma barbicha e um bigode fino. Até tem algumas armas da Taurus, mas gosta mesmo é das importadas. Viaja aos Estados Unidos e a Barcelona, na Espanha, para adquirir peças. Sério, sorri ao falar de tiro. “Las Vegas é a Disneylândia, o paraíso. Não tem restrição, ao contrário, tem muita opção”, maravilhou-se. “Aqui a gente sofre para comprar uma caixinha de munição qualquer.”
A facilitação do acesso a armas de fogo foi uma das principais bandeiras de campanha de Bolsonaro. O decreto que ele apresentou com esse intuito, entretanto, foi rejeitado pelo Congresso ao incluir previsão de posse a categorias diversas como caminhoneiros, advogados e jornalistas envolvidos com noticiário policial e afrouxar as exigências para obtenção de registro. Leite reconhece que o tema jamais obterá unanimidade, mas se dispôs a “sanar as dúvidas, tópico por tópico” de seus colegas, dedicando todo seu tempo até a votação a isso. Alguém disse que ele era de direita. “Não sou”, rebateu. “Sou um conservador liberal. Mas publica aí que sou de esquerda no DEM, assim consigo votos até do PT”, emendou.
Ao menos uma vez por semana, Leite tira o bottom de deputado, veste colete, óculos e boné de proteção. Aos domingos, das 9h às 14h, ele vai para o clube de tiro e dispara pelo menos cinquenta vezes o gatilho, para esquecer as batalhas na Câmara. E diz que volta “forrado de pólvora” para o almoço em família, onde a política é sempre o prato principal.