Em 2018, as organizações Redes da Maré e People’s Palace Projects se uniram para enfrentar um desafio: como falar de saúde mental num local como a Maré, cujos moradores estão diariamente sujeitos a tantas violações de direitos? Para além dos estigmas, a periferia tem barreiras adicionais ao acesso ao atendimento psicológico. Cuidar da saúde mental é comumente visto como “coisa de rico”, e no complexo que reúne dezesseis comunidades na Zona Norte do Rio não é diferente. Durante três anos, uma pesquisa conduzida pelas duas instituições mapeou os efeitos da violência na saúde mental dos moradores – e o resultado, divulgado nesta segunda-feira, traduz em números os medos cotidianos de quem tem como despertador o som do tiroteio.
Dos moradores entrevistados, 44% estiveram no meio de um confronto nos doze meses anteriores à pesquisa; desses, 73% passaram pela experiência mais de uma vez. Outros 17% já viram alguém ser assassinado ou baleado, dos quais 55% vivenciaram isso mais de uma vez. Um a cada quatro moradores (25,5%) teve alguém próximo ferido ou assassinado. É esta também a proporção dos que viram alguém ser espancado ou agredido nos doze meses antes da pesquisa (24%), dos quais 63% viram isso acontecer mais de uma vez. A pesquisa quantitativa entrevistou 1.211 moradores acima de 18 anos em domicílios escolhidos aleatoriamente. O projeto “Construindo Pontes” reuniu pesquisadores de ciências sociais, saúde, economia e cultura da UFRJ, UFRGS e da People’s Palace Projects com a Universidade de Queen Mary em Londres.
Nos doze meses anteriores à pesquisa, 13% dos entrevistados tiveram suas casas invadidas, muitas vezes em meio a violência verbal, extorsão e perdas materiais. Entre esses moradores, 47% passaram por essa situação mais de uma vez. Outros 54% sofreram alguma limitação no acesso a equipamentos públicos, incluindo os de saúde mental, por causa de algum episódio violento. Tudo isso desmente a falácia de que moradores de favela se acostumam com a violência no dia a dia: 75,5% apontam esse fator como o principal ponto negativo de morar na Maré.
O contexto faz do medo uma constante: a maioria dos moradores entrevistados tem, sempre ou muitas vezes, o receio de que alguém próximo seja atingido por bala perdida (71%) e de ser atingido por bala perdida (63%). Quase a metade (46%) teme frequentemente que alguém próximo sofra agressão física ou verbal dentro da comunidade, enquanto 34% temem ser vítima desse tipo de violência. Dos entrevistados, 38% preocupam-se que alguém próximo seja obrigado a se envolver com atividades ilícitas ou ilegais. Um a cada três moradores tem medo de sofrer perdas financeiras, materiais ou ficar desempregado em virtude de alguma situação de violência (35%), e 31% temem dizer o que sentem ou pensam dentro de suas comunidades. Todos esses grupos responderam que se afligem com essas questões de 80 a 100% do tempo (“muitas vezes” ou “sempre”, respectivamente).
O estudo dividiu as dezesseis favelas do complexo em três grupos, delimitados por características urbanísticas e habitacionais e por diferentes regimes de domínio de grupos armados – dois sob facções rivais e um terceiro sob milicianos. Quase um terço dos entrevistados (31%) considera ter a saúde mental afetada pela violência cotidiana. Entre os que sofreram exposição direta a situações violentas, o percentual é ainda maior: 44%. Neste último grupo, 12% têm pensamentos sobre suicídio e 30% sobre morte. A saúde física, em contrapartida, teve danos causados pela violência em 19,5% dos entrevistados. As desordens mais comuns relatadas pelos moradores foram episódios depressivos (26%) e ansiedade (25,5%). As pessoas que estiveram em meio a tiroteios também apresentaram sintomas físicos como dificuldade para dormir (44%), perda de apetite (33%), vontade de vomitar e mal-estar no estômago (28%) e calafrios ou indigestão (21,5%).
“A violência afeta nossa saúde mental tanto de forma objetiva, fazendo a gente desenvolver sintomas de ansiedade, pânico e depressão, como na subjetividade mais profunda, de forma bem cruel. Já vivi os dois polos. Fui diagnosticado com crises de ansiedade, tive sintomas de depressão profunda, já tive a tentação de cometer suicídio, mas vivi um processo de reabilitação e de tratamento. Fui buscar ajuda terapêutica e, de um ano pra cá, me encontro no outro polo, colhendo o fruto de um processo de autocuidado que tive de encarar”, contou James Douglas Oliveira, morador da favela Rubens Vaz.
