Há pouco tempo topei com o cantor e compositor Leo Tomassini no bairro da Gávea. Foi num início de tarde de um dia comum. Leo é daqueles que estão sempre com uma canção na cabeça, ruminando um verso melódico, examinando seus significados. Naquela tarde ele usava um chapéu que lhe realçava ainda mais o aspecto andarilho. Sorria. Certamente cantarolava algo quando nos encontramos. Assim que nos cumprimentamos, logo começamos a falar de música. Foi então que ele me contou que andava pensando na estranha beleza do verso “Quando piso em folhas secas”. Enquanto o ouvia falar, eu resgatava da memória minha impressão mais profunda da obra-prima de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito.
É incrível como o que nos é familiar, aquilo que é mais óbvio, frequentemente nos passa despercebido. Eu jamais havia atentado para a grandeza desse verso de abertura. Ele é tão poderoso que imanta toda a canção – ela desabrocha a partir dele, e ao final parece a ele retornar. A metáfora é concreta, sinestésica: tem um apelo tátil, visual e até mesmo sonoro, uma vez que é impossível dissociar o “pisar em folhas secas” do ruído que decorre do gesto. A canção se tinge de sépia. A imagem, que também possui um aspecto muscular, pois que associada a uma ação, ao ato de caminhar, põe o homem em relação com o mundo natural. O estalar de folhas secas desencadeia uma reflexão sobre a condição humana.
Da materialidade prosaica do sensível somos lançados ao plano das ideias. A natureza é o espelho no qual vemos refletida, em símbolo, a condição dos homens. Há uma aproximação recíproca: homens são como folhas, possuem um vínculo misterioso com o reino vegetal; ao mesmo tempo, folhas são como homens, possuem um vínculo misterioso com o reino humano. Essa relação já havia sido percebida há milênios, na primeira obra da literatura ocidental. Numa famosa passagem do canto VI da Ilíada, Homero ressoa Nelson e Guilherme: “Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens. Às folhas, atira-as o vento ao chão; mas a floresta no seu viço faz nascer outras, quando sobrevem a estação da primavera: assim nasce uma geração de homens; e outra deixa de existir.”
A convergência entre Nelson Cavaquinho e a Grécia antiga foi notada num ensaio do escritor e artista plástico Nuno Ramos a respeito do sambista. Na música noturna de Nelson, ele diz, sentimos com nitidez a voz coletiva e anônima que emana do coro dionisíaco – a voz que revela a implacável tragédia humana: a consciência da morte, o doloroso sentimento da vida que declina na experiência do envelhecimento, ou, nas palavras de Cavaquinho e Brito, o aviso do tempo, a lembrança de que não podemos mais ficar. Nunca, nem antes nem depois, a canção brasileira se abriu tanto para a figuração da morte e do que há de sombrio na existência. Tudo em Nelson evoca o ethos da tragédia – até a luz pode ser negra. Suas músicas, encenadas em palcos sob luzes dramáticas, não raro aludem a palhaços desencantados. Sua voz soa farsesca, antes feita de falhas do que propriamente de sons, como se emitida através de uma máscara grega – o próprio rosto do sambista lembra uma máscara. Ele, Nelson, um Sileno dos morros cariocas, o preceptor e companheiro de Dioniso que anunciava verdades terríveis.
Mas as “folhas secas” da canção são logo especificadas. Trata-se de folhas “caídas de uma mangueira”, a árvore que batizou a mítica escola de samba, a Estação Primeira. Mais uma vez em consonância com o universo grego, os poetas passam a ser louvados. Eles representam aquilo que permanece, que resiste à passagem do tempo, num maravilhoso contraponto com a efemeridade das folhas secas. Se as folhas caem, a portentosa árvore perdura. Alçado à imortalidade simbólica pela força de sua criação, acolhido no seio da tradição (da “minha escola”, da “minha Estação Primeira”), o poeta é a um só tempo folha e árvore. É ele que sobe o morro vezes sem fim, munido apenas da força de seu canto, com o sol na cabeça, sempre queimando, queimando, e assim ele vai se acabando, se acabando…
Há ainda outro aspecto que confere uma força imensa ao verso que abre Folhas Secas. Ele diz respeito ao desenho melódico que corre como seiva por dentro das palavras. Mais precisamente, ao trecho de melodia que finaliza o verso, nas duas notas que cobrem a palavra “secas” – e que se refletem, no verso seguinte, nas duas últimas sílabas da palavra “mangueira”. Em cada uma dessas frases a melodia se desenvolve em sentido descendente. As palavras são cantadas em registro cada vez mais grave, acompanhando o movimento de queda das folhas. Mas nas duas últimas notas esse movimento se torna a um só tempo mais concentrado, sutil e pungente. As notas duram mais e ganham densidade expressiva na queda de meio-tom que as separa. A nota que finaliza o verso, justamente a mais aparente, estaciona meio-tom acima da tônica. Ou seja, está fora da escala diatônica do modo maior. É uma nota de grande tensão na moldura melódica da canção. E tem sua tensão ainda mais ampliada pelo modo como é alcançada: uma descida lenta, doída, de meio-tom, a partir do segundo grau da escala.
Esse é um procedimento bastante característico da poética de Nelson Cavaquinho: a descida da melodia, lenta, sofrida, em semitons, passeando por notas cromáticas (notas de “dor”) que não pertencem à escala diatônica. Nenhum outro compositor brasileiro soube explorar tão bem o uso expressivo do cromatismo quanto ele. Em Luz Negra, tal recurso atinge a perfeição. Experimente cantar o “Sempre só” que abre a canção. Cada nota tem o efeito de uma lenta punhalada no peito: a dor está entranhada na própria estrutura da canção. Trata-se de um procedimento que cria um análogo musical perfeito para os sentidos de queda, declínio, fatalidade, envelhecimento e morte que se espalham pela obra de Nelson. Vem daí parte da misteriosa e descomunal força mítica de suas canções.
Normalmente, notas cromáticas funcionam como notas de passagem, floreios estilísticos sem maiores ressonâncias expressivas. Em Nelson Cavaquinho, não: elas são o núcleo da canção, o cerne, o coração. Em Folhas Secas, as duas notas cromáticas no fim do primeiro verso definem o momento mais marcante da canção. Todo o resto parece um desdobramento da saturação de sentido que essas notas emprestam à imagem das folhas pisadas. São apenas duas notas. Se fossem três, talvez se pudesse dizer que lá estavam as próprias Moiras a tecer o destino da canção.
Pela concentração de força, beleza e sabedoria, pela ressonância mítica e ancestral, começo a achar que este é o maior verso de abertura da música brasileira.