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O Irlandês – memória e maldição

Filme de Scorsese alcança grandeza ao fazer acerto de contas do diretor com sua obra

Eduardo Escorel | 20 nov 2019_10h33
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Quando a expectativa supera de longe o que é razoável esperar de um filme, ao assisti-lo há sempre o risco da decepção ser diretamente proporcional. A responsabilidade pelo desaponto, porém, pode não ser do próprio filme, e sim da esperança excessiva criada por antecipação a respeito dele.

Esse parece ser o caso de O Irlandês – consagrado pela crítica dada a hipérboles, como obra-prima e melhor filme de Martin Scorsese em trinta anos, mas afetado pelo confronto entre a espera ávida por algo supremo e o que o espectador afinal contempla exibido na tela grande da sala escura. Trata-se, mesmo havendo essa discrepância, de uma realização de valor a ser reconhecida e louvada.

O Irlandês resiste ao fato de durar 3h29min, embora dê a impressão de que poderia ser bem mais curto. O filme surpreende, além disso, por se diferenciar de Os Bons Companheiros (1990) e Casino (1995), sem romper de todo com o veio dedicado à máfia da filmografia de Scorsese, realizado quando ele estava na meia-idade.

Vinte anos depois, ao retomar o mesmo tema outra vez na velhice, Scorsese narra com sobriedade as lembranças do caminhoneiro e dirigente sindical Frank Sheeran (1920-2003), acusado de estar a serviço da família Bufalino. Não só evita tornar a sucessão de eventos violentos um espetáculo em si mesmo, como também abre mão quase por completo da elaborada coreografia da câmera característica do seu modo de filmar. Predominam, em O Irlandês, planos próximos, fixos, centrados nos principais personagens em confronto – além de Sheeran (Robert De Niro), o líder sindical James Riddle Hoffa, conhecido como Jimmy Hoffa (Al Pacino), desaparecido em 1975, e o mafioso ítalo-americano Russell Bufalino (Joe Pesci), que morreu aos 90 anos, em 1994, por causas naturais.

De Niro em cena do filme – Foto: Divulgação

 

O roteiro de O Irlandês, escrito por Steven Zaillian, é baseado no livro de não-ficção I Heard You Paint Houses,  publicado em 2004 (editado no Brasil em 2016 e relançado este ano pela editora Seoman com o mesmo título do filme), de Charles Brandt, ex-vice promotor geral do estado de Delaware, investigador e advogado de defesa. Brandt escreve a partir das entrevistas de Sheeran gravadas ao longo de cinco anos e afirma que ele, pouco antes de morrer, lhe disse ser o assassino de Jimmy Hoffa.

Embora as informações contidas em I Heard You Paint Houses tenham sido corroboradas por fontes independentes incluídas em edições posteriores do livro, dois artigos publicados este ano, um na revista online Slate, de agosto, outro no New York Review of Books, de setembro, desmentem em termos categóricos, tanto a confissão de Sheeran, quanto outros trechos do relato de Brandt.

Citando um repórter do New York Times, Bill Tonelli escreve na Slate que o livro no qual O Irlandês é baseado seria a história da máfia mais inventada desde a falsa autobiografia de Lucky Luciano publicada há quarenta anos.

The Last Testament of Lucky Luciano, publicado em 1975, foi apresentado como sendo baseado em depoimentos do próprio chefe mafioso. Aceito, inicialmente, como autobiografia confiável, acabou sendo considerado “terrivelmente suspeito”, repleto de erros factuais e fatos que não ocorreram durante a vida de Luciano (sem edição brasileira, o livro foi publicado em Portugal pela Editora Portugália, s/d, com tradução literal do título, O Último Testamento de Lucky Luciano).

“A Netflix investiu quase 200 milhões de dólares [159 milhões para ser preciso, segundo a Reuters] em uma sátira mordaz da fanfarronice de um gângster?”, pergunta Tonelli em seu artigo na Slate. “Ou Scorsese acredita na história de Frank Sheeran? Eu não sei. Scorsese se recusou a falar comigo”, conclui o autor no artigo publicado antes de ter assistido ao filme.

A Slate do mês seguinte apresentou uma extensa carta do editor de I Heard You Paint Houses em defesa da veracidade do livro, assim como a tréplica de Tonelli reafirmando o que escreveu.

Segundo Jack Goldsmith, professor de direito em Harvard, no seu artigo do New York Review of Books, “filmes baseados em ‘crimes verdadeiros’ costumam tomar certas liberdades com detalhes factuais. Mas O Irlandês vai muito além dessa convenção uma vez que toda a história é baseada em uma confissão inverossímil.” “Meu livro”, escreve Goldsmith, “não trata do suposto papel de Sheeran no assassinato de Hoffa, já que eu, como muitas pessoas que estudaram o caso a fundo, considero suas alegações absurdas.”

Por mais interessante que o enigma em torno do desaparecimento e da morte de Hoffa seja, Scorsese não pretende resolvê-lo. O roteiro de O Irlandês opta por assumir a perspectiva de Sheeran, conforme relatada em I Heard You Paint Houses. Trata-se de um longa-metragem de ficção, ainda que baseado em fatos e personagens reais, não de um documentário, muito menos de um livro de história ou de uma reportagem jornalística.

O primeiro plano do filme estabelece de modo inequívoco que a narrativa é feita do ponto de vista do gângster idoso – é o relato autobiográfico de Sheeran, sujeito a lapsos e equívocos, intencionais ou não, fantasias, episódios imaginários, sem compromisso, necessariamente, com a verdade factual.

Ao som de In the Still of the Night, a câmera avança pelo corredor da casa de repouso, identificada por idosos e cuidadores. É um longo travelling subjetivo, reminiscente do plano de abertura de Os Bons Companheiros, mas em versão tranquila. Como é usual em documentários, um interlocutor não identificado está chegando (Seria o padre confessor visto só no final do filme?). Ele vai até diante da cadeira de rodas na qual o velho Sheeran, veterano da Segunda Guerra Mundial, está sentado e de onde contará sua história.

A abertura evoca a cena de Cidadão Kane (1941) em que o jornalista Jedediah Leland (Joseph Cotten), de viseira, óculos escuros e roupão, está no terraço do hospital diante do repórter Jerry Thompson (William Alland). A desgraça de Sheeran é a mesma de Leland: “Eu lembro de absolutamente tudo, rapaz. Essa é minha maldição”, diz o personagem de Herman J. Mankiewicz e Orson Welles. “Essa é uma das maiores maldições jamais infligidas à raça humana, a memória.”

Sheeran tenta, por sua vez, fazer um acerto de contas com seu passado criminoso e se livrar da “maldição da memória”. E Scorsese, de seu lado, faz um balanço em tom reflexivo de uma parte importante de sua atividade criativa. Reside aí, na dupla tentativa de lidar com a memória, a grandeza de O Irlandês.

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Outro aspecto, mantido em segundo plano, é a relação da máfia com políticos americanos, inclusive presidentes da República, como John Kennedy e Richard Nixon. Ao espectador brasileiro de O Irlandês não devem passar despercebidos os possíveis paralelos com o que acontece entre nós envolvendo milicianos, o presidente da República e seus filhos, promiscuidade que explicaria o fato do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, cometido em 14 de março de 2018, até hoje não ter sido esclarecido.

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Coluna alterada às 17h13 do dia 21/10 para incluir a informação sobre a edição brasileira de I Heard You Paint Houses, Charles Brandt.

 

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