A reportagem a seguir faz parte de um conjunto de textos sobre o marco temporal, a tese que, se aprovada, mudará o destino dos povos indígenas do Brasil. Os outros dois textos são de autoria da escritora e historiadora Micheliny Verunschk (A guerra contínua) e da jornalista Meghie Rodrigues (Sua casa não vai ser tomada para virar terra indígena).
No dia 30 de agosto, o Supremo Tribunal Federal retomou um julgamento que se arrasta há anos e que mobiliza a atenção de indígenas, ambientalistas e ruralistas. Os ministros do STF vão decidir o destino de uma área ocupada por indígenas dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani. A área é reivindicada também pelo governo de Santa Catarina, que busca a reintegração de posse daquelas terras. O território em disputa é pequeno – tem 8 hectares, o equivalente a oito campos de futebol –, mas o desfecho do julgamento terá grande repercussão para todos os povos indígenas do Brasil.
Isso porque o Supremo está avaliando se o chamado “marco temporal” pode ser aplicado a esse caso. Entende-se por marco temporal a tese jurídica de que os povos originários só poderiam pleitear a demarcação de terras nas quais estivessem vivendo em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Se, nessa data, os indígenas não estivessem ocupando o território – qualquer que seja o motivo –, eles automaticamente perderiam o direito de reivindicar para si aquela área. A tese do marco temporal – que, num contexto bastante distinto do atual caso, chegou a ser adotada pelo STF num julgamento em 2009 – é duramente criticada pelos indígenas, por uma razão elementar: muitos povos foram expulsos de suas terras tradicionais antes dessa data, e não raro por obra de agentes do Estado.
A área sob julgamento foi ocupada pelos indígenas na primeira década deste século – depois, portanto, do marco temporal. O julgamento é importante porque o entendimento dos ministros do Supremo para esse caso passará a valer para dezenas de outras ações envolvendo o marco temporal que estão paralisadas no tribunal à espera dessa decisão.
Até agora, dois ministros já votaram pela rejeição do marco temporal: Edson Fachin, relator do processo, e Alexandre de Moraes. Kassio Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro, votou pela adoção do marco. O ministro André Mendonça pediu vista em junho e, na semana passada, devolveu o caso para julgamento – um compromisso que havia assumido com Rosa Weber, presidente do STF, que não queria se aposentar sem dar seu voto. Ela só fica no tribunal até o começo de outubro.
Mendonça, o ministro “terrivelmente evangélico” nomeado pelo ex-presidente, foi o primeiro a votar na retomada do julgamento. Brasílio Priprá, liderança dos xoklengs que acompanha o caso desde o início, teve a oportunidade de conversar com o magistrado. Para cativá-lo, recorreu à fé que o ministro tem em comum com muitos xoklengs que frequentam a Assembleia de Deus e outras igrejas neopentecostais. Disse a Mendonça que ele, como ministro e pastor, tem compromisso com a justiça dos homens, mas também com a justiça divina. Saiu da conversa sem saber como o ministro vai votar. “Ele não abriu nada, não disse sim nem não”, afirmou Priprá à piauí.
Priprá tem 65 anos de idade e trabalhou como funcionário da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) durante catorze anos. Conhecedor da política indigenista brasileira, tem atuado como embaixador informal do seu povo em Brasília. Em sua foto de perfil no WhatsApp, ele usa o registro visual de uma sessão do STF em 2019 na qual falou em defesa da causa indígena. “Tenho conversado com vários ministros a pedido das lideranças”, afirmou. O representante dos xoklengs já esteve também com Rosa Weber, Cármen Lúcia, Edson Fachin e Luiz Fux, e saiu convencido de que estão alinhados com os interesses dos povos indígenas. “Esses ministros nos deixaram um pouco mais tranquilos.”
O líder dos xoklengs espera que o STF derrube a tese do marco temporal e reconheça o direito dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam – como, aliás, está escrito na Constituição. Mas nem por isso está otimista. O voto de Alexandre de Moraes deixou os indígenas muito preocupados: embora reconheça que não existe marco temporal, o ministro abre a possibilidade para que os donos de propriedades rurais situadas em terras indígenas sejam indenizados para desocupá-las, um movimento que, para os indígenas, equivale a recompensar a grilagem. “Em vez de resolver um problema, vai trazer grande conflito”, disse o xokleng.
