Há poucos diálogos, esparsos e lacônicos, em , dirigido por Cao Guimarães e Marcelo Gomes. Os personagens não têm o dom da palavra – observam, transitam e cumprem tarefas quase sem falar. Mantém relações dominadas pelo silêncio, o que torna ainda mais opressivo o retrato da solidão na metrópole feito no filme.
A nota destoante é Margô (Sílvia Lourenço) dizer a Juvenal (Paulo André): “Difícil é o ser humano. Máquina não dá defeito. O ser humano é complicado, né?” Único diálogo conceitual em um filme no qual o sentido do que se vê e ouve está quase sempre implícito. Instante de concessão em uma realização rigorosa, sugerindo um lampejo de insegurança dos diretores com a forma narrativa alusiva que adotaram.
O homem das multidões cumpre a contento sua proposta de desdramatizar até a medula a vida cotidiana de personagens comuns integrados à tecnologia urbana da vida moderna. Margô é controladora de tráfego do metrô e superior hierárquica de Juvenal, maquinista de trem. Ainda assim, ela se revela dependente dele, primeiro para ser seu padrinho – só conhece pessoas pela internet e não tem quem possa convidar –, depois como seu refúgio após o que parece ter sido um casamento desfeito.
Tema e forma são harmonizados em . A mudança da usual proporção retangular da imagem para o formato quadrado acentua, em particular nos planos próximos, o confinamento dos personagens, além de “colocar o espectador em um estado de percepção aguçada”, conforme Consuelo Lins comentou (“Experiência sensorial”, O Globo, 31.7.2014). Reduzida a largura do quadro, o olhar tende a ser menos dispersivo e a se dirigir para o centro de interesse.
Depois da trilha sonora transcorrer apenas com diálogos, ruídos e som ambiente por longo tempo, a primeira intervenção musical, à qual algumas outras se sucedem, é impactante e transfigura . Do realismo depojado que prevalece até esse momento, o filme passa a ser um lamento lírico no qual “Felicidade”, de Noel Rosa e René Bittencour, interpretada por O Grivo, dá o tom: “Felicidade! Felicidade!/ Minha amizade foi-se embora com você/ Se ela vier e te trouxer/ Que bom, felicidade que vai ser! […] Trago no peito/ O sinal de uma saudade/ Cicatriz de uma amizade/ Que tão cedo vi morrer/ Eu fico triste/ Quando vejo alguém contente/ Tenho inveja dessa gente/ Que não sabe o que é sofrer […] O meu destino/ Foi traçado no baralho/ Não fui feito pra trabalho/ Eu nasci pra batucar/ Eis o motivo/ Que no meu viver agora/ A alegria foi-se embora/ Pra tristeza vir morar” – versos que preservam o tom alusivo predominante, sem descrever de forma direta o enredo de , como costuma ocorrer quando canções são incluídas em filmes.
Ao adotarem o mesmo título do célebre conto de Edgar Allan Poe, apenas transpondo a multidão do original para o plural, Cao Guimarães e Marcelo Gomes talvez tenham induzido a busca de uma relação entre o filme e O homem da multidão. Na verdade, ao contrário do que tem sido escrito, não se trata de uma adaptação. O parentesco é mesmo “longínquo”, como bem observou Luiz Zanin Oricchio (O Estado de S.Paulo, Caderno 2, 1 de agosto de 2014). Para ele, os diretores “reciclam” o texto literário “em uma realidade bem distinta”, o que tampouco parece correto – “vagamente inspirado” ou “sugerido” talvez exprimissem melhor a origem do belo filme autônomo de Cao Guimarães e Marcelo Gomes.
Margô e Juvenal são personagens conformados com a fatalidade que os condena a ficarem sozinhos. O peripatético homem da multidão de Poe, ao contrário, “se nega a ficar sozinho”. Ele é um “velho decrépito” que tem a expressão do demônio e parece ao narrador guardar no peito uma “história fantástica”, enquanto o casal do filme é uma página em branco. Pouco sabemos a seu respeito. Ela mora com o pai. Ele mora sozinho. O que mais?