Peter Thiel foi apresentado ao público que veio ouvir sua conferência na Universidade de Oxford como “um dos pensadores mais reflexivos do nosso tempo”. O filósofo inglês John Gray, que chamou ao púlpito o empresário alemão (nacionalizado norte-americano), exaltou seu livro de 1995, The diversity myth: multiculturalism and political intolerance on Campus (o mito da diversidade: multiculturalismo e intolerância política no câmpus), como uma avaliação “profética” do estado do debate intelectual nas universidades. Cofundador do PayPal, primeiro grande investidor do Facebook, presidente da Palantir Technologies – empresa de big data que tem os governos dos Estados Unidos e do Reino Unido entre seus clientes –, apóstolo de um futuro no qual a tecnologia nos oferecerá a imortalidade, doador da campanha eleitoral de Donald Trump em 2016: nenhuma das credenciais que fizeram de Thiel um herói para muita gente e um dissidente do Vale do Silício foi mencionada.
A revista The new statesman publicou recentemente uma transcrição editada da conversa entre Gray e Thiel que se seguiu à conferência. A íntegra do evento, realizado em outubro do ano passado, está disponível no YouTube. A palestra fez parte das Roger Scruton Memorial Lectures, ciclo de conferências que homenageia o filósofo inglês morto em 2020. Nem Thiel nem Gray citaram a obra do homenageado – aliás, sequer mencionaram seu nome. Scruton decerto teria simpatia pela crítica de Thiel ao novo progressismo identitário, mas duvido que o autor de Como ser um conservador aceitasse a proposta de que essa crítica seja feita de uma inusitada perspectiva marxista-libertária.
Meu interesse pelo evento em Oxford foi despertado sobretudo pela participação de John Gray, um fino ensaísta que muito admiro – e que tive o prazer de entrevistar para a falecida revista Época. Há vários descompassos entre o pensamento muitas vezes controverso porém sempre rigoroso do ex-professor de Pensamento Europeu da London School of Economics e as elucubrações meio delirantes mas atravessadas por lances de fulgurante lucidez do ex-sócio de Elon Musk no PayPal. Na consideração do progresso científico e tecnológico, por exemplo, os dois têm concepções antagônicas. Para minha decepção, Gray conduziu a conversa pela monótona planície das opiniões que compartilha com o conferencista. É uma ironia que, depois de muitas críticas de Thiel ao establishment universitário, tenha se visto mais um morno “debate” acadêmico entre pessoas que pensam (ou que fingem pensar) da mesma forma.
Assisti ao vídeo da conferência para saber o que Gray teria a dizer sobre o libertário que financiou Mark Zuckerberg. Mas acabei fascinado pela retórica tortuosa do próprio Thiel – não tanto por seus acertos, que são consideráveis, mas sobretudo pela intrigante suscetibilidade de um homem com currículo tão notável à sedução do gênio enganador da política contemporânea: o pensamento conspiratório.
A conferência começa por uma ligeira autocrítica. Thiel avalia que o livro elogiado por Gray, The diversity myth (escrito em parceria com David Sacks, seu colega no PayPal), envelheceu mal. A obra ampara-se na experiência que os autores tiveram como alunos da Universidade de Stanford, na virada da década de 1980 para 1990. A controvérsia dava-se então entre conservadores que defendiam as leituras básicas do currículo de humanidades e progressistas que reclamavam da predominância de “homens brancos mortos” entre os autores recomendados. Thiel hoje diz que a energia que devotou a essas guerras culturais foi mal empregada. E o mesmo valeria para as discussões atuais sobre o difuso conglomerado de conceitos e doutrinas identitárias que vem dominando boa parte da esquerda – um universo ideológico que, em inglês, costuma ser designado pela palavra woke (acordado, atento). Thiel acredita que debates nessa área nos distraem dos problemas que realmente importam. “Distração” é a palavra-chave da conferência.
É então que ele propõe a aliança entre dois inimigos declarados: marxismo e libertarianismo. O argumento é mais razoável do que parece à primeira vista. Cada uma a seu modo, essas duas ideologias devotam-se a questões materiais, com ênfase forte em problemas econômicos que o progressismo woke negligencia. Em uma especulação histórica provocativa, Thiel propõe que expoentes do marxismo da primeira metade do século XX, como Lênin e Rosa Luxemburgo, não reconheceriam a pertinência das pautas identitárias para a revolução. Fica a sugestão de que o novo progressismo está a serviço das classes dominantes – e aqui Thiel está em consonância com o pop star do marxismo contemporâneo: o filósofo esloveno Slavoj Zizek também vem falando de um “capitalismo woke”.
Na opinião de Thiel, um problema recente do capitalismo com o qual ninguém quer se confrontar é a explosão dos preços da propriedade imobiliária, sobretudo em grandes metrópoles como Londres e Nova York. Aluguéis inviáveis em centros que concentram os melhores empregos são especialmente duros para as classes baixas e para jovens que estão se iniciando na carreira profissional. A imigração, debate central para a Europa hoje, também é impactada por esse problema. “Eu provavelmente seria a favor da imigração sem restrições se pudéssemos construir mais moradias”, diz Thiel, para então ironizar: “Acho que Elon [Musk] vai chegar a Marte antes que isso aconteça no Reino Unido.”
Distorções do mercado imobiliário provavelmente não figuram entre as preocupações típicas de bilionários da área de tecnologia, e é bom ouvir Thiel – cuja fortuna a Forbes estima em torno de 6 bilhões de dólares – soando o alarme sobre o tema. Esse importante recado perde-se, no entanto, nas tentativas de relacioná-lo à fixação da nova esquerda com identidades étnicas e sexuais (incidentalmente, Thiel é homossexual).
Muitos críticos do identitarismo dizem que discussões sobre temas como microagressão e apropriação cultural desviam a esquerda das questões de classe que lhe eram próprias. Yascha Mounk, cientista político da Universidade Johns Hopkins, reforça esse argumento no excelente The identity trap: a story of ideas and power in our time (A armadilha identitária: uma história de ideias e poder em nosso tempo, ainda sem edição no Brasil), lançado em 2023. Mas Thiel afunda um argumento relevante em terreno pantanoso. Ao longo de sua conferência, fica sempre a sugestão de que não é por acaso que estamos reivindicando a necessidade de banheiros para pessoas não binárias no lugar de moradia para a população de baixa renda: o woke, ele diz, seria um instrumento deliberadamente projetado pelo establishment esquerdista para nos distrair. No limite, seria virtualmente a causa da relativa estagnação econômica do século XXI.
Isso fica especialmente claro quando Thiel localiza nos anos 1970 o momento em que a desigualdade entre ricos e pobres começou a se ampliar drasticamente. Na mesma época, diz ele, a esquerda já se afastava do marxismo clássico em direção ao “marxismo cultural”, conceito muito enredado em teorias conspiratórias da alt-right. Thiel não é bobo e sabe bem a diferença entre correlação e causação. Ele toma o cuidado de esclarecer que não está afirmando que existe relação de causa e efeito entre a emergência do ideário woke e a especulação imobiliária desenfreada – o que é uma forma malandra de sugerir que a relação pode muito bem existir.
“Você não precisa ir até o fundo na teoria da conspiração”, diz Thiel a certa altura. Mas ele desce fundo no buraco conspiratório quando começa a falar de ciência e tecnologia.
