Já aviso que é apenas uma opinião pessoal e portanto ninguém precisa ficar revoltado, aflito ou nervoso, mas a comida feita por mão humana (saindo, portanto, do ranking azeite de oliva, queijo parmesão e similares) mais sofisticada que existe é o XiaoLongBao, um pastel de Shanghai na medida da boca cozido no vapor, recheado de carne – e aí é que mora a maravilha – com uma sopinha embutida. O funcionamento é semelhante ao de um bombom de licor: ao morder é preciso tomar cuidado para não babar de fato e de prazer.
Consta que a receita do XiaoLongBao foi criada em Nanxiang, província de Shanghai, e que está, muito justamente, na lista dos "protected traditional treasures" do governo. O cozinheiro que atinou com o processo de preparo merecia ter seu nome eternizado, virar estátua, efígie no dinheiro e batizar aeroporto. Um nhoque de massa especial é aberto com um pau de macarrão mais fino até atingir uma espessura bem precisa e formato perfeitamente circular. No meio desse círculo é depositada uma almôndega de carne de porco, às vezes misturada com ovas ou carne de caranguejo e – aí é que está a mágica – com pedacinhos de aspic, o brodo com consistência de gelatina. A massa é então dobrada de modo a envolver o recheio, mas sem apertar, que é para sobrar espaço para a colherada de sopa que vai aparecer depois que o cozimento a vapor derreter a gelatina. O conjunto é fechado como uma trouxa (imagine um cochicho de pano), que idealmente deve ter no mínimo 18 pregas e no máximo 21, vejam o grau de requinte. A trouxa de massa é então levada para cozinhar no vapor dentro de pequenas cestas de bambu (xiaolong) e —- rufar de tambores —– voilá, um triunfo de sofisticação disfarçado de bolinho. O gosto arranca lágrimas, de tão bom.
Soa complicado? É muito complicado, requer uma cultura culinária milenar e anos e anos de treino. A massa precisa ter uma elasticidade tal que acolha o caldo sem quebrar e que não se parta depois de cozida no caminho até a boca. Também não pode ser tão grossa que não permita que a carne cozinhe, e que a gelatina derreta. O tempo de cozimento deve ser exato, nada pode derreter ou secar. E a trouxinha não pode ficar grande a ponto de não caber inteira na boca, já que morder XiaoLongBao é desastre na certa.
Era este o prato planejado para o post inaugural, aquele que o jetlag arruinou.
O restaurante em questão é o Din Tai Fung, taiwanês, e condecorado com uma merecidíssima estrela do guia Michelin (uma constelação seria mais justo). Na cozinha envidraçada cada um dos bolinhos passa por uma linha de montagem composta por seis chefs impecavelmente vestidos e usando máscara. Cada chef deve ser capaz de completar oito vezes por minuto a etapa que está sob sua responsabilidade. Para cuidar de uma etapa, cada chefe faz uma especialização de no mínimo de dois anos.
Quem tiver curiosidade, pode acompanhar o modo de fazer demonstrado por um dos chefs do Din Tai Fung clicando aqui:
Ou espiar a cozinha no restaurante de Taipei (o funcionamento de todas é igual)
E aqui o site da matriz:
http://www.dintaifung.com.tw
Ainda que o Din Tai Fung fosse um buraco e que como garçons contasse com uma equipe de ogros, valeria a pena pela comida. Mas o serviço é eficiente e atento na medida do útil e necessário, sem intromissão, salamaleque e nem frescura. Eles trazem a comida e ficam pela redondeza mantendo as mesas no campo de visão e atenção, mas deixam o cliente comer em paz.
Mas voltando ao fogão, uma receita que exige um grau de especialização merece um alerta semelhante ao das cenas perigosas: "Não tente repetir em casa sem supervisão". Dá para fazer em casa, mas não é nada simples.
O bom é que o Din Tai Fung tem hoje filiais em 11 países, quem sabe acaba chegando ao Brasil e não vai ser mais necessário viajar muitas horas (o restaurante mais próximo fica em Los Angeles) para matar a vontade de XiaoLongBao.
Fundo musical para se distrair esperando o restaurante: