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    Da esquerda para a direita, os atores Bruna Linzmeyer, Felipe Frazão, Lara Tremouroux e Mariana Oliveira, e a diretora Anita Rocha da Silveira, na exibição do filme Medusa na Quinzena dos Realizadores, em Cannes, em 12 de julho passado - / Foto: Luiza Ferrero

questões culturais

O limbo brasileiro em Cannes

No maior festival de cinema do mundo, protestos contra Bolsonaro e apreensão com o futuro dos filmes no país

Isabel Weinberg Lima e Luiza Ferrero | 30 jul 2021_14h00
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Três semanas antes do início do 74º Festival de Cannes, no dia 6 de julho passado, a diretora carioca Anita Rocha da Silveira, de 36 anos, vivia a angústia de não saber se conseguiria pousar na França. Seu segundo longa-metragem, Medusa, havia sido escolhido para a mostra paralela Quinzena dos Realizadores, mas os cuidados adotados pelo governo francês com a pandemia, entre eles a restrição à entrada de brasileiros no país, poderiam dificultar sua viagem. Em 2020, o festival teve apenas uma mostra online. Neste ano, com certo relaxamento das medidas sanitárias na França, a realização do evento foi autorizada, desde que cumpridas todas as regras impostas pelas autoridades.

Com a ajuda dos consulados franceses do Rio de Janeiro e de São Paulo, Anita Silveira e cinco pessoas de sua equipe conseguiram, em 16 de junho, a autorização para desembarcar na França. Faltava quase um mês para a abertura do festival, mas a diretora achou melhor viajar logo, pois tinha receio de que a pandemia piorasse no Brasil. Além disso, precisaria cumprir uma quarentena imposta pela administração francesa para poder pisar no tapete vermelho de Cannes. No dia 19, ela tomou o voo para Paris. 

A quarentena na capital francesa durou dez dias. Depois disso, Silveira seguiu para Cannes. Ela não poderia perder a oportunidade de ver seu filme exibido na Quinzena dos Realizadores: Medusa fora um dos 24 filmes escolhidos de uma leva de 1 395 filmes submetidos ao comitê de seleção da mostra.

Para a diretora, a satisfação de estar em Cannes se juntou ao “alívio”, como disse, de ter sido selecionada para a Quinzena, que é dedicada a novos talentos do cinema. “Nesse momento incerto de Brasil, não temos previsão de quando será possível lançar o filme nas salas de cinema”, afirmou à piauí. “Saber que o nosso trabalho poderia ter a visibilidade que Cannes proporciona foi fundamental.” Como a diretora e sua equipe não tinham tomado a segunda dose da vacina, eles tiveram que realizar testes PCR de 48 em 48 horas para ter acesso às sessões.

No Brasil, por causa da longa quarentena, uma das raras vezes que Silveira entrou num cinema foi para o teste de projeção de Medusa, com a presença de apenas alguns de seus colaboradores e convidados. Fazia muito tempo que ela não via uma sala cheia, como a que encontrou na projeção de seu filme em Cannes, no dia 12 de julho. Para ela, a experiência foi “quase uma fantasia”, como definiu, “um momento para celebrar o cinema, de viver uma realidade paralela, de reencontrar pessoas que eu não via fazia muito tempo por causa da pandemia”.

Antes da exibição, Silveira apresentou Medusa ao público. Falando em inglês e visivelmente comovida, ela contou sobre os obstáculos que existem hoje para fazer cinema no Brasil, um país onde o presidente constantemente classifica os agentes culturais como “vagabundos” . Convidados pela diretora, quatro integrantes do elenco – Mariana Oliveira, Bruna Linzmeyer, Lara Tremouroux e Felipe Frazão –, subiram ao palco com cartazes que diziam, em português: “Vacina sim” e “Não apoiamos genocidas”. E que afirmavam, em inglês: “Half a million dead in Brazil and counting…” (Meio milhão de mortos no Brasil e seguindo…) e “Indigenous land remains. No to PL 490” (Terras indígenas ficam. Não ao PL 490). O projeto de lei 490, do governo federal, altera a demarcação das terras indígenas.

A sala de projeção se viu, então, tomada por gritos de protestos: “Fora, Bolsonaro!”

Medusa, por si só, é um filme-denúncia. O roteiro foi escrito depois de uma extensa pesquisa sobre o universo religioso no Brasil: Silveira investigou desde os cultos até as publicações das chamadas “blogueirinhas cristãs”. “Quando comecei a escrever o roteiro, estava percebendo o movimento do ultraconservadorismo de extrema direita chegando ao poder, ocupando espaço na mídia, nas redes sociais. E no Brasil esse pensamento ultraconservador está ligado à religião”, contou a diretora.

