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O homem na porta do banco

O lugar da política de assistência social 

Suellen Guariento | 09 set 2018_02h44
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Ele estava com as calças arriadas quando me aproximei do banco. Eram quase oito da noite, no Centro do Rio de Janeiro. Branco e magro, o homem se posicionava junto à porta giratória. Já diante do caixa eletrônico, virei rapidamente para trás e reparei no movimento de suas mãos. Também pude ver suas coxas peludas e esquálidas. Minha primeira reação, medo. A segunda, taquicardia. Depois, uma mistura das duas coisas.

Saí imediatamente da agência e, do lado de fora, respirei fundo. Um homem alto, de terno e cabelos grisalhos, passou pela rua. Olhei para ele. O engravatado seguiu em frente sem notar o meu temor. Pudera: não gritei, não chorei, não falei nada. Ainda tensa, decidi encarar a situação. Não havia outra agência por perto e eu precisava sacar dinheiro. Estava com o bilhete único descarregado e sem 1 real para pegar o ônibus intermunicipal. “Odeio esse banco!”, pensei, enquanto aguardava o homem erguer as calças e se distanciar. “Um morador de rua se tocando à beira do caixa eletrônico. Que bizarro!” Segui para a máquina e, de relance, avistei o lugar onde ele permanecera parado. O vidro da agência se encontrava manchado de marrom. Só então compreendi o que tinha acontecido. Senti vergonha por mim e pelo homem das coxas peludas.

À semelhança dele, uma imensidão de pessoas está fora do jogo político institucional. São adultos e crianças submetidos a circunstâncias que vão da precariedade à degradação. Em virtude do atual quadro de destruição das políticas públicas, inventam maneiras de dar conta de suas necessidades mais essenciais. Classificados pelo Estado como “sem vínculo”, têm a prerrogativa de recorrer às unidades do Creas, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social. Esses equipamentos públicos reúnem profissionais competentes e comprometidos – que, no entanto, enfrentam a constante falta de infraestrutura.

A presença cada vez maior de pessoas “em situação de rua” por todo o país deriva em grande parte do modo como os políticos lidam com a ideia de assistência social. Para muito deles, assistência social significa assistencialismo e populismo. Não por acaso, à medida que os serviços públicos de acolhimento minguam, proliferam propostas para resolver “o problema dos moradores de rua” a partir de uma lógica higienista.Em época de eleição, essa gente costuma ser tratada como uma ameaça à ordem pública. Pior que não são apenas os candidatos que a enxergam assim. Parte do eleitorado também compartilha tal visão.

A violência institucional sobre os que moram e trabalham nas ruas espelha o desejo perverso de a sociedade eliminá-los. Um desejo que, como constatamos diariamente, não impede o aumento dessa população. Usar a violência para resolver dilemas sociais só gera mais insegurança tanto para os que dispõem de casa, comida e roupa lavada quanto para os que catam latinhas, pedem dinheiro no sinal e dormem sob marquises.

Obviamente que viver ao relento não é o ideal para ninguém. Mas a rua acaba se convertendo em espaço de resistência e de criação de alternativas diante da diminuição vergonhosa de serviços públicos fundamentais, em especial daqueles que suprem as necessidades elementares de quem nem sequer se encaixa na categoria de “trabalhador” aos olhos do senso comum.

Enquanto a política de assistência social for encarada como uma ação que se volta para “coisas sujas” e não para pessoas, nos defrontaremos com cenas como a do homem na porta do banco. Talvez, em junho de 2013, a atitude dele pudesse ser considerada um gesto político contra grandes corporações. Mas, no processo eleitoral de 2018, é principalmente uma tragédia.

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