Uma das fotos mais marcantes que eu já vi sobre futebol mostrava Nilton Santos chegando para um treino do Botafogo. No exato momento do clique, o maior lateral de todos os tempos acabara de saltar do ônibus e trazia um embrulho nas mãos, provavelmente seu par de chuteiras.
Nilton Santos morava na Ilha do Governador, o que o obrigava a fazer no mínimo uma baldeação para chegar ao estádio de General Severiano. Alguém pode alegar: mas ele devia ter 19 ou 20 anos, estava começando a carreira. Nada disso: Nilton já tinha conquistado o bicampeonato mundial e montara uma reputação que nenhum outro jogador de defesa jamais conseguiu no país do futebol.
É bastante possível que o atual lateral do Botafogo, Júlio César, more num apartamento maior do que aquele em que Nilton Santos morava – nem falo do automóvel, já que a Enciclopédia ia para os treinos de ônibus. Eram outros tempos, e não há o que reclamar. Apenas constato.
Não cheguei a ver Nilton Santos jogar, mas sempre tive o máximo de respeito pelo que ouvia das pessoas que me fizeram gostar tanto do jogo. E o homem era unanimidade, que certamente Nelson Rodrigues reconheceria como exceção à sua tese de que todas elas são burras.
Entretanto, até hoje – e parece que assim será para sempre – Nilton é vítima de uma injustiça: ter sua maior lembrança associada a uma jogada não de talento, mas de malandragem. Nada contra, futebol também tem muito disso, mas num caso tão especial como o de Nilton Santos, é inadmissível.
É bem verdade que, quase tanto quanto a performance arrebatadora de Garrincha, o passinho à frente de Nilton Santos foi fundamental para a conquista do bicampeonato – aquele pênalti, assinalado e convertido, deixaria a Espanha com dois a zero no placar, e nos mandaria de volta para casa. Mas Nilton deu muitos outros passos à frente. Com uma classe fora do comum, fez os laterais participarem mais do jogo. Mostrou que não era impossível o que até então parecia proibido: um defensor subir ao ataque e marcar gols, até em jogo embaçado de Copa do Mundo. E se transformou no maior exemplo que temos de dedicação a uma camisa. (Mesmo se pegarmos o time do Botafogo do início da década de sessenta, quando as transferências de jogadores ainda não eram usuais, vamos observar que Didi tinha jogado no Fluminense, Zagallo no Flamengo, Quarentinha foi mais tarde para o Deportivo Cali e Amarildo para o Milan, até Garrincha, embora em final de carreira, chegou a atuar pelo Corinthians. Nilton, não: só jogou no Botafogo.)
Lembro de outra história sublime de Nilton Santos toda vez que vejo em campo um juiz cheio de soberba e com postura militar, feito Héber Roberto Lopes. Nilton já parara de jogar profissionalmente e foi convidado a participar de uma pelada na Ilha. Relutou, mas a paixão pela bola falou mais alto, e lá foi ele. Quando os peladeiros estavam todos em campo, entra um cara vestido de preto e soprando o apito o mais alto possível. Com tranquilidade e firmeza, Nilton Santos se dirigiu à figura: Amigo, desculpe, mas quem é você? Bom dia, seu Nilton, eu sou Fulano de Tal, o árbitro da partida. E o craque, fechando questão: Não me leve a mal, mas juízes de futebol me atormentaram a vida inteira. Agora, depois que parei, não vou mais aturar isso. O senhor queira se retirar, por favor.
Nilton Santos sabia tudo.