Peter Thiel mostrou seu iPhone para o jornalista que o entrevistava. “Eu não considero que isto aqui seja uma revolução tecnológica”, declarou. O jornalista era George Packer, que incluiu um fascinante perfil do cocriador do PayPal em Desagregação: por dentro de uma nova América. Publicado em 2013, o livro é um amplo painel do abalo que a crise dos subprimes causou nos fundamentos do capitalismo norte-americano. Foi nessa crise que Thiel conheceu o fracasso. O Clarium Capital, fundo de investimentos criado por ele, acumulava um montante de 7 bilhões de dólares às vésperas da quebra do banco Lehman Brothers, em 2008. Em 2011, esse capital estava reduzido a 350 milhões, dois terços dos quais pertenciam ao próprio Thiel.
Packer diz que essa derrota fez de Thiel um pessimista. Desde então, ele começou a questionar o que a tecnologia de fato nos oferece. Pois não se cumpriram as promessas de avanços milagrosos na medicina e de viagens espaciais que o empresário, hoje com 56 anos, encontrou nos livros de ficção científica que lia na infância e na adolescência. Internet, redes sociais, smartphones – todo o progresso se deu no plano binário dos bits. No mundo físico em que vivemos, nossos carros ainda não voam e nossos corpos ainda são torturados pela doença e pelo envelhecimento.
Em Oxford, no ano passado, Thiel pintou um quadro ainda mais desolador. Ciência e tecnologia, diz ele, estão estagnadas. Áreas como a pesquisa sobre o câncer, na medicina, e a teoria das cordas, na física, entraram em becos sem saída. E de novo o progressismo woke serve para nos distrair da realidade infeliz: segundo Thiel, os administradores das universidades preferem que as controvérsias se concentrem em temas hoje caros aos departamentos de humanidades, como identidade e diversidade, pois assim o grande público não percebe que os departamentos de ciências também foram corrompidos. Sim, corrompidos: a pesquisa científica tornou-se uma área fraudulenta, cujos profissionais vivem de replicar incessantemente as experiências que uns poucos pesquisadores originais ainda fazem. De quebra, para ele, o establishment científico reforça uma série de tabus: não se pode questionar, por exemplo, a Teoria da Evolução ou… a vacinação!
A ciência estagnou mesmo? Tomemos a pesquisa do câncer. Nas primeiras páginas do recente A canção da célula: as descobertas da medicina e o novo humano, um deslumbrante relato da pesquisa sobre biologia celular dos pioneiros do microscópio no século XVII à era do sequenciamento genético, o médico e pesquisador indiano Siddhartha Mukherjee apresenta ao leitor leigo (meu caso) terapias inovadoras de reprogramação genética. Ele narra dois casos exemplares em que esses novos recursos foram empregados: uma menina que sofria de um tipo raro de leucemia e um homem com uma variedade muito agressiva de câncer de pele. Os resultados foram díspares. A criança foi salva pelo novo tratamento; o adulto morreu. No capítulo devotado especificamente ao câncer, Mukherjee, que é oncologista, divide-se entre a esperança e o desalento. Há novas descobertas e promessas de tratamentos mais eficientes, mas resta ainda muito a descobrir sobre os mecanismos moleculares que tornam as células cancerosas tão letais.
A ciência não parou no tempo. Ela apenas não corre tão rápido quanto Thiel espera. Pois o bilionário, que já financiou pesquisas sobre o prolongamento da vida, cultiva expectativas irrealistas: seu horizonte é a imortalidade. Confinity, o antecessor do PayPal criado por Thiel, foi a primeira empresa do mundo a oferecer criogenia no pacote de benefícios oferecido aos funcionários. Packer diz que Thiel vê “a inevitabilidade da morte como uma ideologia, não como um fato”.
Na conversa com Gray, Thiel tratou da antiga ambição humana de prolongar a vida. Mencionou o cosmismo, uma corrente do bolchevismo que nos anos 1920 anunciava um futuro no qual a ciência comunista ressuscitaria os mortos (Thiel não deu sinais de conhecer A busca da imortalidade, livro em que Gray examinou essa ambição messiânica da revolução russa – e Gray, elegante, não citou a própria obra). O bilionário ainda criticou certa “versão derrotista da ciência” que aponta para as limitações humanas, para “as coisas que você não é capaz de fazer”. A arrogância bilionária toma a avaliação objetiva da realidade por derrotismo.