Priprá acredita que a União não vai ter recursos para indenizar os grileiros instalados em centenas de terras indígenas Brasil afora, o que fatalmente levará a uma escalada da violência. “Armada como a sociedade brasileira está, vai haver uma matança dos povos indígenas”, afirmou. “Não precisa ser jurista ou ministro para ver que essa proposta vai trazer o maior conflito dos últimos quinhentos anos.”
No fim de agosto, Priprá acompanhou a piauí numa visita à Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, habitada por indígenas dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani. A reserva fica na serra catarinense, no alto Vale do Rio Itajaí, cerca de 260 km a noroeste de Florianópolis. É habitada por pouco mais de 2 mil pessoas, segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA). Ocupa uma área de 37 mil hectares, pouco maior que a de Belo Horizonte, dentro da qual estão os 8 hectares sob análise do STF. Mas há uma outra ação – que corre em paralelo à dos 8 hectares – que trata da extensão da terra dos indígenas. Eles alegam que são 37 mil hectares no total, mas o estado de Santa Catarina sustenta que são apenas 14 mil, mais ou menos o tamanho da cidade de Niterói.
Em seu favor, os xoklengs têm um decreto de 3 de abril de 1926 assinado pelo então governador catarinense, Antônio Vicente Bulcão Vianna, delimitando o território ocupado pelos indígenas. O decreto fala em 20 mil hectares – não chega aos 37 mil que reivindicam, mas são mais do que os 14 mil de que fala o governo estadual. Priprá mostrou à piauí o documento amarelado e comido nas bordas que ele conserva dentro de um envelope plástico. “É a certidão original, não é cópia”, afirmou. “Guardo a sete chaves.” Os indígenas fizeram questão de ficar com o documento para tê-lo sempre em mãos quando fossem questionados. “Essa é a terra tradicional originária do povo Xokleng, está documentado.”
O decreto de 1926, estabelecendo 20 mil hectares, nunca foi cumprido à risca. Para complicar, quando a terra indígena foi enfim demarcada, em 1956, ficou restrita aos 14 mil hectares que o estado reconhece hoje. A área além desse limite – ou seja: os 23 mil hectares restantes – foi loteada e vendida. Hoje é ocupada por 486 famílias e oito empresas, segundo as contas de Priprá. O líder xokleng levou a equipe da piauí até uma ponte sobre o Rio Hercílio que separa a área reconhecida pelo estado da reivindicada pelos indígenas. “São esses 23 mil hectares que nos tiraram que estamos pedindo no Supremo”, afirmou.
O documento que certifica os 37 mil hectares é um laudo feito por um grupo de trabalho da Funai em 1997. O laudo deu origem a uma portaria de 2003, assinada pelo então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, reconhecendo que os 37 mil hectares são a área de ocupação tradicional dos xoklengs no alto Vale do Itajaí. A portaria foi contestada na Justiça pelo estado de Santa Catarina e por empresas e particulares que receberam títulos de propriedade daquelas terras. As decisões de primeira e segunda instâncias favoreceram o estado e os proprietários, e o caso foi parar no STF.
A disputa envolvendo os limites da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ representa apenas os capítulos finais de uma longa história que confinou os xoklengs a uma parcela ínfima do território que ocupavam antes da chegada dos europeus. Os xoklengs eram um povo nômade de grande mobilidade que ocupava uma extensa faixa territorial entre o litoral e o planalto que vai do Paraná ao Rio Grande do Sul. Viviam da caça e da coleta do pinhão das araucárias que são típicas daquela porção da Mata Atlântica, mas hoje são escassas na Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ. Com a chegada dos imigrantes de origem alemã, italiana e polonesa à região Sul no século XIX, foram empurrados para Santa Catarina e tiveram seu território progressivamente reduzido. Depois do contato com os brancos, em 1914, foram forçados a abandonar o modo de vida nômade e passaram a cultivar a terra.
O capítulo mais sombrio e vergonhoso dessa história foi a atuação dos bugreiros, como ficou conhecida uma milícia armada patrocinada pelo Estado e por particulares com o objetivo de exterminar os “bugres”, como os indígenas eram pejorativamente chamados no Sul do Brasil. Os registros da atuação dos bugreiros no alto Vale do Itajaí remontam à década de 1870, conforme conta o antropólogo Silvio Coelho dos Santos no livro Índios e Brancos no Sul do Brasil – A Dramática Experiência dos Xoklengs, lançado em 1973 e disponível no site do ISA.
