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O grande Ismael Silva

Eliete Negreiros | 02 nov 2012_18h39
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Mário de Andrade estava no Rio, indo pro Bar Amarelinho, na Cinelândia, antigo ponto de encontro dos intelectuais e boêmios, quando viu Lúcio Rangel, jornalista, crítico musical, cronista apaixonado pelo samba carioca, sentado numa mesa, bebendo seu chopinho: “Lúcio, ó Lúcio! Sabe quem encontrei agorinha mesmo? O Ismael, o Ismael Silva!”, diz Mário emocionado. E Lúcio, impassível, continua bebendo e secamente: “Não conheço esse Ismael”, responde. “Ora Lúcio, logo você não conhecer o Ismael Silva, o grande Ismael Silva!”, diz Mário espantado.  Ao que Lúcio responde: “Ah! Esse eu conheço: o grande Ismael Silva!”. Chico Buarque gravou um depoimento onde disse: “Ismael é a maior influência que eu tenho em toda a minha obra (…) é o  meu verdadeiro pai musical.”

O grande Ismael Silva nasceu em Niterói, em 14 de setembro de 1905 e morreu no Rio de Janeiro em 14 de março de 1978. Muito cedo, seu pai morreu deixando sua mãe, Emília, com cinco filhos para criar. Como Emília era pobre, quatro de seus filhos ficaram com parentes e ela ficou com o pequeno Ismael, então com três anos de idade, e foram morar no Estácio. Sambista precoce, bem cedo Ismael aprendeu a tocar pandeiro e tamborim (só mais tarde aprenderia violão). Começou no samba tocando percussão e não foi à toa que ele revolucionou justamente o aspecto rítmico do samba:

Sérgio Cabral em “As Escolas de Samba do Rio de Janeiro”, fala desta diferença no ritmo do samba, divergência engraçada, entre a primeira geração, da qual faziam parte Sinhô, Donga e Pixinguinha e a segunda, a de Rubens Barcelos, Bide e Ismael Silva, do Estácio de Sá. “Quando alguém pediu ao compositor mangueirense Carlos Cachaça, durante o seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som, que explicasse a diferença entre o antigo samba e o samba do Estácio de Sá, o depoente foi aparteado por outro veterano compositor da mangueira, Babaú, que assim definiu a música criada por Rubens Barcelos, Ismael Silva, Bide e outros mais: ‘Era samba de sambar’.” Cabral conta que perguntou a Donga e a Ismael qual era o verdadeiro samba:

Donga – Ué, o samba é isso há muito tempo: “O chefe da polícia/Pelo telefone/Mandou me avisar/ Que na Carioca/ Tem uma roleta/ Para se jogar”.

Ismael Silva – Isso é maxixe.

Donga – Então o que é samba?

Ismael Silva – “Se você jurar/ Que me tem amor/ Eu posso me regenerar/ Mas se é/ Para fingir, mulher/ A orgia assim não vou deixar.”

Donga – Isso é marcha.

Ismael Silva, numa entrevista, fala desta mudança ocorrida no samba, o “paradigma do Estácio”: “Quando comecei, o samba não dava para os agrupados carnavalescos andarem nas ruas, conforme a gente vê hoje em dia (…) O samba era assim: tan tantan, tan, tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar na rua assim? Aí, a gente começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbum prugurundum…”

No final da década de 20, na época do carnaval, a gente do Estácio brincava nos blocos de sujos. Esses blocos existiam em vários bairros e os do Estácio reuniam os “bambas” do samba, aqueles que faziam um samba cujo ritmo era contagiante, bum bum paticumbum prugurundum. Entre os blocos havia disputa, o que muitas vezes terminava em briga. Quando alguém provocava alguém do Estácio, eles diziam, seguros de si: “Deixa falar… Deixa falar” e esta foi a origem e o nome da primeira escola de samba. O pessoal do Estácio tinha muito orgulho de sua música por isto chamaram seu bloco Deixa falar de “escola de samba”. E também porque havia no Estácio uma escola que formava professores: “Se da Escola Normal saiam os professores”, fala Ismael, “passamos a dizer que professores de samba só no Estácio. A gente dizia com vaidade: ‘Escola de Samba é a do Estácio’”.