Em obras como Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais e O silêncio dos animais: sobre o progresso e outros mitos modernos, Gray vem examinando as ilusões de progresso ilimitado cultivadas pelo liberalismo (liberalismo aqui no sentido histórico amplo: uma corrente de pensamento que nos legou democracia, tolerância à diferença e direitos individuais, entre outros valores – e não apenas livre mercado). O filósofo sempre se opôs à ideia de que a ciência destina-se a redimir ou salvar a humanidade. É uma pena que sua interação com Thiel tenha se pautado pela deferência, sem espaço para a contestação.
Desdenhado por Thiel na entrevista a Packer, o iPhone reapareceu na conversa com o filósofo inglês. Os habitantes de Londres e Nova York, diz Thiel, passam o dia imersos na telinha da Apple e por isso não atentam para a obsolescência de suas cidades, cujas linhas de metrô foram escavadas há mais de um século. Eu me pergunto se tal ânsia futurista por uma paisagem urbana sem resquícios do passado não daria um bom companheiro de armas para o ímpeto militante de expurgar “homens brancos mortos” dos currículos universitários.
Deus e as questões existenciais correlatas constituem, de acordo com Thiel, um terceiro campo de inquirição do qual a estridência woke estaria nos “distraindo”. Embora a noção de que o progressismo identitário seja uma forma de hipercristianismo sem Deus me pareça instigante, essa passagem da conferência é bastante desarticulada, e não vou me demorar nela.
Creio que o componente conspiratório do pensamento de Peter Thiel já está bem demonstrado. Quando falamos de teóricos da conspiração, imaginamos o incel de inteligência limítrofe que passa suas noites solitárias em discussões online sobre o globalismo e a derrocada da civilização judaico-cristã ocidental. Thiel não cabe nesse estereótipo vulgar: é um homem culto, dono de uma mente inquieta, que tem a desenvoltura de atacar consensos e lugares comuns, ainda que ao custo de sacrificar a racionalidade que julga defender.
Ao que parece, nas eleições do ano que vem, Thiel não voltará a apoiar Trump, que a esta altura já está virtualmente consagrado como o candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos. Ainda que se afaste da política, Thiel segue o mesmo guerreiro cultural que editava um jornal conservador em Stanford. Embora ele se permita a heresia de convocar Marx para criticar os excessos do identitarismo, ele segue vendo o mundo a partir da oposição maniqueísta entre direita e esquerda. Em Oxford, dedicou-se até a uma questão que se tornou o equivalente pós-moderno da lendária especulação dos teólogos de Bizâncio sobre o número de anjos que podem dançar na cabeça de um alfinete: qual foi o pior totalitarismo do século XX, comunismo ou fascismo? Previsivelmente, sua resposta foi “comunismo”.
O conspiracionismo tornou-se um elemento inextricável da linguagem política de nossos dias polarizados. E isso é verdade também no campo ao qual Thiel se opõe: quando se dedicam a denunciar a opressão estrutural oculta nos mais comezinhos aspectos do cotidiano, os identitários de rede social rapidamente alcançam paroxismos paranoicos.
O gênio da conspiração é uma entidade insidiosa, que nos oferece a falsa dádiva de uma explicação unificada para as mais brutais injustiças do mundo. Também nos convence de que somos especiais, pois desvendamos intrincadas relações ali onde nosso vizinho só vê eventuais coincidências entre fatos díspares. Aos cinco anos, Thiel já sabia desenhar o mapa-múndi de memória. Na vida adulta, sempre demonstrou perspicácia e ousadia em apostas de risco: uma ferramenta para fazer pagamentos pela internet com segurança, uma rede social criada por um rapaz de 19 anos em Harvard. Mas às vezes nem a inteligência resiste ao gênio conspiratório.