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O horror está entre nós

Uma face tétrica da atualidade é a perda da esperança de viver bem no Brasil

Eduardo Escorel | 22 set 2021_09h14
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Já houve mais de 590 mil mortes, no Brasil, resultantes da Covid-19. O cenário tétrico persiste, portanto, apesar de 38,59% da população estar totalmente vacinada.

Ocorrências de dimensão menor, sem dúvida, mas também horríveis, afetam de modo decisivo a vida de milhares de brasileiros e vêm se agregar à tragédia humanitária.

Os acontecimentos horrendos, que incluem a asfixia do cinema produzido no Brasil, iniciada em janeiro de 2019, e o abandono da Cinemateca Brasileira à própria sorte, receberam adendos na semana passada – o Espaço Itaú de Cinema anunciou o fechamento de salas por estarem operando com taxa de ocupação inferior a 20%; o governo federal enviou ao Congresso projeto de lei propondo cortar 22 bilhões de reais em benefícios fiscais, incluindo alguns destinados à indústria audiovisual.

Outra face tétrica da atualidade é a perda da esperança de viver bem no Brasil – quem pode muda para Portugal, e quem não pode faz tentativas desesperadas de migrar ilegalmente para os Estados Unidos, às vezes com consequências dramáticas. A vítima mais recente, Lenilda Oliveira dos Santos, técnica de enfermagem, de 49 anos, morreu em 7 de setembro. Matéria de O Globo (18/9) informa que seu corpo foi encontrado em uma região desértica da cidade de Deming, no Novo México, após ter sido deixada para trás pelo coiote e seus colegas de travessia. “O nosso país hoje está tão difícil que mesmo sendo técnica de enfermagem formada aqui”, disse a irmã de Lenilda ao Globo, “era melhor para ela trabalhar como faxineira lá nos Estados Unidos… Que nosso país seja melhor. O Brasil acabou.”

Enquanto isso, continua a procissão lúgubre de filmes brasileiros da era a.P. (antes da pandemia) rumo à sepultura, ops, às salas de cinema. Apesar de a queda de frequência durante a pandemia ter tornado ainda mais grave a crise crônica de rentabilidade das produções nacionais, a exibição em tela grande mantém sua aura. Lançamentos pró-forma vêm ocorrendo, muitas vezes apenas para cumprir exigência da Ancine feita a produções que receberam financiamento público para terem direito de chegar depois às plataformas de streaming, ao vídeo sob demanda e demais mídias. Essa obrigação deveria ter sido reconsiderada diante da circunstância excepcional criada desde que a Organização Mundial da Saúde decretou a pandemia do novo coronavírus, em março de 2020. O resultado da persistência da imposição tem sido a sucessão de fracassos anunciados – produções de gêneros e méritos variados atraem no máximo algumas centenas de espectadores, contribuindo para agravar a desesperança no setor audiovisual.

Cena do filme “Meu Nome É Bagdá” – Foto: Camila Cornelsen

 

Com sessões de pré-estreia iniciadas há dois dias (20/9), em São Paulo, Nem Tudo se Desfaz (2021), de Josias Teófilo, será exibido amanhã (23/9) no Rio de Janeiro, e depois em várias cidades, de Porto Alegre a Recife e Belém, entre outras. Conforme o título deixa claro, trata-se de um documentário conservador.

Além de conter uma declaração de princípios, o título Nem Tudo se Desfaz revela a considerável ambição de Teófilo. Colhido entre as epifanias do poeta Bruno Tolentino (1940 – 2007), incluída em A imitação do amanhecer (2006) – “Nem tudo se desfaz, anda em tudo um resquício” –, o nome do filme se contrapõe à famosa declaração de Karl Marx e Friedrich Engels no Manifesto Comunista de 1848: “Tudo que é sólido desmancha no ar”, apresentada em forma de legenda no início, enquanto a legenda com a proposição de Tolentino surge no encerramento.

Perspectiva conservadora equivalente à das ideias de Nem Tudo se Desfaz é adotada na linguagem convencional do documentário ao intercalar imagens de arquivo e gravações originais com depoimentos de professores, jornalistas, escritores, cientistas políticos, além de dar atenção especial ao que Olavo de Carvalho tem a dizer. 