No livro, Santos narra detalhes estarrecedores das violências perpetradas pelos bugreiros. Eles atuavam em bandos de oito a quinze pessoas. Adentravam os territórios indígenas geralmente antes do amanhecer, para surpreender seus ocupantes. Promoviam uma matança generalizada, muitas vezes seguida por saques e incêndios. “Depois de terem iniciado sua obra com balas, a finalizaram com facas”, diz um trecho. Não poupavam sequer as crianças. Ao fim do morticínio, cortavam as orelhas dos cadáveres, como prova dos assassinatos pelos quais seriam recompensados.
As incursões dos bugreiros eram encomendadas e pagas por colonos, pelas empresas que agenciavam a instalação dos imigrantes europeus ou pelo próprio governo catarinense. Sua atuação perdurou pelo menos até 1946. “Não estamos falando de 1500, mas dos anos 1940”, disse Juliana de Paula Batista, advogada do ISA. Para ela, é preciso chamar as coisas pelo nome: “O estado de Santa Catarina promoveu uma limpeza étnica nessa região.”
Quando surgiu a tese jurídica do marco temporal num julgamento em 2009, a decisão do STF beneficiou os indígenas. Explica-se. Naquela época, o Supremo discutia a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Nesse caso, o senador Augusto Botelho (PT-RR) pedia a anulação da portaria que demarcava o território. Os ministros não aceitaram o argumento do senador e decidiram pela demarcação da terra e pela retirada imediata dos ocupantes não indígenas. Consideraram, naquele caso, que os indígenas tinham direito às terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição de 1988. A ideia do marco temporal foi enunciada pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito, nomeado por Lula em 2007 e morto em 2009.
Com a decisão sobre a Raposa Serra do Sol, os indígenas ganharam o direito às terras, mas pagaram posteriormente um preço altíssimo pela vitória. Ao definir um marco temporal, os ministros do STF acabaram abrindo uma caixa de Pandora jurídica: surgiu uma profusão de questionamentos da demarcação de terras indígenas que não levavam em conta a data da promulgação da Constituição.
Depois disso, o tribunal deixou claro que o entendimento adotado para Raposa Serra do Sol valia apenas para aquele caso. Provocado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o STF negou o pedido para que o marco temporal valesse para todos os casos de demarcação de terras indígenas. “Os ministros sempre souberam que não se tratava de uma jurisprudência consolidada sobre o tema e que aquele era um assunto em discussão”, disse Juliana Batista.
Isso não bastou, porém, para impedir os questionamentos inspirados pela tese. A insegurança jurídica aumentou em julho de 2017, quando um parecer da Advocacia-Geral da União determinou que a administração pública federal passasse a adotar o marco temporal, bem como uma série de condicionantes estipuladas pelo STF no caso Raposa Serra do Sol. Com o gesto, o então presidente Michel Temer agradou à bancada ruralista, num momento em que buscava apoio no Congresso para barrar as denúncias de corrupção apresentadas pela Procuradoria-Geral da República. O parecer da AGU foi suspenso em 2020 pelo ministro Edson Fachin, relator do processo do marco temporal. Mas, de novo, não foi o suficiente para aplacar a gula sobre as terras indígenas.
A Constituição de 1988 não estabelece uma data a partir da qual os povos indígenas precisam estar em suas terras para ter direito a elas. Em outras palavras, não existe marco temporal na Constituição. O artigo 231 reconhece a eles “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. O texto define essas terras como aquelas “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. A Carta garante aos indígenas a posse permanente das terras e o usufruto exclusivo de suas riquezas, e determina que os direitos sobre elas são imprescritíveis.
Quando apresentou seu voto contra o marco temporal no caso que corre no STF, em 2021, Edson Fachin afirmou que “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal”. Argumentou também que os direitos dos indígenas às terras de ocupação tradicional são originários, ou seja, precedem a própria formação do Estado – são muito anteriores, portanto, à promulgação da atual Constituição ou, para esse efeito, de qualquer Constituição que o Brasil teve. O voto de Fachin sustentou ainda que os direitos dos povos indígenas estabelecidos na Carta de 1988 são direitos fundamentais, e que, por isso, não podem sofrer qualquer retrocesso.