Em seu primeiro samba, Desisti, samba que nunca foi gravado, Ismael já fala do mundo que lhe fascinava, do qual iria fazer parte e que seria, junto com o sofrimento amoroso, tema nuclear de sua obra – o mundo da malandragem: Já desisti da mulher/ Já desisti do trabalho/ Agora só me falta/ Desistir do baralho.  Sambista precoce, tinha catorze anos quando fez este samba, onde fala como se fosse um adulto. O menino já tinha fascinação pela boemia: bares, mulheres, jogo, música, elegância – o terno de linho branco, um ícone do samba, a elegância da malandragem. Mas Ismael tinha mais vocação para o samba. Os malandros exploravam prostitutas, eram hábeis no manejo da navalha, sabiam brigar. Ismael brigou algumas vezes, mas este não era o seu jeito, gostava mesmo era de se vestir, de fazer samba e para ganhar dinheiro. Vendia seus sambas para cantores famosos, que não compunham, mas que queriam faturar com a criação dos outros, oferecendo, em troca, projeção e dinheiro. Para os sambistas que eram pobres, desconhecidos e não tinham muito como ganhar a vida, era uma proposta difícil de ser recusada. Chico Alves, o “rei da voz” é um “comprador” famoso, comprou vários sambas de Ismael. Infelizmente, isso era muito comum na época…


Que será de mim – Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves

Com Mário Reis e Francisco Alves, orquestra Copacabana


Tristezas não pagam dívidas, Ismael Silva com Francisco Alves

Malandragem: há um texto fundamental do crítico literário Antonio Cândido, Dialética da malandragem (1970). Nele, Cândido analisa o romance de Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias, escrito na segunda metade do século XIX, e diz que o que constitui a grande força desta obra é que ela é constituída pela dialética da ordem e da desordem, presente na dinâmica das relações humanas do romance. Esta dialética da ordem e da desordem, que ele chama dialética da malandragem, é um princípio estruturador da sociedade brasileira, onde os limites entre ordem e desordem se misturam, onde há uma “Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz”.


Homenagem ao malandro – Chico Buarque

Ainda sobre a malandragem no universo do samba, é esclarecedor o que Paulinho da Viola disse numa entrevista.Ele distingue dois tipos de malandro: um gozador e outro mau caráter. O malandro do samba é um gozador:“O que fascina no Moreira da Silva é que ele tem a coisa universal do Chaplin, o perder e ganhar, e é esta a malandragem. A malandragem está em perder também. Não é o malandro convencido, o maior, o imbatível, o mau caráter, que só pensa em ganhar, que não pensa em ninguém,  onde as coisas vão para o lado do mau gosto, pra violência, para um clima sem nenhuma graça; um sujeito amoral, o mais forte, o mau caráter. O samba do Moreira não é assim. Tem vitória e derrota. Tem humor. Implica as duas coisas. Como Woody Allen e Jacques Tatit. Pode perder e pode ganhar. Isto está em todo o universo do samba”


Escola de malandro, Ismael e Noel

Conta-se que em 1931 Ismael encontrou Noel Rosa no Café Nice, ponto de encontro de músicos e boêmios do Rio. Os dois já se conheciam, mas a partir de então fizeram várias parcerias. Neste encontro, Ismael  mostrou a Noel a primeira parte do samba Para me livrar do mal: Estou vivendo com você/ Um martírio sem igual/ Vou largar você de mão, com razão/ para me livrar do mal. Noel gostou, pediu para fazer a segunda parte e Francisco Alves gravou no mesmo ano. Sucesso! Em algumas partituras e gravações Francisco Alves aparece, ao lado de Noel e Ismael, como compositor…


Noel poeta da Vila, diretor Ricardo Van Steen

Outras parcerias de Noel e Ismael: Adeus, Não digas, Uma jura que fiz, A razão dá-se a quem tem, Boa viagem, Ando cismado. Ismael dizia que Adeus foi feito em homenagem a seu parceiro e amigo Nilton Bastos, que havia morrido de tuberculose. Com Nilton, Ismael tem sambas antológicos: Arrependido, É bom evitar, O que será de mim Se você jurar, que estourou no carnaval de 1931.


Se você jurar com Francisco Alves e Mário Reis

Foi no show Gal a todo vapor, em 1971, no teatro Ruth Escobar, em São Paulo, que ouvi, atônita, Gal Costa cantar uma das mais belas canções brasileiras, uma canção de Ismael Silva, diferente dos sambas ritmados, uma canção lenta, um apelo à amizade, à solidariedade, uma canção compassiva, ô Antonico, vou lhe pedir um favor.


Antonico com Ismael


Antonico com Gal

Eis aí um pouco do grande Ismael Silva: Alma do samba, no dizer de Noel,  no dizer de Vinicius, São Ismael  e também  o verdadeiro  pai musical  de Chico.


Seleção de sambas de Ismael com Ismael Silva, MPB4

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