A protagonista de Medusa, a jovem Mariana (interpretada por Mariana Oliveira), cresceu em ambiente religioso e é constantemente controlada pelos fiéis da igreja neopentecostal à qual pertence. Eles definem o que ela deve vestir, fazer, falar, pensar. Pouco a pouco, a perseguição aos que não se enquadram nos padrões impostos vai tomando uma direção cada vez mais violenta, o que encaminha o filme para o território do suspense e até do terror, gênero com o qual a diretora tem afinidade – seu primeiro longa, Mate-me por favor (2015), chamou a atenção por ser um filme de horror com viés de crítica social.

Silveira afirmou que hoje é muito desanimador ter que continuar lutando para fazer cinema autoral no Brasil, mesmo para uma diretora que teve seu filme exibido em Cannes. Apesar do período difícil por que passa o país, ela faz questão de apontar saídas em Medusa, antes dos créditos finais: a da transgressão e a da união feminina. Nas suas palavras, “a união é mais forte, as mulheres de meu filme preferem se unir, em face da estrutura conservadora”.

A Agência Nacional do Cinema (Ancine) liberou a verba para a realização de Medusa no final de 2018, pouco antes da posse de Jair Bolsonaro, no início do ano seguinte. Uma vez no poder, o presidente não demorou a afirmar que iria extinguir a Ancine. Não foi exatamente o que ele fez: preferiu aparelhar o órgão federal, a fim de financiar filmes alinhados à sua ideologia.

Embora não tenha sido premiado na Quinzena dos Realizadores, Medusa chamou a atenção da crítica, por fazer um diagnóstico da situação atual no Brasil mesclando, de maneira singular, religião, política e terror. “A diretora conhece bem suas referências na história do cinema de gênero e as utiliza com perspicácia a serviço de seu próprio olhar crítico sobre a sociedade brasileira contemporânea marcada por excessos de fanatismo implacável”, escreveu o crítico Cédric Lépine no prestigioso jornal online francês Mediapart.

 

Neste ano, nenhum filme brasileiro concorreu à Palma de Ouro de longa-metragem, principal premiação do Festival de Cannes. Apesar disso, o júri da competição contou com Kleber Mendonça Filho, diretor de Bacurau, que ganhou em 2019 o Prêmio do Júri do festival (dividido com o francês Les Misérables, de Ladj Ly). O longa Marinheiro das Montanhas, do cearense Karim Aïnouz, produzido pela VideoFilmes¹, foi apresentado fora de competição, na Sessão Especial. Quem ganhou a Palma de Ouro foi a francesa Julia Ducournau, pelo filme Titane.

Os brasileiros não foram selecionados para a disputa principal, mas concorreram à Palma de Ouro de curta-metragem, com dois filmes: Sideral, de Carlos Segundo, de 42 anos, e Céu de Agosto, de Jasmin Tenucci, de 35 anos. O curta Cantareira, de Rodrigo Ribeyro, de 24 anos, foi apresentado na mostra paralela Cinéfondation, dedicada a filmes de estudantes de cinema. Todos os diretores são paulistas.

A Palma de Ouro de curta-metragem foi entregue à diretora chinesa Yi Tang, por Todos os Corvos do Mundo (Tian Xia Wy Ya), mas Tenucci recebeu Menção Especial, o segundo prêmio mais importante da mostra. Em um café de frente para o Palácio dos Festivais – onde ocorrem as sessões mais importantes –, a diretora brasileira, de shorts e blusa amarela, contou à piauí que teve a ideia de seu filme no dia em que o céu de São Paulo ficou escuro, em 19 de agosto de 2019, por causa de uma frente fria associada à fumaça de incêndios florestais.

Ao descobrir que o motivo da escuridão eram as queimadas da Amazônia e entender a dimensão simbólica que aquele dia poderia ilustrar, Tenucci escanteou outro projeto que tinha em mente e se concentrou na realização de Céu de Agosto, que foi financiado por um prêmio norte-americano. Para ela, “o dia que virou noite” foi uma “representação sintetizante” do que então assombrava o Brasil, depois da eleição de Bolsonaro. “Dias mais escuros virão?” Esta era a pergunta que atormentava a diretora. Segundo Tenucci, eles vieram: “A pandemia, o jeito que ela foi tratada… É só um dos exemplos de como o horror chegou.”

Apesar das diferenças que os separam, o longa de Silveira e o curta de Tenucci guardam coisas em comum, como o estado de apreensão e medo dos personagens, e a referência central às igrejas neopentecostais. No curta, uma enfermeira grávida (interpretada por Badu Morais) está vivendo um período de dificuldades e encontra consolo em uma igreja, enquanto parte da Floresta Amazônia queima pelo sétimo dia seguido.

A dimensão pessoal acaba se misturando ao drama político coletivo – o que, para Tenucci, seria quase inevitável. “Meu filme está inserido em um momento de país que é extremamente político”, ela disse. “Não é uma história sobre a Amazônia, mas que retrata um país em chamas. A fumaça toma conta da cidade, mas também de nossas vidas particulares.” Nas redes sociais, Kleber Mendonça Filho declarou que Céu de Agosto é “uma das mais firmes crônicas sobre os anos B17, o tom de uma peste bíblica”, referindo-se, com “B”, a Bolsonaro, e, com 17, ao número da legenda do presidente nas eleições.

