Vencedora do Globo de Ouro de melhor minissérie/filme para a tevê, The White Lotus, da HBO, contou em sua segunda temporada histórias de personagens que vivem situações cômicas e dramáticas num hotel na Sicília. Os episódios foram ao ar entre outubro e dezembro, e uma das polêmicas entre os espectadores é descobrir se as ilustrações de abertura trazem pistas sobre o enredo. O que boa parte do público pode não saber, no entanto, é que aqueles traços lembrando afrescos italianos são assinados por um jovem artista brasileiro: Lezio Lopes, um sergipano de 32 anos, formado em design de moda pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Em 2020, morando na Austrália em pleno lockdown, começou um projeto de publicar no Instagram artes autorais. Foi notado pelos produtores da série, que o convidaram para assinar as ilustrações da abertura.
Em depoimento a Lianne Ceará
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Fui uma criança que desenhava em qualquer superfície, parede ou papel. Adorava lápis de cor, canetas coloridas, transformava rolos de papel higiênico em robôs, usava e exercitava toda a minha imaginação com esses objetos. Nasci em Aracaju, capital do estado de Sergipe. Cresci numa casa com meus pais e dois irmãos. Contando comigo, somos seis irmãos no total, sendo quatro filhos apenas do meu pai, um da minha mãe e eu de ambos. Meus cadernos do colégio estavam sempre cheios de desenhos e sempre fui muito dedicado às matérias ligadas à arte. Meus pais sempre me encorajaram a ir em busca daquilo que eu queria, meus irmãos também. Lembro de um concurso de desenho no colégio. Eu fiz duas artes, mas cada pessoa só podia inscrever uma. Decidi colocar as duas mesmo assim, então inscrevi meu irmão com uma e eu com outra. Vejo o quão errado foi isso, mas ali que passei a acreditar ainda mais na força da minha produção artística. Meu desenho tirou o primeiro lugar, e o que estava com meu irmão, o terceiro lugar.
Quando havia evento, trabalho ou produção na escola que precisasse de ilustração, meus colegas já diziam: “Chama o Lezio.” Costumava pegar o pincel dos professores e desenhar nos quadros também e, claro, todo mundo sabia que era de minha autoria. Alguns desenhos meus estamparam livros da escola. Meus pais davam duro para pagar a escola particular. Todo ano a instituição fazia um livro com poesias e textos dos alunos e, por duas vezes, uma criação minha ilustrou esse livro. Sempre gostei de ser “o menino do desenho”. Num país como o Brasil, em que artistas ainda são tão desvalorizados, esses momentos de reconhecimento se tornam ainda mais importantes. Apesar do contexto do país ser esse, em casa eu sempre tive suporte e acredito que foi isso que me fez estar aqui hoje.
Com o tempo, fui percebendo que nem todo mundo me apoiava tanto assim. Decidi cursar a graduação de design de moda e escutei de amigos próximos e familiares coisas do tipo: “Você vai trabalhar com arte? Isso não vai dar dinheiro”, “Você vai fazer moda? Não vai conseguir ter uma vida boa”. Esses comentários desestimulam sim, mas nunca me atingiram o bastante para me fazer desistir. Sempre tive amigos e família me estimulando. Mas sei que outras pessoas acabam desistindo. Minha maior apoiadora sempre foi a minha mãe, que sempre me deixou muito livre para escolher o que eu quisesse ser. Ela via meus desenhos, elogiava, me incentivava a buscar algo nesse rumo. Lá em casa, em Aracaju, ainda hoje ela guarda desde os meus primeiros desenhos, tem pastas e mais pastas com eles todos, isso sempre foi um motivo de orgulho para ela.
Quando decidi cursar design de moda, já sabia que ia ter que sair de casa e ficar longe da minha família, porque em Sergipe não temos esse curso em faculdades públicas, e meus pais não tinham dinheiro para pagar uma faculdade particular. Tive que correr atrás e estudar para o Enem, consegui passar em 2012. Escolhi fazer o curso em Fortaleza, na Universidade Federal do Ceará, por ser mais perto e por ser também no Nordeste, achei que a transição seria menos dura. Além disso, é uma cidade litorânea, e eu queria muito continuar perto do mar, como sempre foi em Aracaju.
