A semana passada começou com notícias bombásticas, no mundo inteiro, de que o papa teria acobertado o cardeal norte-americano Theodore McCarrick, denunciado por abuso sexual e pedofilia. Não à toa, a denúncia vinha de um arcebispo conservador, Carlo Maria Viganò, ex-núncio apostólico de Francisco nos Estados Unidos. O fato ilumina um fenômeno novo: o que motiva ditos conservadores a não cumprirem o princípio básico do conservadorismo – o respeito à autoridade? Nem sequer a do papa respeita-se mais.
Os jornais abriram mão de qualquer responsabilidade na hora de noticiar: as manchetes tinham um tom condenatório. O Globo, The New York Times, El País colocavam o papa no foco principal dos títulos das notícias e só depois se falava do acusador. No mundo das redes sociais e das fake news, as manchetes de jornais críveis importam. Poucos são os que leem os artigos, muitos visualizam e compartilham apenas as manchetes. A função da imprensa tradicional, em tempos de excesso de informação, não é gerar mais ruído, mas apurar a notícia e qualificá-la.
Nenhum jornalista sério consideraria válida a acusação, não fosse o acusador quem ele é: uma figura central na política do Vaticano, um ex-diplomata da Igreja. E é absolutamente natural que se espere de uma pessoa que tenha ocupado cargos institucionais centrais que ela haja responsavelmente, com embasamento. No entanto, seja quem for, a checagem deve ser bem-feita, e as manchetes devem refletir o resultado da mesma. Se o acusador e sua carta tivessem sido de fato objetos de apuração, as manchetes com certeza teriam outro tom. Em vez de dizer, como disseram: “Papa sabia que o cardeal americano era assediador, acusa ex-diplomata do Vaticano”, mais correto seria dizer: “Papa é acusado sem provas por ex-diplomata do Vaticano, de perfil ultraconservador.”
A extrema direita sabe como funciona o contágio de notícias em tempos de redes sociais e é extraordinária criadora de boatos e fake news. Em toda rede de desinformação é necessária a validação de alguma autoridade: essa é a função de Viganò e das manchetes irresponsáveis. Pude me certificar disso depois de conversas informais que tive na última semana com duas pessoas da administração Trump. Apesar de não serem católicos e não se interessarem muito pelo tema do assédio sexual praticado por religiosos, ambas as pessoas afirmaram que as acusações eram graves demais e que a não-resposta do papa era confissão de sua culpa: Francisco deveria renunciar.
Foram os vasos comunicantes da extrema direita americana que fizeram chegar essa versão aos seus ouvidos. Respondi a elas que o papa foi inteligente porque seguiu a regra número um do debate em redes sociais: “Nunca alimente um troll.” Francisco tomou o ex-núncio pelo que ele é, um troll de 77 anos. Em vez de se engajar com a acusação, passou a seguinte mensagem para os jornalistas que o interrogavam: “Leiam com atenção e julguem vocês mesmos”, e completou dizendo ter confiança na “capacidade jornalística suficiente para tirar conclusões.” O papa corroborou a função do jornalismo sério em tempos de fake news: fundamentar a informação.
A carta do ex-núncio Viganò consiste em onze páginas de delírio homofóbico e de teorias da conspiração. Primeiro, ele detona todos os inimigos da extrema direita dentro da Igreja Católica norte-americana, para em seguida acusar diretamente o papa Francisco e pedir sua renúncia. O arcebispo afirma que “as redes homossexuais presentes na Igreja devem ser erradicadas” e associa constantemente homossexualidade a abuso de menores. A argumentação do ex-núncio é primária. Mas, em que pese a ausência de prova ou indício de prova, já foi suficiente para ganhar as manchetes acusatórias contra o papa no mundo inteiro.
A ação de Viganò cheira a conspiração muito bem formulada, que faz coincidir o tema, o timing, o local. A Igreja Católica enfrenta desde o ano passado uma enxurrada de revelações sobre abuso sexual e pedofilia, cometidos por membros do clero, em diferentes partes do mundo. Essa bomba-relógio de anos explodiu no colo de Francisco e respinga sobre sua popularidade. Nos últimos anos, nós nos acostumamos a ler que arcebispos acobertaram abusos de menores cometidos por membros do clero. Convém como uma luva dizer, como faz Viganò, que o papa estaria por trás desse acobertamento.
