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    Lúcia Polino (no meio) e duas amigas no muro do supermercado: restos de alimento apanhados no lixo ajudam a ter o que comer em casa Foto: Lianne Ceará

questões da fome

O lixo é nossa mesa

A rotina das pessoas que catam restos de comida nos fundos de um supermercado

Lianne Ceará | 20 out 2021_19h41
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Eram sete da manhã desta quarta-feira (20) quando Lúcia Polino, aposentada de 63 anos, uma senhora baixinha e de cabelos grisalhos, chegou aos fundos de um supermercado no Cocó, bairro de classe alta em Fortaleza. O galpão do mercado virou ponto de encontro para pessoas pobres, moradoras de uma comunidade na região, que buscam no lixo do supermercado e dos prédios vizinhos restos de alimentos a serem reaproveitados. Polino recebeu a má notícia: o caminhão do lixo passara mais cedo, às cinco da manhã. “O caminhão sempre passa pelas 9 horas, mas hoje passou às cinco, uma amiga que estava aqui e foi embora me falou”, contou a aposentada, desanimada. Na vizinhança, os prédios altos e repletos de varandas estavam com os depósitos de lixo nas ruas, mas o lixo do mercado já tinha sido coletado. Depois que a coleta passa, o grupo ainda costuma ficar ali, jogando conversa fora e esperando alguma doação. Para chegar até o local, Polino leva cerca de dez minutos. Cruza os trilhos do trem que dividem dois bairros de classe alta da capital cearense: Aldeota e Cocó. Ao lado da passagem do trem fica a Comunidade dos Trilhos, de onde vem a maioria das pessoas que se juntam a Polino toda manhã; um grupo menor vem do bairro Vicente Pinzon, um pouco mais distante dali, nas redondezas da Praia do Futuro. 

No início da semana, um vídeo mostrando pessoas procurando comida em meio ao lixo do mercado viralizou na internet. O vídeo foi filmado no dia 28 de setembro e mostrava as pessoas se espremendo nos fundos de um caminhão de lixo e recolhendo alimentos dos resíduos deixados de lado pelo supermercado, na esquina da Rua Bento Albuquerque com a Avenida Engenheiro Santana Júnior, em Fortaleza. Polino estava na disputa e aparece no vídeo. “Aquela manhã foi uma loucura, havia mães com menino de colo chorando com fome”, lembra. “Todo mundo que estava ali precisa muito do supermercado, são restos de comida dali que põem a comida na mesa.” O vídeo, que alcançou 2,5 milhões de visualizações na publicação original mas foi reproduzido em diversos veículos, foi gravado pelo motorista de aplicativo André Queiroz, que passava pelo local.

Foto: Reprodução/Redes sociais


O vídeo causou alguns efeitos. Numa parede de cor amarela dos fundos do supermercado, alguém pintou em letras garrafais a frase “19 milhões com fome” – referência ao relatório da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) sobre a população que passa fome no Brasil. O grupo que pega as sobras de comida não sabe quem pintou a parede.“A gente não tem culpa”, diz Polino.
A piauí procurou o supermercado Pão de Açúcar através do telefone da unidade e da assessoria de imprensa do grupo, mas não obteve retorno até as 19h40.

 

Polino conta que tem quatro filhos, sendo que uma é usuária de drogas, vive nas ruas e deixou com ela o neto, de 18 anos. Contando com o neto, são cinco bocas para alimentar na casa. Seu marido é deficiente visual e não trabalha. Os filhos que estão em condições de trabalhar enfrentam o desemprego. A renda da família não tem dado para custear as despesas da casa. “O aluguel já é caro, fora água, gás, luz, tudo. Eu tô querendo arranjar um emprego pro meu neto, mas a gente já distribuiu tanto currículo e nada de surgir um”, relata. 

Os piores dias, conta, são aqueles em que não tem um pão sequer para comer e dar aos filhos e netos. O lixo do supermercado virou uma forma de levar comida para a mesa e conseguir ajuda com doações – mais frequentes desde a viralização do vídeo. “Algumas pessoas passam por aqui e pedem o pix, eu dou o da minha filha… Tem caído algum dinheiro, viu? Vinte reais, trinta reais, e assim vai”, diz. Por volta das 8 horas, um grupo de integrantes de movimentos sociais chegou ao local e doou uma cesta básica para cada pessoa. Com uma corda, Polino e o neto prenderam a cesta na bicicleta e foram ajudar outras pessoas. A aposentada ficou preocupada com uma amiga que não ia conseguir levar a cesta, pois morava mais distante e estava a pé, mas eles logo arranjaram uma carona com os doadores. Hoje foi melhor que ontem, quando a amiga chegou tarde e saiu de mãos abanando do local. O motorista de aplicativo André Queiroz, que gravou o vídeo, também voltou ao local nesta quarta-feira. À piauí, disse que ficou feliz com a repercussão e em poder ajudar as pessoas. “Ainda bem que o senhor teve a atitude de filmar e ajudou a gente. Que Deus te abençoe”, disse Robervânia Silva, 43, que pediu também uma foto com Queiroz.

Antes de se juntar às pessoas que recolhem restos de comida no lixo do supermercado, Polino não conhecia nenhuma delas. Umas quinze ou vinte se conheceram lá mesmo, e, em meio à pobreza, um laço se criou entre elas. “Quando alguém não tem merenda e outros têm, a gente divide, todo mundo come. Água, tudo a gente divide, nós somos uma família aqui. Aqui é nossa mesa”, diz Silva, que também procura comida no caminhão do lixo e também aparece no vídeo que viralizou.

Quando o caminhão do lixo chega, normalmente são os homens que vão para dentro dele, retiram os restos de comida e passam para as mulheres, que ficam fora do caminhão, na rua. Nos dias em que a coleta é boa, como o do vídeo, todos partem pra cima. Depois, juntam o apurado e tentam dividir com quem pegou pouco. É comum levar alguém da família para ajudar. Polino levou o neto, Silva foi com o marido. As duas relatam que quando alguém vem sozinho, os outros fazem de tudo pra ajudar. Tem quem leve até carrinho de compra para ajudar a levar o apurado para casa. “Os maridos ficam pendurados no carro e vão nos passando os alimentos. A gente ajuda quem não tem marido. Nós não temos discussão, briga, humilhação um com o outro. Todo mundo se respeita, se trata bem”, diz Silva. 

Na casa de Silva são três pessoas, ela, o marido e uma filha de 18 anos. Ela é recicladora de lixo e vai até a esquina do supermercado às terças, quintas e sábados. Costuma ficar lá até as 14 horas. Às segundas, quartas e sextas não costuma ir, porque trabalha na coleta de lixo com o marido, os dois são recicladores. Hoje, estava no caminho da coleta e viu os amigos recebendo as cestas. Resolveu parar. “Vocês, que não estão acostumados com essa vida, já sentem o calor que é, imagina nós, que somos sufocados com essa quentura todos os dias, agora está fazendo sombra, mas imagina meio-dia?” Às 9h30, fazia 30°C em Fortaleza e, assim como na maioria dos dias, o sol era escaldante. Os moradores dos prédios vizinhos por vezes se compadecem do grupo e oferecem água para beber, mas muitas vezes a água acaba sendo usada para aliviar o calor e é jogada no corpo.

A recicladora afirma que não está ali por escolha própria, mas sim por falta de possibilidades. Reza para que essa mesma falta de possibilidades que lhe atingiu não atinja a filha, que cursa o ensino médio, sonha em ir para fora do Brasil e ser astrônoma “para ver as estrelas”. “Se dessem emprego pra gente, eu não estaria aqui. Vocês acham que eu ia preferir estar aqui, sair de casa pra viver nessa humilhação? A gente precisa viver”, indaga. Prestes a partir para o galpão de reciclagem e já atrasada, Silva busca sua bicicleta encostada no muro de um dos prédios. “Já vou, que eu tenho um aluguel de 350 reais para pagar.”

Dentro do supermercado, a maioria dos clientes que chegava pela porta principal vestia roupas de academia ou trabalho. No caixa, uma mulher com roupa de ginástica pagou uma bandeja de carne de patinho moída e exaltou seu cartão, explicando para o caixa que ele pontua em dólar. “Ô, cartãozinho abençoado”, comemorou. Um senhor com cerca de 50 anos reclamou do preço de uma bandeja de minitomates: 300 gramas por 8 reais. “Deus me livre…”, reclamou. Lá fora, na coleta de lixo, Lúcia Polino relatou que tomate era um dos itens mais recolhidos no caminhão. “Tomate, pepino, pimentão, muitas vezes são jogados fora mas estão bons, aí a gente pega. Não é sempre que tem carne, né?”

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