Morei durante sete anos em Fortaleza e foi lá que eu descobri mais do mundo, mais de mim. Morei sozinho, longe da minha família pela primeira vez, e perdi o medo de muita coisa. Foi muito desafiador, mas foi o meu primeiro passo em busca do mundo, sabe? Eu queria ver as coisas com os meus próprios olhos e passar pelas dificuldades e coisas boas com minha perspectiva. Os professores da faculdade me encorajaram muito e, até hoje, quando estou para baixo, é das palavras de incentivo deles que lembro. Além disso, fiz muitos, muitos amigos, aprendi muita coisa, cresci muito pessoalmente e profissionalmente.
Logo que entrei na faculdade, a minha vontade era de ser estilista, eu já usava minha criatividade pensando em roupas diferentes, mas não tinha conhecimento técnico. No curso, aprendi sobre costura, modelagem, história da moda e da arte, pinturas, estamparias etc. O Ceará tem uma indústria têxtil muito desenvolvida, e fui me encaminhando para o setor de estamparia. Eu nunca havia feito estampa antes, mas uma amiga minha que trabalhava numa marca entrou em contato comigo e perguntou se eu fazia. Fui sincero e disse: “Nunca fiz, mas posso arriscar.” Arrisquei, deu super certo, todos amaram o trabalho, inclusive eu, e vi que podia seguir naquele caminho. Em seguida consegui meu primeiro estágio não remunerado, depois consegui um remunerado numa marca de Fortaleza. Em seguida, fui contratado como designer de estampas numa outra marca quando me formei. Trabalhei dois anos lá.
Em 2019, comecei a sentir que precisava de mais liberdade para fazer minhas criações. Saí do trabalho para seguir como ilustrador freelancer, o que foi de uma coragem absurda, mas eu já tinha alguns contatos consolidados. Sigo trabalhando dessa forma até hoje porque acredito que tenho mais liberdade nos projetos. Acredito que é dessa maneira que nós, artistas, vamos encontrando nossa identidade, nossos traços.
Nessa mesma época, fiquei pensando: “Se eu estou trabalhando de casa, posso trabalhar de qualquer canto. Porque não ir para o exterior?” Eu estava guardando dinheiro desde que comecei a faculdade, mas achava que a quantia ainda não era o suficiente para me mudar, juntava de pouquinho em pouquinho. Até que uma amiga comentou comigo que um outro amigo dela mudou para a Irlanda com muito menos, daí comecei a pesquisar, vi que era possível. Optei pela Austrália, muito por conta do clima, que parece mais com o do Brasil. Tem inverno, mas não é tão rigoroso. Além disso, vi vários relatos de que eles eram mais abertos com imigrantes e tenho comprovado isso no dia a dia. Cheguei aqui em fevereiro de 2020. Eu nunca havia sequer viajado para fora do Brasil e me atrevi a fazer isso.
Fui morar em uma casa compartilhada com outras 13 pessoas. Pretendia passar apenas oito meses, que era o tempo de conclusão de um curso no qual me matriculei e também do curso de inglês, que eram minhas motivações iniciais para permanecer aqui. Mas logo iniciei um curso de especialização, fiz um de gerenciamento de projetos e, depois, um de marketing digital. Claro que eu pensei que o dinheiro que tinha não ia durar para sempre – ainda mais quando convertido em dólar australiano, que é pelo menos três vezes o nosso real –, então comecei a trabalhar. Agarrava toda oportunidade que aparecia. Vida de imigrante é assim, primeiro você trabalha com qualquer coisa e só depois vai se encaminhando para sua área. Trabalhei como zelador de prédio, na estação de trem, garçom e barman durante o meu primeiro ano aqui. Passei por muitas situações, mas isso me incentivava a não desistir, porque eu estava dando duro e sentia como se eu tivesse que honrar todas essas dificuldades.
Logo que cheguei aqui, veio a pandemia. Tudo fechou. Aí veio a vontade de desistir. Pensei inúmeras vezes em voltar para casa, para o Brasil. Aqui na Austrália me vi trancado numa casa em que eu não conhecia ninguém, com pessoas de diversas partes do mundo, gastando o dinheiro que guardei durante tanto tempo. Também fiquei com medo de a minha família pegar Covid, queria estar perto deles, tinha medo de não estar perto para ajudar de alguma forma. “Talvez seja melhor eu pegar o próximo avião para o Brasil e voltar para Aracaju até essa poeira baixar”, pensava.