Como é frequente no cinema, em especial entre nós, Nem Tudo se Desfaz é portador de um mal de origem ao pretender, na primeira metade, dar conta dos eventos políticos conhecidos como as “jornadas de 2013” e terminar com a posse do presidente eleito em outubro de 2018. Passados quase três anos, o documentário já se tornou anacrônico ao deixar de fora o mais relevante neste momento – o desastroso governo do morador provisório do Palácio da Alvorada, responsável pela crise econômica em que o país se encontra e considerado criminoso por sua gestão da pandemia, conforme parecer do grupo de juristas entregue à Comissão Parlamentar de Inquérito, que o acusa ainda de ter cometido “crime de prevaricação, crime contra a humanidade, infração de medida sanitária, charlatanismo e incitação ao crime”.

Teófilo comete a falácia de tratar com pompa e circunstância um presidente da República inepto que tem orgulho de ser grosseiro e cultiva vulgaridades. O órgão insistente na trilha musical, a voz cavernosa do narrador Reinaldo Gonzaga, assim como o uso reiterado de cenas de clássicos do cinema silencioso, em especial O Fantasma da Ópera (1925), de Rupert Julian, acentuam a incongruência entre o tom grandioso e a baixeza do personagem principal,

Por maior que possa ser o interesse pelo processo que levou à eleição anômala do atual presidente da República, causa estranheza a complacência com que Teófilo acata e reproduz aberrações ditas e cometidas durante os anos em que o atual presidente da República foi figura apagada na Câmara dos Deputados e, depois, durante sua ascensão como candidato a presidente até ser eleito e tomar posse.

As palavras de Jean Wyllys, então deputado federal, parecem ter sido incluídas no filme, pouco antes do final, para sugerir imparcialidade, justificando as barbaridades ditas pouco antes pelo então futuro presidente da República. Mas o tempo só acentuou os desmandos de um e a exatidão do outro:

Eu acho que o Bolsonaro é uma aberração na nossa democracia. A existência dele no Congresso Nacional e as coisas que ele faz são tão absurdas que não dá para acreditar que este país possa ter um parlamentar eleito com aquele tipo de ideia e com aquele tipo de comportamento… É uma figura abjeta, é um ser humano que é um entrave ao crescimento espiritual da humanidade.

Ao contrário, porém, de violentos ataques feitos a Nem Tudo se Desfaz por pessoas que não parecem ter visto o filme, a existência de filmes explicitamente conservadores no cinema brasileiro deve ser considerada sinal de maturidade de nossa cinematografia. Inadmissível é o deliberado processo de extermínio da atividade cinematográfica e o descaso com nosso patrimônio audiovisual – tanto pelo que foi realizado no passado quanto levando em conta o potencial criativo que continua a aflorar com frequência, assim como pelo direito básico de realizar cinema neste país.

*

Meu Nome é Bagdá (2020), de Caru Alves de Souza, estreou há uma semana (16/9) em três salas do Espaço Itaú de Cinema, duas em São Paulo e uma no Rio de Janeiro, além do Estação Net Rio, com total de seis sessões diárias. O filme chega aos cinemas após uma carreira de sucesso em diversos festivais, iniciada na 70ª Berlinale, onde foi premiado como Melhor Filme da mostra Generation 14plus. Tendo acumulado outros catorze prêmios no exterior, a partir de hoje (22/9) estará em 100 cinemas de 40 cidades da França.

Há inúmeros aspectos louváveis em Meu Nome é Bagdá, a começar pela elegância do prólogo em que a jovem skatista Bagdá (Grace Orsato) percorre o pátio e corredores do colégio, fazendo pequenas manobras, mais parecendo deslizar sobre nuvens. Espero ter a oportunidade de voltar ao filme em outra ocasião. Quero apenas assinalar aqui, além da delicadeza de sentimentos, o impacto da sequência de Meu Nome é Bagdá em que a brutalidade da polícia não deixa a menor dúvida: o horror está entre nós.

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