Naji Abu Nowar, jordaniano nascido e criado na Inglaterra, define O lobo do deserto como um “western beduíno”, tributário de Akira Kurosawa, John Ford, Sergio Leone e do western americano em geral. Ao reivindicar essa ilustre ascendência, Nowar presta, de certo modo, um desserviço ao seu próprio filme. Embora tenha, de fato, elementos identificáveis dos mencionados ancestrais, O lobo do deserto situa-se, por seus próprios méritos, em outro plano, igualmente elevado.
A saga se destaca, em primeiro lugar, por retomar o projeto neorrealista, trabalhando com atores não profissionais, sem conhecimento prévio do que fosse cinema, além de desconhecerem em que consistia interpretar um personagem – a primeira vez que assistiram a um filme foi quando viram o próprio O lobo do deserto.
Outro singularidade do filme é a sobriedade da encenação e do seu modo de filmar, distantes da estilização exuberante característica de Kurosawa e Leone. Em busca de autenticidade, Nowar e o co-roteirista Bassel Ghandour, viveram um ano no sul da Jordânia para conhecer os beduínos locais e estudar seus hábitos, valores culturais e maneiras de contar histórias, empreendimento de cunho antropológico refletido no filme.
“Aos treze anos”, Nowar explica, “meninos beduínos são considerados homens e participam de uma cerimônia de circuncisão. Meninos jovens enfrentam desafios e quando vencem são considerados aptos para lutar em guerras etc. Sendo assim, muito da história vem de ouvir as histórias que eles contam e escrever minha própria versão ou interpretação, permanecendo fiel à história original.” (entrevista completa disponível aqui)
O trailer do filme informa que a ação de passa na província de Hejaz, na Arábia, em 1916. Durante a Grande Guerra, portanto, e antes do surgimento do Reino da Arábia Saudita, em 1932, após conquistas ocorridas durante 20 anos. Salvo falha de atenção, porém, essa informação não é dada no próprio filme. De qualquer modo, não parece fazer a menor falta. Tampouco depende de saber que a ação de O lobo do deserto é situada “no período mais importante da história do Oriente Médio”, conforme Nowar esclarece na mesma entrevista citada acima. Período “no qual ocorreu o fim de um império de 400 anos e o redesenho do mapa da região cujas consequências ainda sentimos hoje em dia. Todas as questões envolvendo o Iraque, a a Síria, os Curdos e a Turquia, Israel e a Palestina resultam diretamente daquele momento singular da história. Foi um momento tão crucial e uma crise tão existencial para a região que eu gosto do reflexo do personagem passar por uma crise similar.”
Ao cerrar o foco na jornada de amadurecimento de Theeb, que renasce, emergindo do fundo do poço no qual caiu, toda essa contextualização histórica e geográfica perde relevância. O que realmente importa é o aprendizado de Theeb. Ele toma seu destino nas mãos quando segue o irmão na viagem pelo deserto em que ele serve como guia de um oficial inglês. E progressivamente torna-se cada vez menos dependente dos adultos até aprender a se defender e absorver a lição de que “os fortes comem os fracos”.
No próximo domingo (28/2/2016), o Oscar de melhor filme não falado em inglês poderá ser dado a O lobo do deserto, Filho de Saul, comentado há duas semanas, ou a um dos outro três indicados. O filme húngaro e o jordaniano mereceram a indicação e honrarão a Academia e o cinema se forem premiados.
NOTA DE PESAR
Na segunda-feira passada, 22 de fevereiro, na sessão de 19h15 da sala 5 do cinema NET Rio, cheiro de esgoto foi sentido durante a projeção de Filho de Saul. Segundo relato de uma espectadora, quando o filme terminou e as luzes foram acesas, o público percebeu que a sala estava alagada e para sair foi obrigado a pular de poltrona em poltrona para não “inundar os pés no esgoto”. Assistir Filho de Saul sentindo aquele odor foi considerado uma experiência “inesquecível”. A que ponto chegamos.