Com um tempo em casa, criei um projeto postando artes e ilustrações minhas no Instagram. Eu fazia ilustrações baseadas em algum tema e publicava. Fiz de horóscopo, fauna e flora e outros. As pessoas compartilhavam, e aquilo chegava a outras pessoas também. Comecei a postar com legendas em inglês e português sobre a minha inspiração para aquele desenho, então o público australiano também se identificava. Uni meu amor pela moda e pela arte e fiz ilustrações de algumas modelos, que também compartilhavam e expandiram minha rede. Em paralelo, meus trabalhos para marcas brasileiras continuaram. Mesmo na Austrália, meus desenhos continuaram sendo muito inspirados nas minhas raízes brasileiras, nordestinas, na nossa tropicalidade.
Num dia qualquer recebi um e-mail, e era de uma agência de produção que conheceu meu trabalho no Instagram. Pediam informações para um projeto de ilustração para vídeo. Pensei: “Meu Deus, mas eu nunca trabalhei com isso…” Ao mesmo tempo, sempre fui aventureiro e pensava: “Vou tentar. Se não der, fazer o que, né?” Tivemos algumas reuniões, eles trouxeram meus próprios desenhos como referência — justamente os do meu projeto pessoal foram os que mais chamaram a atenção deles. A equipe ainda não podia dar muitas informações antes da primeira temporada, e eu não entendia o porquê do mistério. Falaram que seria um projeto da HBO, mas eu pensava que era algo menor. Seguimos com reuniões, briefings, eles me orientaram e fui fazendo as ilustrações. Sempre faço a base do desenho manualmente, depois passo para o computador, então eu fazia e eles iam aprovando ou reprovando, e as modificações aconteciam conforme as orientações deles. Concluímos os trabalhos da primeira temporada em dois meses. Só fui ter dimensão quando vi o primeiro episódio da primeira temporada, em julho de 2021, e vi a minha ilustração na abertura.
Fiquei incrédulo quando terminei de assistir. Pensei: “Uau, é uma grande produção, não é qualquer coisa, é algo gigante.” Quando vi que minhas ilustrações eram 100% da abertura, fiquei de queixo caído. Até hoje a ficha não caiu, eu assisto e não acredito que faço parte de algo tão grande. Agora em 2022 veio a segunda temporada, e eles optaram pelo meu trabalho outra vez, e eu, novamente, fiquei super feliz e incrédulo.
Como espectador, gostei muito mais desta segunda temporada. Como ilustrador da abertura, também. O briefing foi mais detalhado, e o trabalho, mais desafiador, com pistas sobre a série para deixarmos na arte. Precisei estudar sobre os afrescos italianos, os traços deles, e aprimorar minhas técnicas. Afinal, a referência da primeira temporada era meu próprio traço; já na segunda a referência eram as pinturas renascentistas. Levei dois meses pesquisando, tentando entender para me aproximar o máximo possível dessas pinturas. Algumas ilustrações são originais de outros artistas e fomos adicionando elementos, então era muito difícil igualar o meu traço ao desses artistas. Dessa vez, os trabalhos foram concluídos em cinco meses. A segunda temporada deu visibilidade ainda maior ao meu trabalho, ganhei muitos seguidores novos nas redes, pedidos de orçamento, recebo mensagens diariamente com pessoas falando sobre as possíveis pistas que deixamos na abertura, mas as que mais me alegram são aquelas em que artistas do Brasil dizem que estou para que eles continuem, eles me pedem dicas…
Isso me inspira a continuar trabalhando com arte. Saber que meu trabalho está inspirando outras pessoas é incrível e muito gratificante. Representatividade é essencial para percebermos que nossos similares também podem. Isso me faz ficar muito orgulhoso e contente pela minha trajetória. É bom ver que estou encorajando outros artistas brasileiros. O menino Lezio, que participava de todos os concursos, jamais pensou que fosse desenhar para tantas pessoas.