Na formulação original do artigo 231, os povos indígenas teriam direito às “terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados”. A redação que prevaleceu foi proposta pelo senador Jarbas Passarinho (PDS-PA), numa emenda que foi aprovada por 497 votos a 5, conforme mostrou uma reportagem do jornal O Globo. “O marco temporal foi derrotado na Constituinte”, afirmou o advogado Rafael Modesto, do Conselho Indigenista Missionário, que defende os xoklengs nas ações no STF. “O que estão querendo fazer, seja no Congresso, seja no Supremo, é reavivar uma tese que foi vencida.”
Na visão do jurista Eloy Terena, secretário executivo do Ministério dos Povos Indígenas, a ideia do marco temporal se deve a uma interpretação literal e equivocada do texto constitucional. Como este afirma que os indígenas têm direitos às “terras que tradicionalmente ocupam”, no presente, estaria subentendido que aquilo valeria para a data da promulgação da Carta. “Mas todos nós que somos juristas sabemos que essa é uma interpretação pobre da lei”, disse Terena à piauí. “Precisamos fazer uma interpretação que busque entender o alcance, o sentido e o espírito da norma.”
Terena argumenta que a Carta de 1988 não foi a primeira a reconhecer aos povos indígenas os direitos às suas terras. “Desde a Constituição de 1934, todas elas repetiram os direitos dos povos indígenas às suas terras tradicionais”, afirmou. Quem concorda com o raciocínio dos defensores do marco temporal deveria então estabelecê-lo em 1934, quando esses direitos foram reconhecidos pela primeira vez. “Mas é fato que a Constituição não impôs uma data”, concluiu Terena.
Para o secretário executivo, a luta territorial é primordial para os povos indígenas porque está na base de todas as suas demais reivindicações. “Hoje temos demandas relacionadas a saúde, educação, direitos sociais identitários que nos são negados, racismo. Todas elas estão intimamente relacionadas à perda de território de cada povo que se deu de maneira diferenciada”, disse Terena. “Para os povos indígenas, falar em território é falar em garantir a base de onde irradiam todos os outros direitos, e por isso é importante derrubar o marco temporal.”
O Estatuto do Índio, lei de 1973, e a Constituição Federal de 1988 representaram conquistas importantes nos direitos dos indígenas. Antes disso, os povos originários eram tutelados pelo Estado e vigorava um entendimento de que, com o tempo, eles acabariam por ser assimilados à sociedade nacional. “Até então havia uma perspectiva de direito transitório”, explicou à piauí o indigenista André Villas-Bôas, cofundador do ISA. “Se os indígenas estavam fadados à extinção, não havia por que fazer a demarcação de suas terras.”
Essa perspectiva começou a mudar nos anos 1970, quando o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedio) começou a fazer levantamentos da população indígena do Brasil. “E o que se percebeu ali foi que, em vez de estar se extinguindo, as populações indígenas estavam crescendo e se recuperando”, disse Villas-Bôas. Começou ali uma guinada que culminou com a garantia dos direitos originários reconhecidos na Carta de 1988. “Os povos indígenas passaram a ter a perspectiva de que faziam parte do futuro deste país, e não do passado.”
Essa mudança de estatuto legal dos direitos indígenas está na raiz da resistência de muitos ruralistas a reconhecê-los. “Parte da elite brasileira não conseguiu absorver até hoje que os povos indígenas são detentores de direitos que se sobrepõem inclusive ao seu próprio direito de propriedade”, continuou o indigenista. “E obviamente a elite achou um jeito de botar um ponto final nessa história, que é o marco temporal.” A tese defendida pelos ruralistas tira o direito à terra dos povos indígenas que foram expulsos à força de seus territórios antes de 1988, seja por agentes do Estado ou por grileiros.
(Curiosamente, nunca se fala em “marco temporal” para os grileiros de terras públicas. Pelo contrário: para esses, de tempos em tempos, aprova-se uma anistia – um estímulo para que continuem avançando sobre terras públicas até a aprovação de uma nova anistia mais adiante. Na prática, grileiro que invadiu terra pública acaba sendo juridicamente mais protegido do que indígena, habitante imemorial das terras.)
A expulsão das terras tradicionais aconteceu com os xoklengs, mas também com os guaranis mbyas, em Santa Catarina, ou com os xukurus, em Pernambuco (veja texto sobre o assunto). Não faltam exemplos. “Há várias situações que explicam por que alguns povos não estavam no território que estão reivindicando, e em cada delas uma há uma perversidade com essas minorias vulneráveis que foram alijadas no processo de colonização do país”, disse Villas-Bôas.