Para Vanda Canuto, moradora da Vila do Pinheiro, a saúde mental sempre é deixada em segundo plano. “Se você sente uma dor em qualquer parte do corpo, procura um médico, uma clínica da família. Mas quando você sente que algo não está legal na mente, vai deixando o tempo passar e só enxerga aquilo de fato quando já está no limite. As pessoas têm dificuldade de aceitar que o problema existe, em muitos casos, porque não querem ser tachadas de ‘doidas’, e não é assim. É preciso cuidar desde os sintomas iniciais para que os problemas não se agravem”, adverte ela.
Canuto trabalha acolhendo moradores de rua, abordando pessoas que precisam de ajuda psicológica e tentando encaminhá-las a buscar ajuda. Para ela, a informação é o primeiro passo para que possam entender que têm o direito de buscar tratamento. Ela considera que moradores de favelas passam por traumas em comum e, por isso, devem compartilhar entre si o conhecimento que adquiriram.
“Sofro em termos de saúde mental por morar em um lugar onde a violência é quase que diária. Em operações, sofremos violência de todas as formas. Quando saio de casa e deixo meus filhos, sabendo que aquela casa pode ser invadida a qualquer momento de forma violenta, eu não fico tranquila no meu trabalho. É ir e voltar o tempo todo com o pensamento de que posso, a qualquer momento, sofrer uma violência. O poder público poderia ter uma outra abordagem no território, estar mais presente e atuar não só com guerra às drogas, mas entendendo que as pessoas da Maré têm direitos também”, avaliou.
AMaré tem 140 mil moradores, dos quais 101 mil são adultos, mostra o Censo Populacional da Maré, uma contagem populacional realizada pela Redes da Maré em 2019. O território conta com oito unidades de saúde, cinquenta escolas e mais de 3 mil estabelecimentos comerciais. Na amostra da população entrevistada, de 1.211 pessoas, os homens totalizam 51,3%. A maior parte dos moradores (45,2%) têm de 30 a 49 anos, 30,1% têm de 18 a 29 anos, seguidos por 17,5% de 50 a 65 anos e 7,2% de mais de 65 anos. Totalizando mais de 65% da população, pretos (20%) e pardos (45,8%) formam a maioria, além de 32,2% de brancos, 1,6% amarelos e 0,4% indígenas.
A taxa de analfabetismo é de 6,3%. Em termos de escolaridade, 40,6% dos entrevistados têm ensino fundamental incompleto, outros 35% têm ensino médio completo e somente 2,6% têm ensino superior completo. Em relação ao trabalho, são 56,7% de ocupados e 43,3% de não ocupados. Quase a metade (49,6%) tem renda mensal de 1.500 a 2.500 reais, outros 25,9% ganham até mil reais e 24,5% recebem 3 mil reais ou mais.
Nesta segunda-feira, junto aos resultados do projeto “Construindo Pontes”, a Redes da Maré lança a primeira Semana de Saúde Mental – Rema Maré. O evento, que passa a ser realizado anualmente, ocorre de 23 a 28 de agosto e leva diversas atividades culturais, debates e intervenções a todas as favelas que compõem o Complexo. Uma das ações é a distribuição do Guia de Saúde Mental da Maré, com orientações básicas aos moradores sobre o que fazer diante do sofrimento mental disseminado na comunidade. O Guia também será encartado no jornal Maré de Notícias e disponibilizado em locais estratégicos, como as unidades de saúde.
Entre as atividades, estão as intervenções musical e teatral dos jovens artistas do grupo Becos; a produção de um mural de azulejos a partir de oficina com moradores; faixas na Avenida Brasil e lambes nas favelas com trechos de poemas dos artistas e dados da pesquisa; bike som pelas ruas da Maré tocando o álbum Satélite, de Rafael Rocha, composto durante o processo criativo de Becos; distribuição do Guia de Saúde Mental, entre outros. “A importância da campanha é pautar esse assunto, é introduzir esse tema com um viés mais educacional. Fazer com que a gente se abra mais para conversar sobre isso é um dos caminhos para que a gente comece os processos de cuidado e tratamento”, concluiu Oliveira.