Em seguida, vem a questão do timing da acusação e do local em que estava o papa no momento em que foi feita. Francisco fazia uma visita à Irlanda, com o propósito de sinalizar aos irlandeses um pedido de desculpas e buscar a reconciliação deles com o catolicismo, após graves revelações de abusos sexuais de crianças por religiosos no país. Foi justamente no último dia da visita, um domingo, que a carta de Viganò veio a público. Vale também lembrar que os setores ultraconservadores da Igreja Católica norte-americana organizaram, na mesma data da visita papal, um evento paralelo na Irlanda: a Conferência das Famílias Católicas.
O acusador é uma espécie de Romero Jucá do Vaticano. Entrasse papa, saísse papa, ele estava sempre em alguma posição de poder: ora na Secretaria de Estado, ora na nunciatura nos Estados Unidos. Penduricalho de Bento XVI, foi demitido por Francisco, dentre outras razões por pregar uma pegadinha de mau gosto no próprio papa, durante sua visita oficial a Washington, em 2015. Naquele ano, quando ainda era núncio, Viganò convidou a escrivã Kim Davis – que ficou famosa por ter se recusado a celebrar a união civil de um casal do mesmo sexo – para um evento com o papa. Em sua carta, Viganò acusa bispos, arcebispos e cardeais que hoje ocupam funções importantes dentro do episcopado norte-americano, adversários da extrema direita.
Todos os caminhos levam a um país, os Estados Unidos, e a um homem, o cardeal Raymond Burke, que tem sido nos últimos anos o principal porta-voz dos canais de extrema direita dentro da Igreja Católica, como a Church Militant, a Cardinal Newman Society e a LifeSiteNews. Todos, em uníssono, pedem que Francisco renuncie. Burke tem sido aconselhado por Steve Bannon, famosa eminência parda de Donald Trump. Não se trata aqui, neste artigo, de fazer qualquer insinuação a respeito da Casa Branca e da tentativa descarada de golpe de estado no Vaticano, mas de mostrar coincidências e vasos comunicantes dentro da extrema direita americana.
O desespero do cardeal Burke e seus aliados se deve às reformas promovidas pelo papado de Francisco no sentido de diminuir o excesso de clericalismo. O poder descomunal que o sacerdote exerce sobre o fiel dentro da Igreja é a via aberta para abusos sexuais e crimes de pedofilia. É o próprio clericalismo que breca mudanças urgentes, como o fim do celibato para padres, a ordenação de mulheres e a promoção de um laicato participativo.
Francisco tem à frente a missão de cumprir o mandato conferido pelo Concílio Vaticano II de deixar mais atual uma organização cujos lastros medievais não conseguem se ajustar bem ao contexto de um mundo plural, secularizado e pós-moderno. O projeto de uma igreja contemporânea e participativa, que faz do leigo – e não apenas o sacerdote – o motor de sua ação no mundo, é algo inadmissível para os que se beneficiam de uma organização fechada, conservadora e anacrônica. Afinal, como os bispos ultraconservadores poderão continuar vivendo em palácios e andando em Mercedes brancas, se a Igreja for aberta, transparente e participativa?
Uma Igreja descentrada e missionária, uma “Igreja pobre para os pobres” incomoda profundamente quem se beneficia de uma instituição rica para poucos. Parte do clero não quer perder poder nem regalias. Por trás da tentativa de golpe, existe uma disputa de poder crucial: a composição do Colégio Cardinalício, corpo constituinte do Vaticano, que elege o papa. Em cinco anos, Francisco nomeou 47% dos cardeais-eleitores. Em breve, poderá ter a maioria no Colégio Cardinalício e a capacidade de fazer seu sucessor. A possibilidade de que a agenda de reformas se intensifique e se aprofunde apavora quem se aproveita do fechamento da Igreja para perpetuar a corrupção, os crimes sexuais e os abusos de poder. Burke e Viganò escondem sua picaretagem por trás de um discurso neomedieval.
Por fim, vale destacar que a mensagem diretamente ligada ao projeto de reforma da Igreja incomoda a extrema direita global. A “humanização” do mundo proclamada por Francisco implica o combate às injustiças sociais e ambientais. Importantes países católicos da Europa e da Ásia estão compondo governos de extrema direita: Filipinas, Polônia, Hungria, Áustria e Itália. No ano que vem, é possível também que o maior país católico do mundo seja governado pela extrema direita.
Ora, como manter a legitimidade moral de um discurso racista e xenófobo, que despreza o combate a mudanças climáticas e ignora as desigualdades socioeconômicas nesses países, quando o papa – maior autoridade moral e religiosa – prega o contrário? Francisco é o maior entrave para o avanço da extrema direita dentro e fora da Igreja. Se não conseguirem derrubá-lo até 2019, não será de espantar que haja um cisma na Igreja.