Os povos indígenas isolados ficarão particularmente fragilizados caso essa tese prevaleça, já que não terão como provar que estavam ocupando suas terras em 1988. Não se sabe ao certo quantos são esses grupos.
O Instituto Socioambiental, organização não governamental que defende os direitos dos povos indígenas do Brasil e produz dados de referência sobre eles, não fez e nem pretende fazer um levantamento dos grupos que estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988. Seria o equivalente a fazer o jogo do inimigo. “Essa é uma abordagem que acabaria validando o pressuposto ruralista de que o marco temporal é um critério objetivo, e está longe de ser o caso”, disse Juliana de Paula Batista, advogada do ISA. “O marco temporal coloca os indígenas na posição de ter que provar um fato que aconteceu há mais de trinta anos, quando essa prova não era exigida.”
Na visão da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o marco temporal representa uma ameaça a todas as 1 393 terras indígenas em diferentes etapas da demarcação, já que todas elas poderiam ser objeto de reavaliação. A tese nega a presença indígena no território brasileiro e sua contribuição para a história do país, conforme defendeu Marcos Sabaru, assessor político da Apib, numa cartilha sobre o tema. O marco temporal “é uma máquina de moer história”, escreveu. Para Sabaru, a tese opera uma inversão lógica ao colocar os indígenas na condição de invasores. “Parece que quem chegou nas caravelas foram os indígenas.”
Setembrino Camlem, recém-eleito cacique-presidente da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ com 57,5% dos votos, está alinhado com essa perspectiva. “Eu gostaria que houvesse um marco temporal para quem chegou ao Brasil depois de 1500”, disse o líder xokleng à piauí.
O julgamento do marco temporal no STF não é a única fonte de preocupação para os povos indígenas. Vários direitos que eles têm hoje, inclusive às terras de ocupação tradicional, estão ameaçados também por um projeto de lei que tramita no Senado, onde ganhou o número 2 903. Mas ele ficou mais conhecido como PL 490, número que tinha quando passou pela Câmara.
O projeto em questão foi apresentado em 2007 pelo deputado Homero Pereira (PSD-MT) e propunha originalmente que a demarcação de terras indígenas fosse feita pelo Congresso (muitos juristas viram a ideia como anticonstitucional, já que a Carta de 1988 estabelece que a demarcação é prerrogativa do Poder Executivo). Pereira morreu em decorrência de um câncer em 2013 e não presenciou a modificação do seu projeto feita em 2018. Na época, o deputado Jerônimo Goergen (PP-RS) propôs estabelecer por lei o marco temporal de 5 de outubro de 1988.
Essa não foi a única alteração do projeto que propunha fragilizar os direitos dos povos originários. O texto-base do PL 490 aprovado pelos deputados abriu as portas para o garimpo e para a construção de rodovias, hidrelétricas e outros equipamentos em terras indígenas sem a consulta prévia dos povos originários – violando com isso uma convenção internacional da qual o Brasil é signatário e que tem força de lei desde que foi ratificada pelo Congresso. O projeto de lei autoriza ainda o cultivo de transgênicos nessas terras, hoje proibido, e permite que não indígenas atuem dentro dos territórios. Proíbe a ampliação de terras já demarcadas, abre brechas para que sejam contestadas caso não cumpram os critérios definidos no projeto de lei e permite que contestações sejam feitas em todas as etapas do processo de demarcação.
Dentre os pontos do PL 490 mais criticados pelos indígenas, está a possibilidade de contato com povos isolados e o trecho que permite que a União tome de volta terras já demarcadas “em razão da alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”. Numa nota técnica sobre o projeto de lei, a diretoria jurídica da Apib afirmou que ele viola vários princípios constitucionais e os direitos fundamentais dos povos indígenas. Se o PL 490 for aprovado, conclui a nota, irá inviabilizar a demarcação de terras indígenas.
