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    Ilustração: Allan Sieber

tipos brasileiros

O Humor-do-Mercado

Isenção de IR para acomodados? Paciência tem limite

Roberto Kaz | 30 nov 2024_09h12
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Sempre tem aquele jornalista que me pergunta: “E aí, mas qual é o limite do humor do mercado?” E eu respondo uma coisa meio espirituosa, tipo: “É o aeroporto que virou uma rodoviária! É o meu Porsche voltando arranhado do Vallet Park! É a Cleide passando férias em Miami e não em Cachoeiro de Itapemirim! Ha. Ha. Ha.” Só que nesta semana aconteceu. Eu realmente conheci o limite do humor do mercado. Que no caso, é o meu limite. E ele não tem graça.

Antes de qualquer coisa, deixa eu me apresentar. Eu sou o Humor-do-Mercado. Assim, com hífen, tipo Champs-Élysées. Saint-Tropez. Ou Mar-a-Lago, que ultimamente eu tenho achado um destino mais interessante. Você já deve ter ouvido meu nome na tevê, no rádio, ou na coluna do Merval. E se ouviu, você sabe que eu costumo acordar de mau humor. Ainda mais quando o governo vai lá e apresenta um pacote totalmente antimeritocrático.

Olha o absurdo dessa situação. Pensa que um sujeito ganhe 5 mil reais por mês, mas acredita no Brasil. Então ele pega um empréstimo com o pai, empreende, cria uma startup, vai à falência, pega outro empréstimo com o pai, empreende mais uma, cria outra startup, vai de novo à falência, pega o terceiro empréstimo (com o pai, claro), dá a terceira empreendida (ele é brasileiro, não desiste nunca) e finalmente cria uma startup que funciona (uma plataforma online onde você pode vender a sua própria dignidade). Então esse guerreiro, depois de tanto esforço, passa a ganhar 50 mil reais por mês. E que que o governo faz? Mete-lhe mais imposto, enquanto premia com isenção o brasileiro acomodado que continua ganhando 5 mil. Percebe a contradição? Como é que vai surgir um novo Eike Batista, um novo Jorge Paulo Lemann, com uma política dessas?

É esse tipo de notícia que acaba com o meu dia. E aí eu ligo a GloboNews, e tá lá a Eliane Cantanhêde contando pra Deus e o mundo que eu amanheci com o humor instável. Claro! Quer estabilidade? Então me banca uma CLT nessa caralha! (Brincadeirinha, gente, tenho nojo.) 

Eu tenho um amigo que pensa assim que nem eu. O nome dele é Humor-dos-Militares. E ele também tá com sangue nos olhos depois que esse governo avisou que vai mexer na aposentadoria dele. E na pensão da mulher dele. E na pensão vitalícia que um dia seria da filha dele. Olha que barbaridade: o cara abdica da vida de civil, abdica do direito de pagar um aluguel caro num apartamento de dois quartos pra morar numa vila militar e servir ao país se especializando na teoria de como dar golpe de Estado. E aí, depois de tanto sacrifício, de tanto estudo sobre como envenenar presidente, sequestrar ministro e contrabandear joia, o governo manda ele esperar até os 55 anos de idade para se aposentar?! Tem como o Humor-dos-Militares não ficar exaltado?

É por isso que ontem eu rodei a baiana (mentira, rodei a paulista mesmo; baiana só quando eu chamo a Cleide: “Ô, baiana!”). Acordei inquieto, almocei já mais pro irritado e fui dormir beirando o bolsonarismo-moderado. Vendi ação da Petrobras, comprei dólar, elogiei o Milei, culpei o funcionalismo público e orei pro superávit — foi dia da maldade. Também dei entrevista pra tevê, pro rádio e pra coluna do Merval exigindo corte na área social. No fim das contas derrubei a bolsa em uns 2% e fiz o dólar subir a 6 reais. Passei meu recado.

Alias, disso eu não posso reclamar: o pessoal do jornalismo sempre reproduz os meus recados, que eles chamam de Oscilações-do-Mercado. E para isso usam uns verbos super criativos. As ações nunca caem: elas despencam, desmoronam, desabam, implodem, não deixam pedra sobre pedra, mesmo quando a queda é só pontual. O importante é quem me ouve em casa saber quando eu fico pancada. Tipo aquela vez em que o governo resolveu reter um pouco do lucro da Petrobras. Como é que eles tomam uma decisão dessas sem consultar o Humor-do-Mercado? Tão achando o quê? Que aquilo é uma estatal? 

Agora, eu não penso só em economia. Meu humor varia com outras coisas também. Pagar décimo terceiro para empregada doméstica? Mexe com o Humor-do-Mercado. Ver essa multidão preguiçosa, sem espírito empreendedor, recebendo Bolsa Família? Mexe com o Humor-do-Mercado. Descobrir que colaborador de plataforma online tá começando a exigir direito trabalhista? Acaba com o Humor-do-Mercado. E na paralela ainda tenho que aguentar o pessoal do meio ambiente reclamando do agro, o pessoal dos direitos humanos reclamando da Polícia Militar (que eu gosto), e o pessoal da Polícia Federal (que eu não gosto) batendo aqui na porta de casa pra reclamar da minha offshore. Tá vendo como tem limite o Humor-do-Mercado?

O que não tem limite é o Humor-do-Artista. O humor-do-Professor. O Humor-do-Assalariado. Que são três categorias que vão perder muito mais que os militares nessa reforma tributária. Mas é aquela história, né? Humor é pra quem pode. E o meu, graças a Deus (que eu também chamo de neoliberalismo), é bem elástico. É que não importa qual seja o governo, a crise, o crescimento da inflação, a política de cortes ou a taxa de juros, a verdade é que eu sempre rio por último, e melhor. 

 

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