Tenucci ressaltou que quis falar da comunidade neopentecostal sem maniqueísmos. Na sua opinião, a esquerda brasileira falhou em estabelecer um diálogo com essa parte importante da população, que não está toda ela relacionada ao projeto da extrema direita. “Discordo politicamente da postura das grandes igrejas. É um projeto de Brasil horroroso, mas temos que diferenciar isso da comunidade em si, das pessoas”, afirmou.

 

Em 2019, o diretor Karim Aïnouz ganhou, com A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, o prêmio principal da mostra paralela Um Certo Olhar, a segunda mais importante de Cannes. O filme conta a história de duas irmãs no Brasil dos anos 1950, marcadamente machista. Neste ano, o diretor apresentou, com Marinheiro das Montanhas, um filme mais pessoal, em que relata uma viagem à Argélia em busca de suas origens paternas, o que, por fim, se traduz em uma busca de si mesmo. As perguntas de Aïnouz passam pela militância política de seu pai na guerra de independência da Argélia (contra a dominação francesa) e as motivações que levaram sua mãe, a brasileira Iracema, a estudar nos Estados Unidos no tempo da ditadura no Brasil.

O filme foi longamente aplaudido e, depois da sessão, com a sala ainda escura, um cartaz de fundo vermelho com escritos em branco foi levado para a frente da tela. Dizia: “Brasil: 530 mil mortos. Fora gângster, genocida.” A intervenção política de Aïnouz continuou quando ele tomou a palavra. “A democracia brasileira respira por aparelhos”, disse o diretor à plateia. “Além das mais de 500 mil mortes com a Covid, muitas outras vidas foram perdidas por responsabilidade direta dessa administração genocida.”

Mais uma vez, uma sala do Festival de Cannes foi tomada por gritos de “Fora Bolsonaro”.

Os protestos contra a situação no Brasil começaram logo no início do festival, na tradicional coletiva do júri principal de Cannes. Vieram de Kleber Mendonça Filho, mas também do presidente do júri, Spike Lee. “Neste momento, o Brasil ultrapassou 500 mil mortes na pandemia. Nós sabemos por dados técnicos que, se o governo tivesse agido, 350 mil teriam sido salvas”, disse o diretor brasileiro. Spike Lee não poupou nas palavras, qualificando Donald Trump, Vladimir Putin e Bolsonaro de “gângsteres”. Mendonça Filho chamou a atenção para a crise que afeta a Cinemateca Brasileira, a instituição responsável pela preservação da produção audiovisual do país, que está fechada há cerca de um ano. “É como se hoje o Brasil não tivesse acesso ao seu álbum de família. A Cinemateca não é só um depósito, é um lugar vivo com a memória do país”, comparou o diretor de Bacurau. Nesta quinta (29), um grave incêndio atingiu o prédio da instituição que fica na Vila Leopoldina, em São Paulo.

 

“E no ano que vem? Vai ter filme brasileiro em Cannes? E, se tiver, será feito com que dinheiro?”, disse a roteirista e crítica paulista Helen Beltrame-Linné, de 40 anos. Ela frequenta o Festival de Cannes há quinze anos e foi diretora da fundação sueca Bergman Center, dedicada ao diretor Ingmar Bergman.

Talvez parte da verba que pode estimular o cinema brasileiro venha, justamente, da Suécia. No último dia 10 de julho, o Göteborg Film Fund anunciou um apoio financeiro à produção audiovisual de países e povos onde a democracia está sob pressão. Na lista, estão a população curda, o Sudão, a Ucrânia, o Iraque e o Brasil. Uma das diretoras favorecidas pelo fundo é Júlia Murat (realizadora, entre outros, de Operações de Garantia da Lei e da Ordem), que não conseguiu captar dinheiro no Brasil para seu novo filme, Regra 34.

Beltrame-Linné, no mesmo café de frente para o Palácio dos Festivais, continuou com suas perguntas: “O cinema brasileiro foi adotado por uma agência, a Ancine, que o abandonou. E o que fazemos agora? Voltamos para casa?” Ela avalia que o Brasil não foi representado em Cannes em 2021 com a força que já atingiu em outras edições – na de 2019, por exemplo –, e o que resta ao setor audiovisual nos próximos anos é a incerteza. “Vivemos o último suspiro dos mecanismos de incentivo”, disse. “Estamos em um limbo.”

Para Anita da Silveira, a situação do cinema no Brasil é “desesperadora”. “O que eu posso dizer é pra tentarmos mudar as coisas na próxima eleição. Que todo mundo vote com consciência, pensando em um candidato que não vê o setor cultural com desprezo, como o governo atual.” Tenucci resumiu objetivamente o que sente em relação ao estado da produção cinematográfica no país: “A gente quer apenas poder contar histórias, poder viver e pagar as pessoas que trabalham com a gente.”

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¹A VideoFilmes é uma produtora de Walter Salles e João Moreira Salles, editor fundador da piauí.

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