O PL 490 foi votado às pressas no fim de maio pela Câmara, pautado pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), numa tentativa de se antecipar ao julgamento do STF, que havia sido agendado por Rosa Weber para a semana seguinte. O projeto foi aprovado por 283 votos a favor e 155 contra, e seguiu para o Senado.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), determinou que o projeto não seguiria o regime de urgência adotado na Câmara, e que passaria pela tramitação normal por comissões antes de ser votado em plenário. Na primeira delas, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária, o relatório favorável ao projeto, elaborado por Soraya Thronicke (Podemos-MS), foi aprovado sem dificuldade por 13 votos a 3 na quarta-feira, dia 23 de agosto. O PL será apreciado também pela Comissão de Constituição e Justiça, mas Pacheco está sendo pressionado para que ele passe ainda pelas comissões de Assuntos Sociais, do Meio Ambiente e Direitos Humanos.
No fim de agosto, o protagonismo na discussão sobre o marco temporal voltou para o STF, com a retomada do julgamento e a leitura do voto de André Mendonça. Se nenhum outro ministro pedir vista, é possível que o julgamento do marco temporal seja concluído antes que o PL 490 seja votado pelo Senado. O projeto pode ser votado e aprovado mesmo que os ministros concluam que a tese é inconstitucional. Nesse caso, é praticamente certo que o PL 490 será contestado no próprio STF.
Ambientalistas e juristas que acompanham o caso de perto estão de olho não só em como os ministros restantes vão votar, mas também em como vão se alinhar em relação às propostas levantadas pelo ministro Alexandre de Moraes. “O voto de Moraes traz dois elementos novos para a discussão”, explicou Rafael Modesto, o advogado que defende os xoklengs no Supremo. Um deles é a possibilidade de que seja oferecido a um povo indígena um território equivalente às terras cuja demarcação é reivindicada por eles. Para Modesto, a proposta fere a tradicionalidade das terras indígenas, reconhecida no texto constitucional. “As terras tradicionais são áreas de ligação cultural daquele povo, onde estão enterrados seus ancestrais e onde acontecem seus mitos e cultos”, afirmou. “Ao propor uma área similar àquela sem considerar a ligação do povo com a terra, você rompe com o que está escrito na Constituição.”
A outra novidade do voto de Moraes – a mais preocupante, na avaliação de Modesto – é a possibilidade de uma “indenização prévia” para detentores de títulos de propriedade em terras indígenas demarcadas. No entendimento vigente, só cabe indenização para as benfeitorias derivadas das ocupações de boa-fé – cabível, por exemplo, quando o ocupante não sabia que aquela era uma terra indígena. Moraes propôs que haja também uma indenização prévia pela terra nua nos casos em que a presença dos indígenas naquele território não possa ser provada na data da promulgação da Constituição. No entendimento de Modesto, a indenização prévia cria uma etapa nova no rito de demarcação que tende a eternizar o processo. “Ao reconhecer tanto os direitos tradicionais dos indígenas quanto a legitimidade dos títulos de propriedade, ele está reconhecendo dois direitos onde só cabe um – o dos indígenas”, afirmou.
Modesto disse ainda que não é contrário à ideia de indenização, desde que ela seja proposta em termos diferentes. “Não precisamos inventar a roda para dar condições suficientes e necessárias no campo jurídico para que haja as indenizações fora do processo de demarcação”, afirma. Para ele, a única solução que daria segurança aos povos indígenas é que os demais ministros sigam o entendimento do relator. “O voto do Fachin tem que ser adotado na integralidade para afastar o marco temporal e garantir as demarcações.”
As consequências de uma eventual aprovação do marco temporal pelo STF ou pelo Congresso não afetariam apenas os povos indígenas. Uma vez que a medida poderia levar ao questionamento de terras indígenas já demarcadas, ela pode pôr em risco a cobertura vegetal desses territórios e toda a vida ali estabelecida. As terras indígenas abrigam 80% da biodiversidade do mundo, embora cubram apenas 28% das terras do planeta, de acordo com números da ONU. No Brasil, essas terras são aquelas onde a vegetação nativa está mais preservada, conforme mostra um levantamento do Mapbiomas, uma iniciativa de ONGs, centros de pesquisa e empresas que mapeia a cobertura vegetal brasileira. O estudo mostrou que as terras indígenas perderam apenas 1% da vegetação nativa ao longo de trinta anos; já nas propriedades privadas, a perda foi de 21%.
O jurista Eloy Terena, do Ministério dos Povos Indígenas, observa que as terras indígenas são importantes no enfrentamento não só da crise climática, mas também de crises sanitárias. “Está comprovado que a origem das pandemias tem relação direta com a exploração desenfreada da biodiversidade”, diz Terena. “Tem muito mais benefício demarcar terras indígenas do que entregá-las à exploração da monocultura onde você tem apenas um ganho e uma devastação ampla do meio ambiente.”
Um estudo divulgado em junho pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) se propôs a calcular o desmatamento que poderia ser desencadeado pela aprovação do marco temporal. No cenário mais pessimista considerado no estudo, em que seria desmatada metade da área das terras indígenas situadas na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal, o marco temporal pode levar à perda de vegetação de uma área de 55 milhões de hectares, quase do tamanho da Bahia.
O cenário aventado no estudo inviabilizaria o cumprimento da meta assumida pelo Brasil de zerar o desmatamento até 2030. Mais grave que isso, poderia levar a Amazônia a cruzar o ponto de não retorno a partir do qual a floresta perderia a capacidade de se regenerar e de gerar as chuvas que irrigam a agricultura em outras regiões do país. “O fortalecimento dos territórios indígenas do ponto de vista legal é importantíssimo para garantir esses maciços de floresta que são fontes importantes de água, conforto térmico, alimento e pescado para a sociedade”, disse à piauí a geógrafa e ambientalista Ane Alencar, coautora do estudo. “Proteger esses territórios é também proteger culturas milenares e o patrimônio brasileiro em todos os níveis.”
Quando falou numa sessão do STF em 2019, Brasílio Priprá dispôs de tempo limitado para apresentar o ponto de vista de seu povo. “Tive cinco minutos e meio para contar mais de 5 mil anos de história dos xoklengs”, afirmou. Priprá aproveitou a curta janela para insistir que as terras em disputa eram uma área de ocupação tradicional do seu povo, e que estavam devidamente documentadas. “E falei também da barragem que mudou muito a nossa vida.”
A barragem a que se refere Priprá é mais um episódio traumático na história dos xoklengs, o golpe mais recente que impôs restrições a seu modo de vida. O objetivo da construção foi minimizar as enchentes do baixo e médio Vale do Itajaí, que provocavam prejuízos em Blumenau e outras cidades industriais da região. A Barragem Norte começou a ser erguida em 1976 e só foi inaugurada em 1992.
Os xoklengs não foram consultados antes da obra e pagaram um preço alto. Foi criado um lago de contenção que inundou uma área de 900 hectares. Não se tratava de uma área qualquer: era a única área plana e cultivável da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ. A barragem tirou dos indígenas 95% das terras agricultáveis e os empurrou para as áreas de encosta, impróprias para cultivo. Décadas depois de serem forçados a se sedentarizar, os xoklengs já não tinham mais onde plantar.
Não bastasse essa imposição, nos anos iniciais de construção da barragem houve cinco enchentes que devastaram casas e plantações, deixando um rastro de destruição e morte. Os xoklengs nunca foram devidamente indenizados pelos prejuízos provocados por ação e omissão do Estado, e as cicatrizes deixadas pelo trauma seguem abertas até hoje. “Perdi um irmão, um filho de 9 anos e mais gente nas enchentes”, disse à piauí Willi Ndilli, um xokleng de 79 anos, durante um depoimento que deu no alto da barragem, junto ao acesso à casa de máquinas. “A barragem trouxe uma tristeza para nós, o nosso sossego acabou”, continuou o indígena. “Quando ela enche, a gente tem que esperar baixar todo o rio, e enquanto isso falta açúcar para as crianças.”
Ndilli tinha 32 anos quando as obras começaram e lamenta a vida que ficou para trás. “Antes da barragem nós vivíamos todos juntos”, afirmou – hoje os indígenas estão espalhados por nove aldeias na terra indígena. “Era um tempo em que nós vivíamos tranquilos e sem preocupação e dormíamos sossegados.” Ele e seus parentes pegavam peixes, coletavam pinhão e frutas e comiam juntos. “Tínhamos uma vida feliz”, disse Ndilli. “Depois o índio veio morrendo um atrás do outro.”
O ancião xokleng está empenhado na luta pelo território reivindicado por seu povo no STF. “Trinta e sete mil hectares é pouco, mas nós queremos o que é nosso”, afirma. Indagado se a vida melhoraria caso recuperassem as terras, respondeu que não, já que a vida não voltaria a ser como antes. “Nos tiraram tudo, toda a riqueza.”
Ao final do depoimento, Ndilli agradeceu a oportunidade de espalhar sua mensagem. “Nunca o povo fica sabendo do sofrimento dos índios. É bom que vocês vieram.”